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O “TOUR” DA FRANÇA POR AUGUSTINE FOUILLÉ / MARIA MORTATTI

A escritora francesa Augustine Fouillé (31.07.1833 – 08.07.1923), de pseudônimo G. Bruno (inspirado no nome do filósofo italiano) é autora de quatro manuais de leitura escolar: Francinet (1889), Les Enfants de Marcel (1887), Le tour de la France par deux enfants (1887), Le Tour de l’Europe pendant la guerre (1916). Le tour de la France..., o mais conhecido, foi utilizado para ensino de leitura, escrita, história, geografia e moral na escola primária francesa. Teve sucesso imediato e sucessivas edições com atualizações e adaptações ao sistema educacional francês. Marcou o ensino primário no contexto da Terceira República Francesa (1870-1940), foi adotado até ao anos 1950 e ainda é editado. 

Nesse manual, a narrativa em forma romanceada, organizada em 121 capítulos e ilustrada com 200 gravuras, desenvolve-se em torno das aventuras vividas pelos protagonistas, André (14 anos) e Alfred (7 anos), jovens irmãos e órfãos que partem da região da Alsácia-Lorena ocupada pelos alemães depois da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), para encontrar o tio em Marseille, cumprindo o pedido do pai antes de morrer. Durante a viagem pelas províncias francesas, aprendem a importância da educação, do trabalho, dos saberes práticos, da diversidade cultural e linguística, dos símbolos patrióticos, das formas de vida e atividades desenvolvidas no país, reconhecendo-o como nação e pátria. Por meio das lições do manual, inculcavam-se o sentimento de unidade nacional, a moral laica – em substituição à moral religiosa das edições do século XIX – o lema republicano “liberdade, igualdade e fraternidade” e noções “controversas”, tais como a que, entre as raças humanas, a branca apresentada é a mais perfeita em relação às outras.

“Este verdadeiro ‘livrinho vermelho da República’ com o seu tom paternalista promove as obsessões do novo regime: o trabalho, os valores tradicionais e o colonialismo”, na avaliação do jornalista francês Vincent Bresson. Apesar das críticas relativas às mudanças políticas e sociais, ao longo do século XX esse clássico pedagógico foi objeto de adaptações na França e em outros países – em livros, filmes, séries e programas de TV e rádio – e serviu de modelo para autores de livros escolares, como, no Brasil, ocorreu com Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim – inspirado também em Cuore (1886), do italiano Edmondo De Amicis –  sucesso na escola primária nas décadas iniciais do século XX, tornando-se um clássico do gênero, que formou gerações de brasileiros. 

Diferentemente do filósofo italiano que inspirou seu pseudônimo, Augustine Fouillé optou, não por desafiar, mas por se engajar, ela mesma, no ideal republicano e nacionalista de sua época e propagá-lo por meio do poderoso e exemplar instrumento pedagógico que criou, no qual seu país se apresentava como a utopia de uma grande nação e no qual cada estudante deveria se engajar. Com o sucesso de seu tour da França, imortalizou-se com a inscrição de suas lições nas mentes de gerações de estudantes e de seu nome na história da educação francesa e ocidental.

Maria Mortatti  


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A POÉTICA MARGINAL DA “GERAÇÃO MIMEÓGRAFO” NO BRASIL / MARIA MORTATTI

“Poesia marginal” é a denominação atribuída à produção da “Geração mimeógrafo”, constituída de novos poetas brasileiros que, nos anos 1970, durante a ditadura militar pós-1964, escreviam e divulgavam seus poemas “à margem”. Para escapar da censura do regime político e das dificuldades de inserção no meio editorial, recusavam modelos e sistemas literários, acadêmicos, intelectuais e editoriais. Não tinham um projeto ou programa literário. Com liberdade poética, diversidade etária e regional, faziam poesia “coletiva” sobre assuntos do cotidiano, em linguagem coloquial e informal, com tom de improviso, paródias e apropriação de poetas canônicos, protesto políticos contra o regime e contra a crítica literária oficial. Confeccionavam artesanalmente textos e ilustrações em mimeógrafo e buscavam contato direto com o público, expondo sua poesia em muros, praças, ruas, teatros, bares, universidades, eventos e vendendo por preço baixo. 

Apesar da atitude de recusa, transgressão, independência e resistência ao regime autoritário da época, alguns representantes dessa geração se destacaram já na época pela qualidade estética, especialmente por meio da inclusão na antologia 26 poetas hoje (1975), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Alguns deles tiveram seus poemas publicados e distribuídos por editoras comerciais, e suas obras vêm sendo reunidas, publicadas e estudadas, já com consistente fortuna crítica. Nos anos 1980, apresentei aos meus alunos de ensino médio poetas dessa geração, que então tinha lido e apreciado: Ana Cristina César, Cacaso – ambos falecidos precocemente, além de outros dessa geração, como Torquato Neto, Waly Salomão – e Paulo Leminski. 

O primeiro que me chegou às mãos foi o livro A teus pés: poesia/prosa, de 1982, Ana Cristina César (Rio de Janeiro, 1952-1983), que além de poeta, com quatro livros publicados em vida, dedicou-se às atividades de crítica literária, jornalista e tradutora, com dezena de publicações. No poema “Este livro” me apresentou o manifesto poético de Ana C..: “Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio [...]”. Nesse e demais livros seus anteriores e posteriores, reunidos na antologia Poética (Companhia das Letras, 2013,), conheci melhor sua poesia, que, apesar da aparente “simplicidade”, é marcada por “avançada pesquisa poética” com uma “estratégia de linguagem como desvio contínuo, fratura, abertura para múltiplas falas, testemunho do inconcluso e do inacabado”, nas palavras do crítico Ítalo Moriconi.

Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (Uberaba/MG,1944; Rio de Janeiro,1987), poeta, professor universitário e letrista de música popular brasileira, para alguns críticos literários é o tutor da “poesia marginal”. Seu livro Beijo na boca e outros poemas (1975) foi o que primeiramente li e apresentei em aulas. Em especial, recordo-me de dois poemas apreciados em atividades de leitura: “Lar doce Lar”: “Minha pátria é minha infância / Por isso vivo no exílio.” E “Estágio do retrato”, em que o poeta, inspirado em Cecília Meireles, pergunta: “Nos olhos de quem terei perdido a minha face?” O conjunto de sua produção – seis livros publicados em via e poemas inéditos, e 60 letras de música –, publicado em Poesia completa (Companhia das Letras, 2020), representa também ideias e dilemas de sua geração, “impactada pela violência da história”. “Embora seus poemas sejam independentes e possam ser lidos separadamente, compõem uma espécie de poema único ou ‘poemão’, que sintetiza vivências subjetivas e coletivas”, segundo a pesquisadora Débora Racy Soares

Paulo Leminski Filho (Curitiba/PR, 1944-1989) é autor de obra prolífica e diversificada, um escritor “multimidia”, em termos atuais. Publicou oito livros de poemas, dois romances, novela infantojuvenil, ensaios, biografia, crítica literária, canções, artigos, crônicas, traduções de clássicos da literatura e transitou, ainda, nas artes gráficas, quadrinhos, TV, jornalismo e publicidade. Segundo Rodrigo Garcia Lopes, na recepção crítica da obra de Leminski costuma-se reduzi-la ao trocadilho e ao haicai, ignorando-se a densidade de muitos de seus “poemas pensantes”. Em carta de 1977 ao poeta Regis Bonvicino, Leminski formula a declaração de princípios de sua poesia: “é a linguagem que tem que estar a serviço da vida, não a vida a serviço da linguagem”. No livro Distraídos venceremos (1987), assim “define” sua poética e de sua geração: “Marginal é quem escreve à margem,/ deixando branca a página / para que a paisagem passe / e deixe tudo claro à sua passagem.” Resistindo ao tempo, sua obra foi reunida em Toda poesia (Companhia das Letras, 2013) e, os inéditos foram publicados no livro O ex-estranho – Paulo Leminski (Iluminuras, 2018), com organização e seleção pela poeta Alice Ruiz S., com quem foi casado, e Áurea Leminski, filha do casal. 

Sob influência difusa de movimentos de contracultura da geração beat (beat generation) – iniciados nos anos 1940 nos EUA, que inspiraram formas de expressão similares em países europeus, e, no Brasil, do movimento modernista pós-1922 e do Tropicalismo/ Tropicália – movimento artístico e cultural de vanguarda, com manifestações principalmente na música popular, no cinema, no teatro, poetas daquela “geração mimeógrafo” compuseram também uma “poética marginal”. Com o “jazz do coração” de Ana C., por meio do “poemão” sintetizado por Cacaso e reconfigurando as palavras de ordem “distraídos venceremos”, de Leminski, esses e outros daquela geração transgressora, cuja qualidade estética foi e é reconhecida pela crítica especializada, continuam lidos e apreciados por leitores do século XXI, com circulação também em redes sociais. E, apesar da diversidade de características dos poetas e da postura transgressora, contestatória e antiprogramática, a “poética marginal” resultante da produção da "geração mimeógrafo" integra um capítulo da história da literatura brasileira.

Maria Mortatti


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OSWALD DE ANDRADE, SOPÃO LITERÁRIO E A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 / JOÃO SCORTECCI

Conheci o poeta e pintor modernista, Menotti Del Picchia (1892-1988), no final dos anos 1970. Em 1982, quando inaugurei a Scortecci Editora, na Galeria Pinheiros, na cidade de São Paulo, tive a honra de recebê-lo na loja, numa inesquecível tarde de agosto, acompanhado da escritora e acadêmica, Lygia Fagundes Telles. Entre 1982 e 1983, frequentei a casa de Menotti, na Avenida Brasil, na capital paulista. Fiquei amigo também de Helena Rudge Miller, sua enteada, filha de Charles Miller – considerado por muitos o pai do futebol no Brasil – e de Antonietta Rudge, que, nos anos 1920, casara-se com Menotti. De 1934 a 1945, Menotti colaborou com o meu avô, José Scortecci, na revista PAN. Eu, Menotti e Helena conversávamos sobre tudo: literatura, política e principalmente sobre os “causos” da Semana de Arte Moderna, realizada de 11 a 18 de fevereiro de 1922. O "Príncipe dos Poetas" – titulo que Menotti recebeu em 1982 – era “fã” de Juscelino Kubitschek. Na parede da entrada da sua casa, tinha uma foto de JK. Vez por outra, interrompia o papo, apontava para a foto e bradava: “Grande homem!”. Na literatura, o assunto predileto eram as doideiras de Oswald de Andrade. Segundo Menotti, o vate antropofágico era possuído por profunda e insaciável fome. Reuniam-se – costumeiramente – nos fins de semana. Quando Oswald chegava, abria geladeiras, armários, o saco de pão, tudo que cheirasse a comida. O seu apetite era incontrolável! Helena, que participava do papo, balançava a cabeça, rindo, confirmando a prosa. Para fugir dos ataques de Oswald, por sugestão de alguém criaram, então, o famoso “sopão literário”, com as sobras da semana. Não se perdia nada! Menotti – de quem ganhei algumas gravuras que guardo no meu acervo – pintou um retrato de Oswald de Andrade, com babador, “antropofagando” o tal “sopão literário”. O quadro a óleo – eu o vi – ficava na parede da cozinha da casa do "Príncipe dos Poetas", como prova do crime modernista. Não sei do seu paradeiro, infelizmente. Nos anos 1990, tornei-me amigo do escritor e cineasta Rudá de Andrade (Rudá Poronominare Galvão de Andrade, 1930-2009), filho de Oswald e Pagu (Patrícia Rehder Galvão, 1910-1962). Contei-lhe a história do sopão, do quadro pintado por Menotti e aguardei sua reação. Rudá me olhou – pareceu-me surpreso – e depois caiu no riso solto, vampiresco. Seus olhos brilharam. Nada disse. Riu muito. E a amizade continuou até sua morte. 

