Pesquisar

À PORTA DA POESIA, COM DANTE E RODIN / MARIA MORTATTI

Sobre o tempo, confessou Santo Agostinho: “Se não me perguntam o que é (...), eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei”. Ao que Borges acrescentou: “Sinto o mesmo em relação à poesia”. Sobre a liberdade, poetizou Cecília: “(...) essa palavra/que o sonho humano alimenta,/que não há ninguém que explique/e ninguém que não entenda". Ao que acrescento: sinto o mesmo em relação à poesia, esse enigma que alimenta sonhos humanos, desde as primeiras manifestações artísticas de sociedades pré-letradas.

"Poesia” se origina do grego “poiésis”, com significado de criar, fazer, relacionado com arte no sentido de técnica e/ou habilidade, téchne (Gr.)/ars (Lat.). Designava a manifestação artística por meio da palavra, era composta em versos para facilitar apresentação e transmissão oral e abrangia três gêneros: lírico (expressão de sentimentos subjetivos, apresentada sob a forma de canto e acompanhada da lira), épico (narrativa histórica de fatos e feitos geralmente de “homens superiores”, heróis de lendas de tradições seculares); e dramático (teatro: tragédia e comédia). A poesia era uma das seis artes conhecidas e praticadas pelos gregos: arquitetura, música, escultura, pintura, poesia, dança. Corresponde ao que se passou a denominar “literatura”, aproximadamente a partir do fim do período medieval e Idade Moderna europeia, quando transformações tecnológicas (invenção da prensa de tipos móveis), econômicas (capitalismo, industrialização) e sociais (ascensão da burguesia, criação de escolas) possibilitaram novas formas de registro escrito, transmissão, circulação e consumo do impresso e desenvolvimento de gêneros literários em prosa moderna, como o romance, narrativa (extensa) em prosa, inaugurada por Dom Quixote, de Cervantes, no século XVII.

As bases do conceito de arte separado do de técnica e ciência –  incluindo-se a poesia no domínio das artes, o poema como obra produto da atividade artística e o ofício do poeta separado do dos artesãos e artífices –, encontram-se na obra de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), “redescoberta” no Renascimento e disseminada na Ásia, Europa e África. Para o filósofo grego, “poíesis” é o impulso ou a disposição do espírito humano para criar algo, de forma racional, a partir da imaginação e dos sentimentos, superando o conceito de “inspiração divina” de Platão, de quem foi discípulo. No capítulo IX de sua Arte poética, Aristóteles distingue os ofícios do poeta e do historiador, conferindo à poesia o estatuto de arte como criação a partir da imaginação, o tom filosófico e a finalidade de atingir o universal, introduzindo também o conceito de verossimilhança: “(...) é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu: mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. 2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto houvesse sido composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de História, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. (...)”. (Trad. A. P. Carvalho. Ediouro)

O que se sabe e se sente contemporaneamente em relação à poesia é fruto dessa tradição de perguntas e tentativas de respostas. Se não se pode ainda definir poesia, é possível ao menos distinguir ou tentar nomeá-la, nas formas de manifestação artística por meio da palavra oral ou escrita: poemas são formas literárias em versos e comportam vários subgêneros; nem tudo que está escrito em verso é ou contém poesia; nem toda poesia se manifesta em versos, como na prosa poética ou poesia em prosa; e a poesia está presente também em outras manifestações artísticas. 

A célebre escultura O Pensador, do francês Auguste Rodin (1840 – 1917), faz parte da obra A porta do Inferno, iniciada em 1800 e finalizada em 1917. Rodin se inspirou na Divina Comédia, de Dante Alighieri (c. 1265 – 14.09.1321), o longo poema narrativo, com 100 cantos e 14.233 versos, que se divide em: Inferno, Purgatório e Paraíso. No canto III da primeira parte – cujas figuras são representadas no portal de Rodin –, o poeta florentino e seu guia, o poeta latino Virgílio, chegam à porta do Inferno onde está escrita a terrível advertência: “Qui si convien lasciare ogni sospetto;/Ogni viltà convien che qui sia morta” ("Aqui convém deixar toda suspeita;/toda covardia convém que morra aqui” – trad. livre). Lá, encontram as almas supliciadas dos que em vida cometeram pecados e foram infiéis a Deus, conforme a visão moral e teológica de Dante. O escultor francês, porém, buscava expressar os impulsos da alma humana e, em vez de lugar de julgamento e castigo dos condenados, considera o Inferno como um estado de alma, carregando de erotismo suas esculturas. Inicialmente intitulada O poeta, a escultura O pensador está destacada na parte superior do portal, representando o poeta enquanto observa e pensa sobre sua obra. Assim explicou Rodin: “O que pensa o meu pensador é que ele pensa não só com o cérebro, com as sobrancelhas, as narinas distendidas e os lábios comprimidos, mas com cada músculo de seus braços, costas e pernas, com o punho cerrado e o aperto dos dedos do pé.” 

Sobre a poesia, confesso que, quando me perguntam, também não sei. Se instada a responder, pelo prazer do ofício de poeta, exponho a dúvida em minha "Poética": "não sei se é poesia ou víscera/isso que mostro". Mas o que sei e sinto – se me perguntam ou não – é que a poesia ora é o suplício da alma infiel, ora é aquele voluptuoso inferno de Rodin, o estado da alma onde não há pecados nem condenados, espaço de liberdade de criar, que alimenta o sonho humano de sentir a beleza de tudo, e o meu sonho de ser tocada até “o aperto no dedão do pé”, para, como minha Sóror Beatriz, "ceder ao impulso de parir palavras". Cada vez que, lembrando Drummond, penetro “surdamente no reino das palavras”, ouço o desafio: “Trouxeste a chave?”. E, então, evocando o poeta à porta do Inferno, ela mesma me adverte, com sua humilde e enigmática majestade: também à porta da poesia convém deixar toda suspeita e toda covardia. 

Maria Mortatti