João Scortecci


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CONRADUS CELTIS: O COLECIONADOR DE POETAS / JOÃO SCORTECCI

O poeta, historiador e humanista alemão Conradus Celtis (1459-1508) foi também colecionador de manuscritos em grego e latim, quando exerceu o cargo de bibliotecário da biblioteca imperial fundada por Maximiliano I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Arquiduque da Áustria e Rei da Germânia, de 1497 até sua morte, em 1519. O imperador homenageou Celtis, oferecendo-lhe um “privilegium” imperial como professor da arte da poesia e da conversação. Em Viena, deu aulas sobre os manuscritos dos escritores clássicos e, em 1502, fundou o Collegium Poetarum, destinado à formação de poetas. Quando jovem, formou-se em artes liberais na Universidade de Colônia e se graduou na Universidade de Heidelberg – ambas na Alemanha –, atraído pela presença do humanista holandês Rudolf Agricola (Roelof Huesman, 1443-1485). A grande obra de Celtis – e a única publicada em vida – foi Quatro livros de amor (Quattuor libri amorum), de 1502. Para muitos críticos, essa é a contribuição mais original do humanismo alemão à literatura renascentista. Celtis também editou e publicou diversos textos sobre a história e a cultura alemã e fundou academias literárias, entre outras atividades, durante os 10 anos em que viajou pela Europa. Em 1488, na Cracóvia, Polônia, fundou a Sodalitas Litterarum Vistulana, uma sociedade literária com base nas academias romanas. Em 1490, na Hungria, fundou a Sodalitas Litterarum Hungaria, mais tarde conhecida como Sodalitas Litterarum Danubiana, com sede em Viena, Áustria. Em Heidelberg, Alemanha, fundou a Sodalitas Litterarum Rhenana. Conradus Celtis, o colecionador de poetas, morreu de sífilis, em Viena, no dia 4 de fevereiro de 1508, aos 49 anos de idade.

João Scortecci

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UMA VIAGEM NAS ASAS DE SELMA LAGERLÖF, PRIMEIRA NOBEL DE LITERATURA / MARIA MORTATTI

“... em reconhecimento do idealismo elevado, da imaginação vívida e da percepção espiritual que caracterizam seus escritos”: essa é a justificativa da Academia Sueca para escolher Selma Ottilia Lovisa Lagerlöf (20.11.1858 – 16.03.1940), como a primeira escritora laureada com o Prêmio Nobel de Literatura (1909). Foi também uma das primeiras escritoras feministas escandinavas e a primeira a integrar a Academia Sueca (1914), tendo se consagrado como uma das maiores escritoras de seu país e conhecida internacionalmente. 

Selma Lagerlöf nasceu e viveu até os 24 anos em Mårbacka, propriedade da família na província sueca de Värmland. Leitora desde cedo, educada em casa como as jovens da época, começou a escrever ainda nessa época. Foi incentivada a publicar seus primeiros versos na revista literária feminista Dagny, fundada pela pioneira ativista dos direitos das mulheres no país, a baronesa Sophie Lejonhufvud Adlersparre (Esselde). Em 1885, formou-se professora e lecionou em escola para meninas em Landskrona, até 1895, quando se mudou para a cidade de Falun e passou a se dedicar apenas à carreira literária. Com a escritora sueca Sophie Elkan (1853-1921) – por quem se apaixonou –, entre 1895 e 1899 viajou para Itália, Egito, Palestina, França, Bélgica e Holanda, recolhendo material para seus livros. Com o dinheiro obtido com seus primeiros livros e com o prêmio Nobel, em 1910 realizou o antigo desejo de comprar de volta a propriedade da família, vendida para salvar dívidas do pai e do irmão. Lá passou a morar até a morte, continuando sua obra de escritora. Além das atividades de fazendeira, dedicou-se a causas feministas e humanistas. Após a morte da amiga escritora, Lagerlöf herdou seus pertences pessoais e converteu um cômodo de sua casa em Mårbacka em um museu dedicado a Sophie Elkan.

Sua obra literária é inspirada nas histórias e lendas populares do seu país, rompendo com o realismo predominante em sua época e inserindo-se na tradição do conto de autoria feminina na Suécia, iniciada com Fredrika Bremer (1801-1865), escritora e pioneira do movimento feminista no país. Em 1891, Selma Lagerlöf publicou seu primeiro romance Gösta Berling Saga (A Saga de Gösta Berling), considerado por críticos literários como sua obra-prima e precursor do realismo mágico. Escreveu, depois, mais de duas dezenas de publicações, alguns póstumos, entre romances, contos, biografia, autobiografia, ensaios e literatura para crianças. No Brasil foram publicadas apenas sete de seus livros, entre os quais Nils Holgerssons underbara resa genom Sverige  (A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia), seu livro de maior sucesso, que integra o cânone da literatura para crianças e jovens, foi adotado em todas as escolas suecas e traduzido para mais de 60 idiomas, além de adaptações em livros, peças de teatro, ópera, filmes e séries de cinema e TV. 

Publicado em 2 volumes, em 1906 e1907, o livro foi escrito – depois de muita pesquisa – por encomenda do diretor da escola elementar onde ela lecionava, para ensinar geografia e outros aspectos da Suécia aos alunos. O protagonista, Nils Holgersson, com 14 anos, filho de camponeses pobres da região da Escânia, menino preguiçoso, violento e maldoso com animais e pessoas, que só gostava de dormir e comer, é castigado com a transformação em duende e monta num ganso doméstico, que voa na primavera seguindo um bando de patos selvagens até a Patagônia. Durante a viagem, enfrenta sustos e medos, mas com o tempo vai ganhando coragem, descobrindo a Suécia como “uma toalha quadriculada”, participando de aventuras com as aves e aprendendo com elas a se tornar um menino melhor, que respeita as pessoas e a natureza, reconhece a importância do trabalho e da caridade, podendo, então, voltar ao tamanho e à forma humana. 

Apesar de sua finalidade didático-pedagógica, com lições morais, religiosas, humanistas e nacionalistas, características da literatura infantil ocidental da época – como exemplificam os contos de Zacharias Topelius (1818-1898), finlandês de expressão sueca; Cuore, libro per i ragazzi (Coração, livro para meninos) (1886), do italiano Edmondo De Amicis; Le Tour de la France par deux enfants (Viagem pela França por duas crianças) (1877), da francesa Augustine Fouillée; Heide (1879/1880), da suíça Johanna Spyri, entre outros – os talentos literários da autora e a qualidade poética de sua narrativa se destacam nessa obra que continua sendo lida e apreciada na Suécia e em outros países, até os dias atuais. Foi elogiada pelos escritores Rainer Maria Rilke e Marguerite Yourcenar e mais recentemente por críticos literários e editores, em diferentes aspectos: um dos primeiros “romances ecológicos” do mundo; uma “fábula de dimensões épicas sobre a redenção e encontrar o bom caminho”; “quase uma rapsódia sueca”. 

A obra de Selma Lagerlöf, em particular A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia, ficou pouco conhecida e estudada no Brasil ao longo do século XX. A primeira tradução desse livro para o português, feita por Maria de Castro Henriques Oswald, foi publicada em 1953, em Portugal; no Brasil, em 1985, pela Nórdica, foi publicada a tradução de Manoel Paulo Ferreira. Podem-se, no entanto, identificar semelhanças entre o livro protagonizado por Nils e ao menos um livro brasileiro para crianças do início do século XX: Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, que também teve grande sucesso nas escolas, dada a forma agradável de ensinar às crianças geografia, hábitos, costumes, lendas do País, por meio da narração da viagem dos irmãos Carlos e Alfredo de Recife/PE até Pelotas/RS, em busca do pai. 

Passa o tempo, mudam-se critérios e gostos literários, mas neste século XXI as aventuras e o aprendizado do menino sueco montado nas asas de um ganso, nascidos da pena da feminista sueca e primeira Nobel de Literatura, continuam maravilhando crianças e adultos, muito além das lições de geografia de sua terra natal. Assim são os clássicos: nunca terminaram de dizer o que tinham a nos dizer, como ressalta o escritor italiano Italo Calvino. Certamente, o duradouro sucesso desse clássico sueco se deve às maravilhas da viagem que, pelos olhos de Nils, podemos desfrutar nas asas de Langerlöf, como sugere a poeta brasileira Cecília Meireles: “Assim vai o herói. E assim vai se desenrolando o livro. A técnica é realmente a da receita, - parece fácil. Ai das supostas facilidades literárias. Mas aqui não há nada a temer: Nils viaja com segurança, levado por Selma Lagerlöf...”. Nós, leitores, também!

Maria Mortatti  

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HAIDI, A “FILHA" DILETA DE JOAHNNA SPIRY / MARIA MORTATTI

Com 10 anos de idade, ganhei um exemplar de Haidi, a filha das montanhas, adaptação do romance infantojuvenil da escritora suíça de expressão alemã Johanna Spiry (12.06.1827- 07.07.1901). De formato pequeno, capa de fundo amarelo, 126 páginas com algumas ilustrações em preto e branco, o livro foi publicado pela Livraria Exposição do livro (SP), sem data, com tradução por Sylvio Monteiro da adaptação (dos dois volumes originais) pela escritora estadunidense Alice Thorne e publicada em 1961 pela Grosset & Dunlap. Foi um presente de D. Elza Canazza, professora de minha turma (feminina) no 4º. ano primário, como prêmio pelo aproveitamento, com louvor, no ano letivo de 1964 no Grupo Escolar “Pedro José Neto”, de Araraquara/SP. 

Nascida nos Alpes Suíços, Johanna Louise Heusser Spyri começou a escrever aos 43 anos de idade e publicou o primeiro livro em 1873, em Zurich, Alemanha, onde passou a morar depois de casada. Após a morte do marido e do único filho, em 1884, dedicou-se a causas de caridade. Ao longo da vida, escreveu mais de 50 histórias, a maior parte para crianças e com tom didático e religioso, tendo se tornado um ícone na Suíça. 

Seu primeiro romance para crianças é Heide. Escrita em quatro semanas, a história original de Joahnna Spyri foi publicada em duas partes: Heidis Lehr- und Wanderjahre (Os anos de aprendizado e viagens de Heidi), de 1879/1880, e Heidi kann brauchen, was es gelernt hat (Heidi pode usar o que aprendeu), de 1881. Heide (ou Haidi), é o apelido da protagonista, Adelaide, menina órfã de cinco anos, otimista e altruísta, levada pela tia Dete para morar com o avô paterno que vivia sozinho nos Alpes Suíços. Lá, ela aprende e ensina o amor ao próximo, à natureza e a reverência a Deus. Com 10 anos de idade, a tia a leva à casa de uma rica família em Frankfurt, Alemanha, para ser companheira da menina Clara, de 12 anos, paralítica, órfã e solitária. Lá, ela novamente ensina e aprende a generosidade e a alegria de ajudar os outros. Sente saudade da vida nas montanhas e para lá retorna, levada por Clara e seu pai.

Heide teve sucesso imediato e se tornou uma das obras mais conhecidas da literatura suíça e um clássico da literatura infantojuvenil universal. Os livros foram traduzidos para mais de 50 idiomas, com inúmeras adaptações em livros, filmes e séries live-action e de animação de cinema e TV, peças de teatro, histórias em quadrinhos, musicais. Houve também alegação de a história ter sido plagiada de romance suíço de 1830, o que foi contestado por não haver comprovação científica das semelhanças encontradas. 

O exemplar que ganhei há seis décadas, guardei-o com as recordações escolares. Recentemente, reencontrei-o e o reli. Com certeza, a professora o escolheu para me presentear por ser a adaptação então recém-lançada de um clássico da literatura para meninas e com lições exemplares a serem aprendidas e usadas. Assim o li naquela época e gostei. Provavelmente também usei muito do que aprendi com ela e outras protagonistas órfãs de histórias parecidas – como Pollyana, do romance de Eleanor Porter, que li logo em seguida, na tradução de Lobato pela Cia Editora Nacional – as quais foram criticadas por estudiosos da literatura infantil a partir dos anos 1980, justamente pelo tom edificante e didático. Na releitura, as lições de Haidi não me empolgaram. Mas me detive na folha de rosto com o carimbo da Livraria Acadêmica de Araraquara e anotações em manuscrito, abaixo de meu nome: “Lembrança de D. Elza, 12 de dezembro de 1964.” Talvez o livro-lembrança da saudosa professora e do que me ensinou tenha representado a mais duradoura e afetiva lição daqueles tempos de aprendizado com Haidi, a “filha" dileta de Johanna Spyri. 

Maria Mortatti 

 

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RUBEM BRAGA E A DESPEDIDA NAS ÁGUAS / JOÃO SCORTECCI

Eu ando apaixonado por crônica. Ela mesma: paixão desbragada! Comecei – confesso – escrevendo prosa poética, combinando prosa com elementos poéticos e, do nada, amanheci preso em seus tentáculos, perdidamente. Fiquei. Hoje, exercício diário, necessariamente obrigatório. Quando não escrevo, sinto-me vazio, devedor de mim mesmo, estranho. O cronista e jornalista Rubem Braga (1913-1990), nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES. Andei por lá nos anos 1970, tomando banho de cachoeira e espantando moscas do prato. Cidade das moscas! Na hora do almoço montávamos na mesa morrinhos de comida para enganá-las do prato principal: o nosso! Cachoeiro de Itapemirim terra também do cantor Roberto Carlos e outros, também famosos. Rubem Braga iniciou-se no jornalismo aos 15 anos de idade, trabalhando no jornal “Correio do Sul” e no jornal “Diário da Tarde”, fazendo reportagens e assinando crônicas. Formou-se em Direito, em 1932, em Belo Horizonte/MG, mas não exerceu a profissão. Como jornalista, cobriu a Revolução Constitucionalista, movimento armado ocorrido nos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, entre julho e outubro de 1932, que tinha por objetivo derrubar o governo de Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. Em 1936, transferiu-se para o Recife/PE, onde dirigiu a página de crônicas policiais no “Diário de Pernambuco”, o mais antigo periódico em circulação da América Latina, fundado em 7 de novembro de 1825, pelo tipógrafo Antonino José de Miranda Falcão. Fundou o periódico “Folha do Povo” e lançou, ainda, o seu primeiro livro de crônicas, “O Conde e o Passarinho”. Em 1947 em São Paulo, fundou a revista “Problemas”, do PCB – Partido Comunista do Brasil, que circulou até 1956. Durante a Segunda Guerra Mundial, atuou como correspondente de guerra junto à Força Expedicionária Brasileira. No exterior, desempenhou função diplomática em Rabat, Marrocos, atuando também como correspondente de jornais brasileiros. Após seu regresso fixou residência na cidade do Rio de Janeiro, onde escreveu crônicas e críticas literárias, para o “Jornal Hoje”, da Rede Globo. Em 1987, foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. Em 1960, em sociedade com os escritores Fernando Sabino e Walter Acosta fundou a Editora do Autor, cuja divisão, em 1966, deu origem à Editora Sabiá, comprada, posteriormente, pela Livraria José Olympio Editora. Na crônica “Despedida”, do livro “A Cidade e a Roça” (Editora do Autor, 1964), escreveu: “E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval – uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito – depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado – sem glória nem humilhação.” Rubem Braga faleceu de insuficiência respiratória, no Rio de Janeiro/RJ, em 19 de dezembro de 1990, aos 77 anos de idade, em decorrência de um câncer de laringe. Foi cremado e suas cinzas lançadas ao rio Itapemirim, no Espírito Santo, na imensidão da pequena pedra achatada.

João Scortecci


João Scortecci


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SEBO DO MESSIAS, A DEUSA ETHYMON E A BIENAL DO LIVRO DE SÃO PAULO DE 1994 / JOÃO SCORTECCI

Eu, Ézio Grassi Peludo e Luiz Caldas Tibiriçá: éramos os ensebados de Pinheiros! No início dos anos 1980 fomos visitar o Sebo do Messias, do livreiro Messias Antônio Coelho (1941-2024), na Praça João Mendes, no centro de São Paulo. “Professor Ézio, o que estamos procurando?”, perguntei. “Algo mais antigo do que nós!”, explicou. Gritei de felicidade: "Encontrei uma edição do livro Quintanares do Mário Quintana!". Ézio, cabreiro, perguntou-me: “Qual o ano da publicação?” "Ano de 1976, 1ª edição, Editora Globo". “Não serve! Ensebado – raro e de valor – tem que ser mais velho do que nós!” Tibiriçá, que nos observava, completou, ironicamente: “Scortecci, edições de 1920 pra baixo!” Ézio nos olhou, sorriu e foi conversar com Camões, que nos chamava no aglomerado português. Passamos o resto do dia por lá, no “ensebado” do Messias. “Quero morrer aqui!”: palavras de Tibiriçá. “Nós também!” Naquele dia comprei duas raridades: uma de Quintana e outra de Guilherme de Almeida. Luiz Caldas Tibiriçá comprou um livro sobre Bartira, índia tupiniquim paulista do século XVI, filha do cacique Tibiriçá (seu tataravô). E Ézio Grassi Peludo comprou um livro sobre a deusa grega Ethymon, mãe de todas as palavras. Conheci a Deusa Ethymon – mãe de todas as palavras – no ano da graça de 1983. Ethymon, a Deusa Grega, já na sua quinta reencarnação, vivia, desde então, no corpo de uma jovem índia, na cidade de Cananéia, no litoral paulista. Ethymon morreu jovem, no ano de 2006, no mesmo dia do passamento do arqueólogo e lexicógrafo Tibiriçá. Em 1994, ano da realização da última Bienal do Livro de São Paulo no Pavilhão do Parque do Ibirapuera, um grupo de moças – sabendo que éramos escritores – pediu-nos autógrafos. Professor Ézio, que sempre carregava no bolso da camisa duas esferográficas, sacou uma delas e gentilmente indagou: “Moça, onde você quer o autógrafo?” Esperávamos que a moça nos apresentasse um livro, um caderno escolar ou mesmo uma folha avulsa de papel. Que nada! A moça, 15 anos de idade, talvez 16, desabotoou a blusa escolar – não usava sutiã – e resfolegou: “Aqui!”, apontando com o indicador para o seu peito esquerdo. Ézio tentou – delicadamente – escrever um verso “caracol”, sem sucesso. A esferográfica deslizava na maciez da pele do peito da menina. O que fazer? Outra moça do grupo, então, sugeriu: “Segura no bico do peito que vai!” Ézio, obediente, segurou no bico excitado do peito da moça e poetou um pequeno poema. Versos crassos, do seu único e melhor poema carnal. Foi a glória. Ethymon, que nos acompanhava, sorriu. “Ézio, está gostando da Bienal do Livro?” “Muito! Muito!”, respondeu. Quintana, que nos acompanhava de perto – desde o Sebo do Messias – profetizou: “Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!”. Risos. Ézio e Tibiriça morreram. Agora soube da morte do livreiro Messias (Messias Antônio Coelho, 1941-2024). Fiquei só de tudo. E Ethymon? Talvez. Prometeu voltar. Quando? Não sei. Aguardo os sinais de luz do do poema sem-fim de mim mesmo. 

João Scortecci

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1964, A UBE E A GESTÃO DO JORNALISTA OLIVEIRA RIBEIRO NETO / JOÃO SCORTECCI

O jornalista e romancista Afonso Schmidt (1890-1964), após eleito, tomou posse na presidência da UBE – União Brasileira de Escritores, no dia 18 de março de 1964, alguns dias antes do golpe militar de 1964. Na ocasião, seu vice, o professor e jornalista Luiz Geraldo Toledo Machado (1927-2010), estava em viagem no exterior e não pôde, formalmente, tomar posse, segundo os estatutos da entidade. No dia 31 de março – 13 dias depois da eleição – foi deflagrado o golpe militar de 1964. Três dias depois, no dia 3 de abril de 1964, Afonso Schmidt veio a falecer, deixando vaga a presidência da UBE. Uma assembleia extraordinária foi, então, convocada pelo Conselho Consultivo e Fiscal da entidade, formado pelos intelectuais: Mário Donato, Joaquim Pinto Nazário, Leôncio Basbaum, Solano Trindade, João de Souza Ferraz, Maria José de Moraes Pupo Nogueira, Fábio Rodrigues Mendes, Aristeu Bulhões e Benedito Geraldo de Carvalho. Nova eleição foi marcada, e, na ocasião, foram registradas três chapas, encabeçadas, respectivamente, pelos escritores: Jamil Almansur Haddad, Oliveira Ribeiro Neto e Mário Graciotti. Alguns dias antes da eleição, Haddad e Graciotti renunciaram, e o professor, promotor público, juiz e adido cultural do Itamaraty, Oliveira Ribeiro Netto (Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro Netto, 1908-1989), foi indicado como presidente da UBE. Os primeiros anos da sua gestão foram marcados por conturbações na ordem jurídica do País, prisão de escritores e apreensão de livros. A entidade, nesse período, publicou diversos boletins, dirigidos pelo escritor e romancista Ibiapaba Martins (Ibiapaba de Oliveira Martins, 1917-1985) que, em artigos assinados, verberava as violências contra escritores presos, perseguidos e torturados. Somente no dia 20 de maio de 1965 a chapa encabeçada pelo jornalista Oliveira Ribeiro Neto tomou posse, de direito, tendo Lygia Fagundes Telles (1ª vice), Raimundo de Menezes (2º vice), Ibiapaba Martins (Secretário Geral), Roberto de Paula Leite e Hernâni Donato (Secretários), Walter José Faé, Paulo da Silveira Santos e Maíza Strang da Rocha (Tesoureiros). Foram eleitos como diretores: Herculano Pires, Leão Machado, Lília A. Pereira da Silva, Henrique L. Alves, Hélio Silveira, Pascoal Melantônio, João Freire de Oliveira, Clóvis Moura, Alexis Pomerantzeff e Gabriel Marques. O Conselho Consultivo e Fiscal foi formado pelos escritores: Cassiano Ricardo, Sérgio Milliet, João Accioly, Mário Donato, Mário Graciotti, Aristeu Bulhões, Joaquim Pinto Nazário, Domingos Carvalho da Silva, Tito Batini e Solano Trindade. Nesses mais de 50 anos de livros, assusto-me, sempre, quando lembro que conheci, convivi e publiquei pela Scortecci Editora muitos desses incríveis e imortais escritores. Não adianta dizer que eu era jovem e tive sorte: eu envelheci, também.   

João Scortecci


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O POETA RABEARIVELO E OS BOIS AZUIS / JOÃO SCORTECCI

O poeta Jean-Joseph Rabearivelo (Jean-Casimir Rabe, 1901-1937), nasceu na República de Madagascar, país insular no Oceano Índico, maior ilha da África e a quarta maior do mundo, situada na costa sudeste da África. Quando nasceu, o país ainda se chamava República Malgaxe, uma colônia francesa, que se tornou independente no ano de 1960. Os malgaxes formam o grupo étnico de mais da metade da população da ilha, hoje estimada em 28 milhões de habitantes. Rabearivelo é considerado o primeiro poeta moderno da África e o maior de Madagascar. Publicou seus primeiros poemas ainda adolescente, em revistas literárias locais. “La coupe de cendres” (1924) é o seu livro de estreia na poesia. Publicou em inúmeras antologias de poesia em francês e malgaxe, bem como críticas literárias, peças teatrais, uma ópera, além de dois romances, publicados postumamente: “L'Interférence, suivi de Un Conte de la Nuit” (1988) e “Irène Ralimà sy Lala roa” (1988). Rabearivelo trabalhou na editora Imprimerie de L’Imerina, como revisor e editor. Passou a ser conhecido na Europa por meio de um artigo, em francês, sobre a poesia malgaxe, publicado pela revista austríaca missionária “Anthropos”. Nos versos do poema “O boi branco” do livro “Quase Sonhos” (1934) (tradução de Antonio Moura, Lumme Editor, 2004), assim se expressa: “Esta constelação em forma de cruz, é ela o Cruzeiro do Sul?/ Eu prefiro chamá-la Boi-branco, como os Árabes./ Ele vem de um parque que se estende às margens da noite/ e se enfurna entre duas Vias Lácteas./ O rio de luz não tem aplacado sua sede,/ e ei-lo que bebe avidamente do golfo das nebulosas./ Sendo um efebo cego nas regiões do dia,/ ele nada tem podido acariciar com seus cornos;/ mas, agora que as flores nascem nas pradarias da noite/ e que a lua brota de um salto como um touro,/ seus olhos recobram a visão, e ele parece mais forte que os bois azuis/ e os bois selvagens que dormem em nossos desertos”. Rabearivelo cometeu suicídio por envenenamento com cianeto. Na manhã do seu suicídio, escreveu um poema final e queimou os cinco primeiros volumes do seu diário pessoal, os “Calepins Bleus” ("Cadernos Azuis"), deixando apenas os últimos quatro volumes, aproximadamente 1.800 páginas, que documentam a sua vida a partir de 1933. Nas suas anotações finais no diário, registrou, ainda, detalhadamente, a experiência do seu suicídio. Tinha 36 anos de idade e, apesar das desilusões e amarguras em seu último ano de vida, parecia mais forte que os bois azuis do Cruzeiro do Sul.

João Scortecci

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LINDOLF BELL, O POETA DA GERAÇÃO DAS CRIANÇAS TRAÍDAS / JOÃO SCORTECCI

Conheci o poeta Bell (Lindolf Bell, 1938-1998) nos anos 1980. Dizia sempre: “Menor que o meu sonho não posso ser”. Quem nos apresentou foi o também poeta catarinense Péricles Prade (1942-2024), na época Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores. Avisou-me: “Scortecci, hoje o Bell vai relançar o seu livro ‘As Annamárias’, no Spazio Pirandello. Vamos?” Fomos em bando: eu, Péricles, Caio Porfírio Carneiro, Lauro Vargas e outros diretores da entidade. O Pirandello ficava na Rua Augusta, n. 311, na época ponto de encontro de jornalistas, escritores e intelectuais. Foi lá que conheci Loyola Brandão, Moacir Amâncio, Caio Fernando Abreu e outros. Naquela noite – inesquecível,  até hoje – de Catequese Poética, movimento de popularização da poesia que teve início na década de 1960, Bell declamou o “Poema das crianças traídas”: “Eu vim da geração das crianças traídas./ Eu vim de um montão de coisas destroçadas./ Eu tentei unir células e nervos, mas o rebanho morreu./ Eu fui à tarefa num tempo de drama./ Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.../ Eu sou a geração das crianças traídas./ Eu tenho várias psicoses que não me invalidam...” Aplausos. Durante alguns anos, vez por outra, trocávamos cartas datilografadas. Guardo-as no memorial da Scortecci Editora. Era seu desejo: "Há muitos anos tento um espaço descentralizador da cultura brasileira no Sul (em Blumenau, Santa Catarina) e gostaria de receber esta obra para revender em meu espaço cultural." Um detalhe, insignificante, talvez. Disse-lhe: “Bell, você precisa limpar os tipos da sua máquina de escrever!”. Ele, uma única vez, respondeu-me: “Farei isso!”.  As letras “e” e “o” da sua máquina de escrever eram engodos, pontos sujos: borravam o papel. A última carta que recebi do poeta de Timbó, data de 11 de maio de 1991, e nela Bell, escreveu: “De muitas maneiras (e não tantas neste país), as pessoas resistem no ofício.” Pensei, quando li: “Não podemos ser menores que os nossos sonhos”. Bell – o poeta da geração das crianças traídas – morreu jovem, no dia 10 de dezembro de 1998, aos 60 anos de idade. 

João Scortecci


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O GOLPE DO LIVRO E AS MAZELAS DO MARKETPLACE / JOÃO SCORTECCI

A Scortecci Editora edita, imprime e comercializa livros desde 1982. Os livros são comercializados por meio de três lojas virtuais próprias, de duas distribuidoras, algumas redes de livrarias parceiras e também por meio do sistema conhecido no mercado como “marketplace”, plataforma de vendas on-line que reúne vários lojistas. O marketplace, que funciona como um tipo de shopping virtual, é um modelo em crescimento no mundo todo e veio para ficar, até segunda ordem. No Brasil, vem apresentando problemas recorrentes de credibilidade, golpes e falências. Problemas passageiros? Talvez. O golpe do livro com preço abusivo virou uma praga e anda fazendo estragos, prejudicando editoras e autores que vendem seus livros por meio dessa plataforma on-line. O golpe começa assim: no dia seguinte, às vezes até no mesmo dia, questão de horas, depois que um livro é lançado no mercado, com preço de capa sugerido – exemplo: R$ 50,00 –, aparecem outros "fornecedores" vendendo o mesmo livro pelo preço abusivo de R$ 150,00. Diariamente recebemos reclamações de autores – indignados – comunicando o erro e pedindo correção. Nada ou quase nada podemos fazer, além de colocar a boca no trombone. No nosso caso, assim que o livro entra em comercialização, enviamos para nossos autores – atualmente mais de 11 mil – os links corretos: das nossas lojas, das lojas do marketplace, das redes de livrarias parcerias e, ainda, o nome das duas distribuidoras com que trabalhamos. No corpo da mensagem, segue nota explicativa e de alerta sobre o “golpe do livro” que assola o mercado. Esse golpe – existem variáveis – funciona assim: o cliente entra na plataforma, localiza o livro – quase sempre bem visível nos resultados de busca – e, mesmo estranhado o preço abusivo, acaba comprando. O golpista, que não é livreiro, compra então a obra diretamente na editora ou na distribuidora, com desconto de livreiro: de 30 até 45% de desconto sobre o preço de capa. O lucro do salafrário, no exemplo dado, é, portanto, de R$ 127,50 por exemplar. O golpe do livro é também uma das razões – existem outras – de apoiar, acreditar e apostar na Lei do Preço Único (batizada de Lei Cortez, PLS 49/2015), cujo objetivo maior é promover a diversidade de livros, fortalecer livrarias independentes e garantir a concorrência mais justa no mercado editorial. Até lá, enquanto ela não “chega”, o jeito é denunciar o golpe, espernear, gritar, alertar autores e consumidores de livros. A título de curiosidade, segundo o DataSenado, nos últimos 12 meses, golpes digitais vitimaram 24% dos brasileiros com mais de 16 anos. São mais de 40,85 milhões de pessoas que perderam dinheiro em função de algum tipo de crime cibernético. Das mazelas: as piores!

João Scortecci              

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CRISÁLIDAS MACHADIANAS: EFUSÃO DE ASAS LIBERTAS! / JOÃO SCORTECCI

Crisálidas e Corina: metamorfose! Machado (Joaquim Maria Machado de Assis, 1839 - 1908) tinha, na época, 25 anos de idade, isso no ano de 1864. Terceiro ciclo de vida de uma borboleta: é quando a lagarta atinge o seu ciclo completo, solta a pele e produz a dura casca (casulo) protetora da crisálida. Depois, borboletas no estômago: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro” e muitos outros. Crisálidas, originalmente, tinha 29 poemas, 17 dos quais foram cortados pelo poeta quando editou “Poesias Completas”, em 1901. Entre os 17 poemas da obra “Os Versos a Corina”, os dedicados à sua primeira musa, cuja identidade ficou escondida no casulo do coração e nunca, jamais, foi revelada. Amor por crisálidas! Machado, maior escritor brasileiro, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Machado e seus segredos de lagarta! “Amemos! diz a flor à brisa peregrina, / Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor; / Cantemos esta lei e vivámos, Corina, / De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.”. Gosto de pensar que toda borboleta voa o seu derradeiro destino. Muitos chamam de o “terceiro ciclo de vida”. Desapego absoluto! Corina pode ter sido o último amor maduro, pode ter sido uma fantasia qualquer – passageira – ou ter sido, a mutação da alma ou até mesmo o próprio desejo de “metamorfose” machadiana, e ser, infinitamente: o gozo da lagarta no cio, o corpo protetor das formas, do casulo rompido, ou, ainda, uma efusão de asas libertas em dia de queda livre. 

João Scortecci

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LIVRO DAS MENTIRAS / JOÃO SCORTECCI

Livro de autor aflito é tortura. Novato, então: um desespero só. Pior que tudo: quando o livro é o nosso. Muito sofrimento. Entregamos o livro – quase – pronto, com a promessa de depois – antes de liberar para a gráfica –dar uma olhada final, uma arredondada. Mentira! Quando o livro volta da diagramação, já no boneco, bate aquele desespero mortal. Transpiração! Muda aqui, muda acolá, muda, muda. Jura que escrevi isso? Mexeram no meu arquivo? Doideira. Uma vez copiei o arquivo do livro já diagramado no “Bloco de notas”, depois de volta para o "Word" e reescrevi tudo. Livro novo? Sim. Aquele outro vai ficar para depois. Menti. Já que era outro livro, aproveitei e troquei também o título. Tenho um arquivo só com títulos, ideias e rascunhos. Vez por outra vou lá e trabalho – aleatoriamente – num deles. Qual? Um deles. Mil anos: é o tempo de que vou precisar para terminá-los. Mentira. Nós, escritores, somos mentirosos e covardes. Vivemos com a cabeça nas nuvens. Quando a coisa aperta, filosofamos com os deuses: a poesia salva! Em 50 anos trabalhando com livros – escrevendo, editando e imprimindo – só conheci um escritor honesto, com os pés no chão. Foi o Zacarias, viúvo, na época com 60 anos, da cidade de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Fechou contrato de edição do livro e pediu 30 dias para concluir a obra, um romance policial, algo assim. Voltou na data combinada e sentenciou: “Não consigo terminar o livro! Estou desistindo.”. “Quer ajuda?”, perguntei. “Não, obrigado.” Desistiu de vez. Foi embora feliz, aliviado, resolvido. A maioria de nós mente, inventa desculpas, conversa para boi dormir: “estou finalizando”; “falta pouco”; “fazendo ajustes pontuais”; “dando a última olhada”; “na revisão com um amigo”; “no prelo” ... Já escutei de tudo: esse será o meu último livro! Pergunta: “E sua obra-prima: não vai escrevê-lo?” “Chega! Chega!”, mentimos, sempre. Todas as vezes em que começo novo lembro do Zacarias, o escritor feliz, calmo, resolvido e mortal. 

João Scortecci    


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DRUMMOND E O DIA 13 DE MAIO DE 2012 / JOÃO SCORTECCI

O poeta Drummond, antes do sol e aos olhos do tempo, ligou-me, tristonho, reclamando da vida, assim que soube do que fizeram com sua estátua da orla de Copacabana, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Estava deprimido e chutando pedras. Estava travestido de “José” e vazio, vencido pelo vasto mundo que é a vida. Pobre poeta Drummond! Falou-me de Itabira – quase nada – da sua terra natal, da sua infância, dos amigos que se foram e das pedras agudas que habitam a imortalidade. “Drummond, o que aconteceu?”, perguntei-lhe. “Roubaram-me os óculos. Assim não consigo ver as palavras, os amores, o sentimento do mundo...", disse-me. Senti sua dor. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”, resmungou. No silêncio do claro enigma, poetamos perdas. Depois, desligou o telefone e partiu – veloz – a galope. 

João Scortecci


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BIENAL DO LIVRO: COBRA GIGANTE, PEDAÇOS DE MELÃO E LIVROS! / JOÃO SCORTECCI

Da Bienal Internacional do Livro de São Paulo de 1994, realizada no Parque do Ibirapuera, Pavilhão Ciccillo Matarazzo, participei uma única vez, a última, antes de o evento mudar de local. A Bienal do livro de São Paulo, acontecimento realizado a cada dois anos, nos anos pares, acontece desde 1970, pelos espaços do Ibirapuera, do Anhembi, Expo Center Norte, São Paulo Expo e agora, depois de 54 anos, novamente no Anhembi, reformado e ampliado. Em 1994, decidi participar pela primeira vez, de uma bienal do livro. A Scortecci Editora tinha, na época, 16 anos de funcionamento, e a oportunidade era, sem pensar muito, um ato de loucura. Comprei o espaço no último dia possível. Olhei a planta do evento – um labirinto – ou melhor, um caracol, obra do arquiteto Niemeyer, no coração do parque, com 40 mil m² de área e 250 m de extensão. “Uma cobra gigante?”, comentei. “Isso mesmo: o público entra pela boca da cobra e sai pelo rabo”. Foi o que me disseram. Risos. “Formato de cobra?”, quis saber, por curiosidade. “Isso. A ideia é simples: fazer com que o público caminhe, obrigatoriamente, passando por todos os estandes!” Foi o que um diretor da Câmara Brasileira do Livro, entidade promotora do evento, explicou-me. "Um curral!", pensei. Nas entranhas da planta, no meio do corpo da cobra gigante, num vão, embaixo da rampa de acesso ao piso superior, localizei um espaço livre, de 20 m². “Quero este!”, apontei com o dedo. Na verdade, era o último espaço disponível. Fiz o cheque. Fui embora feliz, radiante, mordendo as orelhas de alegria. "Eu estou na Bienal do Livro!", gritei. Era uma sexta-feira, final de tarde. No sábado, acordei matutando e pensando na loucura que havia feito. Pensei: dei o passo maior que as pernas. E o pior: comecei a desconfiar do espaço. No domingo, tive um pesadelo terrível: uma cobra gigante estava me comendo, vivo, pelos pés! A ficha, então, caiu: um espaço maravilhoso, no meio da cobra, dando sopa? Algo estranho. Certeza: caí numa roubada. Juro: pensei em cancelar a compra e depois pular no laguinho do Parque do Ibirapuera. Manchete: "Editor afoga-se no laguinho do Ibirapuera". Algo assim. Guardei a cisma e fui, então, à luta. De lá pra cá, já participamos de 15 edições da Bienal Internacional do Livro de São Paulo e, ainda, tivemos uma participação no 1º Salão do Livro de São Paulo, em 1999, e outra, durante a pandemia da Covid-19, na 1ª Bienal Internacional Virtual do Livro, em 2020. Em 1994, no final do primeiro dia do evento, um sábado, tudo havia transcorrido maravilhosamente bem. Deixei o espaço feliz, radiante, pisando nos cascos, pronto para a maratona de dez dias de Bienal. No segundo dia, um domingo, fui um dos primeiros a chegar ao pavilhão do Ibirapuera. Passei pela cabeça da cobra – local onde estavam as grandes editoras – e mirei o meu destino: chegar até o vão livre, embaixo da marquise, da rampa de acesso ao piso superior, onde estaria, então, o estande da Scortecci. Estava lá. Contemplei, de longe, os livros perfilados nas estantes de madeira, num total, aproximadamente, de uns 300 títulos. Parei na entrada do estande e gritei: “Não! Não!” Alguém da segurança me aguardava, sentado numa bancada. “O que aconteceu aqui?”, perguntei. O segurança apontou para o mezanino e disse, calmamente: “Sabia que lá em cima funciona um restaurante self-service?”. “E eu com isso?”, protestei. Cenário: os livros da Scortecci estavam sujos – emporcalhados – com restos de comida. Alguém “varreu” e jogou a sujeira rampa abaixo, explicou-me o segurança. Na estante principal, central do estande, onde havia arrumado os lançamentos do ano, um troféu inesquecível: pedaços de melão. Fui reclamar e o que eu escutei, até, hoje, dói nas tripas: “A noite você precisa cobrir as estantes com os livros com um plástico!” Deveria? Escutei a "recomendação" de um diretor, de plantão. Isso, talvez, explique a fama que tenho, até hoje, depois de 30 anos de bienais, de reclamar, sempre, sistematicamente, de alguma coisa. Virou folclore! Respondo com o coração: "Não gosto de melão e tenho medo de cobra!".  

João Scortecci     


 


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GAZZETTA: MOEDA VENEZIANA E A GAZETA DA RESTAURAÇÃO / JOÃO SCORTECCI

“Gazeta” ou “gazzetta” – no dialeto veneziano, “gaxeta” – é o nome de uma moeda de prata da Sereníssima República de Veneza, no valor de dois centavos, do século XVI. O nome vem de empréstimo. Havia um título de 0,948 gramas e um peso de 0,24 gramas. No anverso, estava a figura do Juiz sentado e, no reverso, a do Leão de São Marcos. Foi emitida a partir de 1539, durante o governo do Doge Pietro Lando (1462 – 1545). Foi cunhada com esse peso até 1559. Em 1563, foi publicada a primeira “folha de avisos”, uma folha de notícias vendida ao público pelo preço de dois centavos. A partir de então, tornou-se um epíteto – palavra ou expressão que se associa a um nome ou pronome para qualificá-lo – para jornal, tipo específico de publicação periódica, quando os primeiros jornais venezianos custavam uma gazeta. O primeiro jornal em português, “A Gazeta da Restauração” (formato 14 x 20 cm, 12 páginas) foi fundado em 1641, pelo alvará régio concedido ao poeta, impressor e livreiro Manuel de Galhegos (1597 – 1665), um ano depois de Portugal recuperar a independência, em 1º de dezembro de 1640. Serviu de instrumento de propaganda de D. João IV (1604 – 1656), apelidado de “O Restaurador”, para consolidar o poder e combater os “feitos” dos espanhóis, durante longos 60 anos enraizados no espírito do povo português, principalmente entre a nobreza. Entre 1580 e 1640, a linha fronteiriça que separa a Espanha de Portugal deixou de existir, e os dois países formaram um só reino, chamado de União Ibérica. A primeira edição de “A Gazeta da Restauração” teve a marca tipográfica da Oficina de Lourenço de Anveres, sediada em Lisboa. As oito seguintes publicações foram impressas na tipografia do jornalista Domingos Lopes Rosa, com a redação de João Franco Barreto e depois do frei Francisco Brandão. “A Gazeta da Restauração” ganhou, ainda, uma nona edição, a última, em julho de 1642. Em 19 de agosto de 1642, por força de uma lei, foi proibida sua impressão e de todas as gazetas com notícias do reino ou de fora, com a seguinte argumentação: “Em razão da pouca verdade de muitas e do mau estilo de todas elas”.

João Scortecci

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JORGE CURY: "LER É UMA MANEIRA SUAVE DE ESPERAR" / MARIA MORTATTI

Jorge Cury (12.04.1932 – 01.01.2019) foi professor de Literatura Portuguesa no curso de Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (Unesp) e um dos fundadores (em 1983) do Centro de Estudos Portugueses da faculdade. Conviveu com Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro, ilustres poetas, professores e críticos literários portugueses, que lecionaram na faculdade, nos anos 1960, autoexilados no Brasil por causa das perseguições do regime político autoritário de Salazar, durante o Estado Novo (1933 – 1974).  

As principais características de Jorge Cury eram o sorriso constante e ironia contundente; simples, afetuoso e firme; católico convicto, enérgico  defensor da justiça social, da Teologia da Libertação e do método "ver, julgar e agir", da Ação Católica, criado pelo padre belga Joseph Cardijn. Para mim, Jorge foi um amigo, espécie de pai espiritual – nos movimentos de jovens católicos que ele liderava – e de pai intelectual – como professor que me ensinou a amar a literatura portuguesa, desde a do período Medieval até à do século XX.

Faleceu na noite/madrugada de Réveillon de 2019, em decorrência de um AVC. Semanas antes, visitei-o no apartamento da Av. São Geraldo, em Araraquara. Uma tarde inesquecível com ele, a esposa, Terezinha, e as filhas, Silvana e Maria Eugênia. Muitas lembranças, muitas risadas, muitas histórias memoráveis e um projeto que lhe propus: reunir suas memórias. Concordou. Combinamos que eu iria preparar uma projeto, com gravação de depoimentos em vídeo e pesquisa documental em sua extensa biblioteca particular, então abrigada na antiga casa da Rua 4 em frente ao Instituto de Educação "Bento de Abreu", onde estudei e fui aluna de Terezinha – professora de Química no curso Colegial-Científico. Por gostar de suas aulas, indiquei o curso de Química como segunda opção no exame vestibular. E escolhi a primeira opção, Letras. Foi assim que conheci Jorge.  

Infelizmente, não deu tempo para realizarmos aquele projeto. As memórias de Jorge ficam registradas nas de todos que com quem ele conviveram.  Para mim, ficam os muitos registros escritos de suas aulas, os livros que li por sua indicação, muitas lembranças, muitas histórias – que não cabem neste post - e suas lições que continuam vivas. De duas delas, em especial, não me esqueço. Certo dia, durante uma aula, em tarde quente de verão e sol araraquarenses, início dos anos 1970, olhou fixamente para as jovens alunas – havia apenas um aluno na turma – e em seu costumeiro tom irônico, foi dizendo o que vislumbrava para cada uma. À amiga sentada ao meu lado,  disse: “Você vai se casar com um marido rico e não vai ser professora”. E, para mim: “Você vai ser poeta”. Profético, nos dois casos. A outra  foi a mais importante. Uma eterna lição de vida e amor pelos livros e pela literatura: “Ler é uma maneira suave de esperar”.

Maria Mortatti  

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BORIS SPIVACOW E A QUEIMA DE LIVROS DURANTE A DITADURA MILITAR ARGENTINA / JOÃO SCORTECCI

O editor de livros argentino Boris Spivacow (José Boris Spivacow, 1915 –1994) fundou, no ano de 1966, o CEAL - Centro Editor de América Latina, uma das mais importantes editoras de Buenos Aires e do mundo. Sua destacada atividade no mundo editorial lhe rendeu muitos reconhecimentos e homenagens, incluindo o Prêmio Sul-Americano de Ciências Sociais (1989) e o título de Professor Honorário da Universidade de Buenos Aires (1994). O CEAL nasceu durante a ditadura militar do General Juan Carlos Onganía Carballo, presidente da Argentina, entre 29 de junho de 1966 e 8 de junho de 1970, quando foi deposto por um novo golpe de estado, comandado pelo general Alejandro Agustín Lanusse. A casa editorial funcionou até 1995, ano em que teve de fechar as portas. O CEAL se caracterizou no mercado pela qualidade de seus escritores e pela prática de preços sociais para seus livros. Em 26 de junho de 1980, num terreno vazio de Sarandi – província de Buenos Aires – vários caminhões descarregaram 1,5 milhão de livros – todos publicados pelo Centro Editor de América Latina – que foram queimados numa operação selvagem da ditadura militar argentina. Em “Historia universal de la destrucción de los libros”, o escritor, poeta, ensaísta e diretor da Biblioteca Nacional de Venezuela, Fernando Báez, relata como a escritora argentina Graciela Cabal (Graciela Beatriz Cabal, 1939 – 2004) resumiu o clima que imperava durante a ditadura militar Argentina: “No início tivemos muito medo; eu, cada vez que ia para o CEAL, dizia à minha vizinha de cima que, se até certa hora não retornasse, levasse meus três filhos à casa de minha mãe. Ao mesmo tempo nos acostumávamos a trabalhar nesse contexto de terror. O escritório onde eu me sentava – por exemplo – tinha um buraco, deixado pelo impacto de uma das bombas atiradas contra a editora, e eu colocava os papéis ao lado. De repente, nos chamavam do depósito, avisavam que havia uma batida policial e que vinham para a redação. Nós nos preparávamos, removíamos pastas, escondíamos agendas no jardim, queimávamos documentos. Dizíamos aos vizinhos que íamos fazer um churrasco e queimávamos papéis na banheira, que ficava escura de fumaça. Também as banheiras de nossas casas estavam escuras. Rasguei e queimei muitos livros, e foi uma das coisas das quais nunca pude me recuperar. Destruía e chorava porque não queria que meus filhos me vissem, porque não queria que contassem na escola, porque não queria que soubessem que sua mãe era capaz de destruir livros. Porque sentia muita vergonha.” Na Argentina, no dia 17 de junho, comemora-se o Dia Nacional do Editor, em homenagem ao editor Boris Spivacow, fundador do CEAL – Centro Editor de América Latina.

João Scortecci

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FIGUEIREDO PIMENTEL E A "BELLE ÉPOQUE" CARIOCA / JOÃO SCORTECCI

O poeta, cronista, jornalista, tradutor e autor de literatura infantil Alberto Figueiredo Pimentel (1869 – 1914), nasceu em Macaé, conhecida como a Capital Nacional do Petróleo, município do estado do Rio de Janeiro, distante, aproximadamente, 190 quilômetros da capital. Figueiredo Pimentel manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada “Binóculo” na "Gazeta de Notícias", periódico carioca, fundado por Manuel Carneiro, José Ferreira de Araújo e Elísio Mendes, que circulou de 1875 e 1956, chegando a ser um dos principais jornais da capital federal durante a Primeira República. Estreou na literatura, em 1893, com o livro de poesias, de nome “Fototipias”, no sentido de fotografias, imagens, instantâneos, clichês, retratando, então, a “Belle Époque” carioca. É autor da máxima: “O Rio civiliza-se”, slogan que até hoje, ilustra, o espírito carioca. Figueiredo Pimentel obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda. É considerado o primeiro cronista social da capital. Fototipia na artes gráficas é um processo fotomecânico de impressão que utiliza uma chapa de vidro coberta de gelatina. A técnica foi bastante utilizada nas oficinas de artes gráficas, no início do século XX. Figueiredo Pimentel, publicou, ainda, os livros: “Histórias da avozinha” (conto, 1952); “Histórias da Carochinha” (1894); “Livro mau” (poesia, 1895); O aborto, estudo naturalista (romance e novela, 1893); “O terror dos maridos” (romance e novela, 1897); “Suicida” (romance e novela, 1895) e “Um canalha” (romance e novela, 1895). Morreu jovem, aos 45 anos de idade, no dia 5 de fevereiro de 1914.

João Scortecci

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AFONSO SCHMIDT, REVISTA PAN E A LITERATURA INFANTIL DOS ANOS 1930 / JOÃO SCORTECCI

O jornalista, contista e romancista Afonso Schmidt (1890-1964), um anarquista “de carteirinha”, nasceu na cidade de Cubatão, litoral do estado de São Paulo, em 29 de junho. Fundou ainda jovem o jornal “Vésper” e fez parte da redação dos importantes periódicos libertários, “A Plebe” e “A Lanterna”, ao lado de figuras lendárias do movimento anarquista brasileiro, como Edgard Leuenroth e Oreste Ristori. Escreveu para os jornais “Folha de S. Paulo” e “O Estado de S. Paulo”. Na cidade do Rio de Janeiro, fundou o jornal “Voz do Povo”, que se tornou o órgão de imprensa da Federação Operária. Foi preso – várias vezes – por expressar o que pensava e combateu o fascismo e o clericalismo, por meio de panfletos ou de livros, peças teatrais e artigos de jornais. Recebeu os prêmios: Machado de Assis (1942) e Juca Pato (1963). Sua obra mais conhecida é “São Paulo de Meus Amores”, seleta de crônicas sobre a cidade, lançada em 1954, nas comemorações dos 400 anos da capital paulista. Publicou mais de 40 livros, entre eles "O Menino Filipe" (romance), "A Vida de Paulo Eiró" e "São Paulo de meus Amores" (crônicas), "O Tesouro de Cananéia" (contos) ou "A Primeira Viagem" (autobiográfico). Durante alguns anos, foi também colaborador da “Revista Pan” (1935-1945), semanário de propriedade do meu avô materno, o editor e gráfico José Scortecci. Schmidt assinava a coluna “A Nossa Estante” sobre livros e tendências do mercado livreiro. Em 26 de dezembro de 1935, Ano 1, Número 1, página 40, da PAN, escreveu: “Estamos no período em que a literatura para crianças alcança a maior difusão. Em São Paulo, principalmente, a venda desses livros apresenta aspecto bastante animador. Há autênticas feiras de livros de histórias (...). Cada vitrina de livraria é, com certeza, um deslumbramento para os pequenos leitores. Observa-se, porém, que esse gênero literário tão delicado, tão fino, onde há mundos novos a explorar, não encontra facilmente adeptos (...). Os que produzem há vinte anos são os que ainda hoje produzem, salvando minguadas exceções. O fundo da literatura infantil ainda é constituído pelos velhos Perrault, Lebrun, Conego Schmidt e o formidável Andersen. A literatura para crianças parece alheia às leis da oferta e da procura (...).” Afonso Schmidt morreu no dia 3 de abril de 1964, aos 73 anos de idade. 


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BIBLIOTECA ANCARA, NA TURQUIA / JOÃO SCORTECCI

Istambul, maior cidade da Turquia, antiga Constantinopla, foi a capital do Império Romano (330 – 395), do Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente) (395 – 1204 e 1261 – 1453), do Império Latino (1204 – 1261) e, após a tomada pelos turcos, do Império Otomano (1453 – 1922). Istambul, localizada entre o Corno de Ouro – estuário que divide o lado europeu da cidade de Istambul – e o Mar de Mármara – mar interior que separa o mar Negro do mar Egeu –, no ponto em que a Europa encontra a Ásia, foi na Idade Média a maior e mais rica cidade da Europa. A partir de 1923 deixou de ser capital, posto assumido por Ancara, localizada no centro da Turquia, distante 545 km de Istambul. Em 20 de fevereiro de 2020, Ancara inaugurou uma das maiores e mais belas bibliotecas do mundo, com mais de 4 milhões de livros e publicações em 134 idiomas diferentes. Ao todo são 201 quilômetros de estantes de livros, com capacidade de receber 5 mil pessoas. O espaço – 125.000 metros quadrados – está anexado ao complexo presidencial do país e foi idealizado pelo governo turco, junto a intelectuais, ONGs e grupos beneficentes. Parte do acervo foi obtido por meio de doações e, além dos materiais impressos, o acervo on-line disponibiliza 120 milhões de edições digitais de livros e 550.000 e-books.

João Scortecci


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OS RENEGADOS DE TREVISAN / JOÃO SCORTECCI

Todos nós conhecemos um João, um Luiz, um José, um Francisco e um Joaquim. Isso eu afirmo e ainda passo recibo, se precisar. Um detalhe: Luiz com “Z”. O nome “Joaquim” tem origem hebraica e seu significado é "Deus estabeleceu" ou "aquele que Deus elevou". A primeira versão do nome em português surgiu em Portugal, por volta do século XVIII. No Brasil, hoje, existem, cerca de 8.566 pessoas registradas com esse nome. Lendo a biografia do “Vampiro de Curitiba”, o talentoso e reservadíssimo curitibano Dalton Trevisan (1925 –     ) que no dia de ontem, 14 de junho, completou 99 anos de idade, encontrei referências sobre a “Revista Joaquim”, de cunho literário publicada entre os anos de 1946 e 1948 (21 edições) por Dalton Trevisan, Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. A escolha do título e do subtítulo da revista – “Homenagem a Todos os Joaquins do Brasil” –, tinha dupla intenção: popularizar o veículo e fornecer ao leitor um indicativo da principal característica do periódico: esconder as autorias de determinadas ideias. A revista teve colaboradores do porte de Poty Lazzarotto, Temístocles Linhares, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, Guido Viaro, Otto Maria Carpeaux, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Sergio Milliet, Lêdo Ivo e Mario Pedrosa. Também publicou inéditos em português de Louis Aragon, Tristan Tzara, T.S. Elliot, Garcia Lorca, Rainer Maria Rilke, André Gide e Jean Paul Sartre. Dalton Trevisan – não o conheço pessoalmente – é autor premiadíssimo: Prêmio Jabuti (1960, 1965, 1995 e 2011), Troféu APCA (1976), Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2003), Prêmios Literários da Fundação Biblioteca Nacional (2008, 2015), Prêmio Camões (2012), Prêmio Machado de Assis (2012) e Prêmio do Negrinho (2013). É autor de mais de 50 livros publicados e dois outros, renegados: “Sonata ao Luar” (1945) e “Sete Anos de Pastor” (1948). Detalhe oportuno: na “Revista Joaquim”, número 21, de dezembro de 1948, o escritor, pintor, crítico de arte e tradutor Sérgio Milliet (Sérgio Milliet da Costa e Silva, 1898 – 1966) escreveu crítica sobre um dos livros renegados de Dalton Trevisan: “Sete Anos de Pastor”. Aqui com os meus nervos: talvez, também, renegue dois ou três dos meus livros. Existe um perigo: ninguém esquece de lembrar dos renegados. Para muitos, livros "esgotados" e nada mais.  

João Scortecci  

  

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DARWIN E O LIVRO MAIS CENSURADO E INFLUENTE DA HISTÓRIA / JOÃO SCORTECCI

O naturalista, geólogo e biólogo britânico Darwin (Charles Robert Darwin, 1809 – 1882), célebre por seus avanços sobre evolução nas ciências biológicas, estabeleceu a ideia que todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum. Em 1859, publicou A origem das espécies e propôs a teoria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção natural e sexual e a luta pela sobrevivência resulta em consequências similares às da seleção artificial. A obra foi publicada em Londres, impressa por John Murray, com tiragem de 1.250 exemplares. A edição se esgotou em um dia, e a Igreja reagiu violentamente. O assunto polêmico gerou artigos de jornais, sátiras e caricaturas que debochavam do britânico. Em 1860, saiu uma segunda edição, que também se esgotou em poucos dias. O livro A origem das espécies provocou um escândalo na sociedade e foi rejeitado em colégios, bibliotecas do mundo e na comunidade científica. Há registro de que edições inteiras foram destruídas e queimadas. A teoria de Darwin – segundo a qual todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum – precisou de décadas para ganhar aceitação e reconhecimento da sociedade e da comunidade científica. Hoje, a teoria de Darwin é considerada o mecanismo unificador para explicar a vida e a diversidade na Terra. Pesquisa realizada no Reino Unido durante a Academic Book Week (2019) elegeu A origem das espécies, de Charles Robert Darwin, a obra censurado mais influente da história. Na lista dos 20 títulos censurados mais influentes da história – a título de curiosidade – aparecem: 1984 (George Orwell), Uma vista da ponte (Arthur Miller), Amado (Toni Morrison), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), Country girls (Edna O'Brien), Seus materiais escuros (Philip Pullman), Eu sei por que o pássaro engaiolado canta (Maya Angelou), O amante de Lady Chatterley (D. H. Lawrence), Ratos e homens (John Steinbeck), Direitos do Homem (Thomas Paine), Versos satânicos (Salman Rushdie), O apanhador no campo de centeio (J. D. Salinger), A cor púrpura (Alice Walker), As vinhas da ira (John Steinbeck), A metamorfose (Franz Kafka), Para matar um Mockingbird (Harper Lee) e Ulisses (James Joyce). Darwin, em seus últimos anos de vida, publicou outros livros polêmicos: A variação dos animais e plantas sob a ação da domesticação (1868), A descendência humana e a seleção sexual (1871) e Expressão das emoções no homem e nos animais (1872).

João Scortecci

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“DIA DAS LETRAS GALEGAS”, ROSALÍA DE CASTRO E A MORTE / JOÃO SCORTECCI

O dia 17 de maio foi instituído em 1963 como o “Dia das Letras Galegas”, quando se comemoraram os 100 anos de edição da primeira obra escrita em língua galega (língua ibero-românica ocidental de caráter oficial da Comunidade Autônoma da Galiza), “Cantares Gallegos”, da escritora espanhola Rosalía de Castro (Maria Rosalía Rita, 1837 – 1885). Nascida em Santiago de Compostela, capital da Comunidade Autónoma da Galiza, noroeste de Espanha, Rosalía de Castro é considerada a fundadora da literatura galega moderna. Escreveu tanto em prosa quanto em verso, utilizando o galego e o castelhano. Sua obra esteve profundamente marcada pelas circunstâncias que rodearam sua vida, como sua origem, os problemas econômicos, a morte dos seus filhos e sua frágil saúde. Em 1863, em Vigo, cidade da costa noroeste da Espanha, o seu primeiro grande livro, "Cantares Gallegos", foi publicado por seu marido, o historiador galego Manuel Murguía (1833 – 1923), que geriu, sem a licença da esposa, a impressão de um “poemário”, que fixa o começo de uma nova era para a poesia galega e foi a base do ressurgimento da literatura nessa língua, até então extinta como língua escrita. Em 1880, Rosalía de Castro publicou “Folhas Novas”, praticamente uma continuação de “Cantares Gallegos”. Em castelhano, publicou “La flor” (1857), “A mi madre” (1863), “En las orillas del Sar” (1884) e o romance “El caballero de las botas azules” (1867), obras marcadas pelo Romantismo literário. Rosalía de Castro passou os últimos anos da sua vida em Padrón, na província espanhola de Galiza, na Casa da Matanza, que depois se tornaria casa-museu. A morte acidental do seu filho mais novo aos dois anos de idade e sua doença amargaram os seus derradeiros anos de vida. Morreu de câncer, em 1885, aos 48 anos de idade. Antes de morrer, pediu aos filhos que queimassem os trabalhos literários que, reunidos e ordenados por ela mesma, não foram publicados. Foi enterrada no campo-santo da Adina, na Galiza. Anos mais tarde, em 1891, seus restos foram transladados para o Panteão de Galegos Ilustres, no convento de São Domingos de Bonaval, em Santiago de Compostela. Entre os poetas – muitos pensam assim – há um pacto pós-morte: “O que não for publicado ou ainda não concluído em vida, deve ser – literalmente – esquecido e queimado!”.  

João Scortecci


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KARL KRAUS, O PANFLETÁRIO DO PAPEL / JOÃO SCORTECCI

Gosto da palavra “panfleto”, o que ela representa e de sua importância na divulgação em massa de uma ideia ou marca. Um sobrevivente: prático e funcional, em tempos de mídia eletrônica. Quem não gosta de um panfleto de rua? Eu adoro. Digo o mesmo dos cartões de visita: insubstituíveis! Alguns – pobres de espírito – chamam-no de folheto. Um folheto é um panfleto que não deu certo: tempo, papel e tinta perdidos! Os panfletos são revolucionários, criativos, irados de ideias, poesia e paixão. No século XII, circulou na Inglaterra um poema de amor escrito em latim, com o nome de “Pamphilus seu de amoré”, anônimo, que se tornou popular e foi traduzido para inglês como “Phamphlet”. Até os fins do século XIV a palavra “Phamphlet” era usada em inglês para designar qualquer texto pequeno, de tamanho menor do que os enormes livros manuscritos daquela época, antes da invenção da imprensa. O dramaturgo, jornalista, ensaísta, aforista e poeta austríaco Karl Kraus (1874 – 1936), indicado duas vezes ao Nobel de Literatura, é considerado como um dos maiores escritores satíricos em língua alemã do século XX e um panfletário “casca de ferida”. Editor e único redator durante quase 40 anos da revista “A Tocha” (“Die Fackel”), denunciava com grande virulência a corrupção da língua, responsabilizando principalmente a imprensa da época. Karl Kraus, filho de um rico fabricante e comerciante de papel, viveu para seus escritos e organizou sua vida em torno de seu trabalho de editor, escritor e panfletário. Durante a vida, tomou posições liberais, conservadoras, socialistas e clericais. Tornou-se membro da Igreja católica, mas abandonou o catolicismo em 1922, vinte e três anos depois que, da mesma forma, renunciou ao judaísmo. Em 1933, escreveu a sátira “A Terceira Noite de Walpurgis” (“Die Dritte Walpurgisnacht”), sobre a ideologia nazista, que começa com a famosa frase, "Mir fällt zu Hitler nichts ein" ("Nada me ocorre sobre Hitler."). Karl Kraus morreu em Viena, em 12 de junho de 1936, aos 62 anos de idade, depois de ter sido atropelado por um ciclista. Para Karl Kraus, a linguagem era o desenvolvedor mais importante dos males do mundo: “que a mais antiga das palavras seja estranha de perto, recém-nascida, e cause dúvida se está viva ou não. Então ela vive!”.

João Scortecci


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ADRIANO NOGUEIRA E OS REGISTROS LITERÁRIOS / JOÃO SCORTECCI

O tempo é veloz! Rosani Abou Adal ligou para mim, convidando: “Scortecci, você não quer escrever para o jornal uma nota sobre os 20 anos da morte do Adriano Nogueira?” Confesso que, antes de dizer “sim”, assustei-me com a velocidade do tempo: 20 anos! Inacreditável! O advogado e escritor Adriano Nogueira nasceu no dia 8 de setembro de 1928, na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo. Faleceu em 2004, aos 76 anos de idade. Em 1989, foi um dos fundadores, junto à jornalista e escritora Rosani Abou Adal, do jornal Linguagem Viva.

Aproximamo-nos, Adriano Nogueira e eu, durante a realização do I Concurso de Poesias Linguagem Viva, em 1993, quando editamos os 30 poemas classificados em uma antologia publicada com apoio da Fundação Biblioteca Nacional, União Brasileira de Escritores e Scortecci Editora. Em 1998, a Scortecci Editora publicou o seu livro Registros Literários, seleta de artigos da coluna “Efemérides Literárias”, em que Adriano Nogueira resgata parte da memória de escritores piracicabanos: Almeida Fischer, João Chiarini, Thales de Andrade, Mário Neme, Cecílio Elias Netto, Lino Vitti, Francisco Lagreca, Ortiz Monteiro, David Antunes, Léo Vaz e João Baptista de Souza Negreiros Athayde.

Registros Literários foi prefaciado pelo escritor cearense Caio Porfírio Carneiro, na época secretário-geral da UBE – União Brasileira de Escritores, que assim descreve Adriano Nogueira: "Piracicabano de nascimento de residência a vida inteira, fez o que achou justo: reuniu no livro, em grande parte dele, retratos e registros de figuras e obras dos filhos da terra, que deixaram notável legado para o Estado e o País." 

Adriano Nogueira foi também Secretário da Academia Piracicabana de Letras e Diretor da União Brasileira de Escritores, em várias gestões. Em 1990, recebeu o troféu Mirante, destinado ao destaque cultural do ano de 1990, em Piracicaba. E, nessa cidade, foi um dos fundadores do Diretório Municipal do Partido Socialista Brasileiro, junto ao professor e um dos mais importantes folcloristas brasileiro, o piracicabano João Chiarini (1919 – 1988).

Sensível e inesquecível, Adriano Nogueira nos deixou importante legado sobre a literatura e a cultura piracicabanas. Nas "Efemérides Literárias", ajudou a escrever parte das histórias do jornal Linguagem Viva, hoje memorial da literatura brasileira. No livro Registros Literários, perpetuou-se, registrando com sabedoria e inteligência, traços da história da literatura brasileira.

João Scortecci



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POETA TORQUATO TASSO – O AMOR É UM DESEJO DE BELEZA / JOÃO SCORTECCI

Sorrento é uma comuna italiana da região da Campânia, província de Nápoles, Itália, onde nasceu o poeta Torquato Tasso, em 11 de março de 1544. Jerusalém libertada (Gerusalemme Liberata), sua obra-prima, é um poema épico publicado em 1581, no qual são narrados, em versão ficcionalizada, combates entre cristãos e muçulmanos, no fim da Primeira Cruzada, proclamada em 1095, pelo papa Urbano II, com o objetivo de auxiliar os cristãos ortodoxos do Leste e libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. Com base nesses fatos históricos, o poeta narra episódios em que os cavaleiros cristãos, liderados por Godofredo de Bulhão, combatem os muçulmanos, a fim de levantar o Cerco de Jerusalém em 1099. O poema é composto em estrofes de oito versos, distribuídos por oito cantos de extensão variável. Uma das características mais marcantes do texto é o conflito entre os impulsos do coração e as demandas do dever, como acontece entre os personagens Tancredo e Clorinda: ele, um soldado cristão; ela, uma guerreira muçulmana. O poema teve grande repercussão na época, pois o Império Otomano, também conhecido como Império Turco, fundado no fim do século XIII pelo líder tribal Oguz Osmã, estava se expandindo e representava uma ameaça para a Europa. Em 1576, Torquato Tasso começou a dar mostras de descontrole mental – ficou visto como perigoso – e a sofrer de mania de perseguição. Esteve várias vezes recolhido em conventos e manicômios, e, numa dessas ocasiões, roubaram-lhe os manuscritos de Jerusalém Libertada, que acabou pirateado e publicado, sem sua autorização. Ele concluiu a obra em 1575, mas passou vários anos revisando o texto antes de sua publicação em 1581. A edição do poema épico em dois volumes foi concluída em 1745, pelo editor e jornalista veneziano Giovanni Battista Albrizzi (1698 – 1777), membro de uma família ativa no comércio livreiro de Veneza. Torquato Tasso morreu aos 51 anos de idade, em 25 de abril de 1595, poucos dias antes de ser coroado “Rei dos poetas”, pelo Papa Urbano II. Até o início do século XX, era um dos poetas mais lidos na Europa e continua sendo um dos poetas mais célebres da literatura italiana e universal. São dele estas também célebres palavras: “Perdido é todo o tempo que em amor não é gasto” e “O amor é um desejo de beleza”.

João Scortecci

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COPYRIGHT E O ESTATUTO DA RAINHA ANA / JOÃO SCORTECCI

O uso pela primeira vez do termo “copyright” data de 1701, na Stationers Company (Worshipful Company of Stationers and Newspaper Makers), companhia real inglesa, que detinha o monopólio da indústria editorial e era, oficialmente, responsável por estabelecer e fazer cumprir os chamados regulamentos de reprodução e venda de obras literárias, até a promulgação do “Estatuto da Rainha Ana”, de 10 de abril de 1710. Foi a Rainha Ana (1665 – 1714) quem uniu em um único Estado soberano a Inglaterra e a Escócia, no chamado Reino da Grã-Bretanha. Existem correntes que sujeitam o nascimento do direito de autor à invenção da imprensa, na Europa, no século XV, criada a partir da invenção da prensa de tipos moveis pelo alemão Johannes Gutenberg. É sabido que muito antes da invenção da imprensa na Europa, a China e a Coréia já contavam com técnicas de impressão, e não se pode esquecer, também, que já havia noções de propriedade intelectual na Roma Antiga. No final do século XIX, vários Estados, assinaram o primeiro acordo multilateral sobre Proteção das Obras Literárias e Artísticas, na chamada “Convenção de Berna”, de 9 de setembro de 1886, na Suíça. A Convenção foi revista em Paris (1896) e Berlim (1908), completada em Berna (1914), revista em Roma (1928), Bruxelas (1948), Estocolmo (1967) e Paris (1971) e emendada em 1979. Desde 1967, a Convenção é administrada pela World Intellectual Property Organization (WIPO), incorporada às Nações Unidas em 1974. No Brasil, a Lei n. 9.610 de 19/02/1998 regula os direitos de autor. Esse direito exclusivo do autor (art. 5. º, XXVII, da Constituição Federal de 1988), constitui-se como um direito moral (criação) e um direito patrimonial (pecuniário) de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar. No Brasil – país signatário da Convenção de Berna, pelo Decreto Legislativo nº 94, de 4 de dezembro de 1974 – uma obra entra em domínio público após 70 (setenta) anos, contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao falecimento do autor ou do último coautor, se houver. Como regra, o domínio público refere-se tão somente aos direitos patrimoniais do autor, não se aplicando aos direitos morais, os quais são imprescritíveis. O espírito humano agradece!

João Scortecci

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CLEONICE BERARDINELLI: VIVER NÃO É PRECISO / JOÃO SCORTECCI

Dói pensar – e saber, entristecido, que não pude, não tive, a oportunidade de conhecer pessoalmente a professora e acadêmica Cleonice Berardinelli (Cleonice Seroa da Mota Berardinelli, 1916 – 2023). Perdi, com a minha falta de sorte – ou desatenção, provavelmente – a oportunidade de conhecer junto, do seu jeito, Fernando Pessoa e sua legião de heterônimos. Pobre de mim! Numa matéria na TV – quando da sua morte, em 2023 – a vi declamando versos de Pessoa. Conheci, convivi, fui amigo e próximo de muitos “imortais”. E daí? Nesses 50 anos de livros – ininterruptos – a trupe, covardemente, navegou contra o vento, velozmente. Navegar é preciso? Conto – na dor que só cresce com a maré – apenas os perdidos, os náufragos. E daí? Estou perto dos 70 anos – eu sei, eu sinto – que o tempo ceifador não me perdoará, nunca. Dói nos dias ruins – dia sim, dia não – perder piratas, sereias, marujos e heterônimos da palavra. E daí? Tudo falta de mim mesmo.   

João Scortecci   


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