Pesquisar

CRISÁLIDAS MACHADIANAS: EFUSÃO DE ASAS LIBERTAS! / JOÃO SCORTECCI

Crisálidas e Corina: metamorfose! Machado (Joaquim Maria Machado de Assis, 1839 - 1908) tinha, na época, 25 anos de idade, isso no ano de 1864. Terceiro ciclo de vida de uma borboleta: é quando a lagarta atinge o seu ciclo completo, solta a pele e produz a dura casca (casulo) protetora da crisálida. Depois, borboletas no estômago: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro” e muitos outros. Crisálidas, originalmente, tinha 29 poemas, 17 dos quais foram cortados pelo poeta quando editou “Poesias Completas”, em 1901. Entre os 17 poemas da obra “Os Versos a Corina”, os dedicados à sua primeira musa, cuja identidade ficou escondida no casulo do coração e nunca, jamais, foi revelada. Amor por crisálidas! Machado, maior escritor brasileiro, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Machado e seus segredos de lagarta! “Amemos! diz a flor à brisa peregrina, / Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor; / Cantemos esta lei e vivámos, Corina, / De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.”. Gosto de pensar que toda borboleta voa o seu derradeiro destino. Muitos chamam de o “terceiro ciclo de vida”. Desapego absoluto! Corina pode ter sido o último amor maduro, pode ter sido uma fantasia qualquer – passageira – ou ter sido, a mutação da alma ou até mesmo o próprio desejo de “metamorfose” machadiana, e ser, infinitamente: o gozo da lagarta no cio, o corpo protetor das formas, do casulo rompido, ou, ainda, uma efusão de asas libertas em dia de queda livre. 

João Scortecci

Ler Mais

LIVRO DAS MENTIRAS / JOÃO SCORTECCI

Livro de autor aflito é tortura. Novato, então: um desespero só. Pior que tudo: quando o livro é o nosso. Muito sofrimento. Entregamos o livro – quase – pronto, com a promessa de depois – antes de liberar para a gráfica –dar uma olhada final, uma arredondada. Mentira! Quando o livro volta da diagramação, já no boneco, bate aquele desespero mortal. Transpiração! Muda aqui, muda acolá, muda, muda. Jura que escrevi isso? Mexeram no meu arquivo? Doideira. Uma vez copiei o arquivo do livro já diagramado no “Bloco de notas”, depois de volta para o "Word" e reescrevi tudo. Livro novo? Sim. Aquele outro vai ficar para depois. Menti. Já que era outro livro, aproveitei e troquei também o título. Tenho um arquivo só com títulos, ideias e rascunhos. Vez por outra vou lá e trabalho – aleatoriamente – num deles. Qual? Um deles. Mil anos: é o tempo de que vou precisar para terminá-los. Mentira. Nós, escritores, somos mentirosos e covardes. Vivemos com a cabeça nas nuvens. Quando a coisa aperta, filosofamos com os deuses: a poesia salva! Em 50 anos trabalhando com livros – escrevendo, editando e imprimindo – só conheci um escritor honesto, com os pés no chão. Foi o Zacarias, viúvo, na época com 60 anos, da cidade de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Fechou contrato de edição do livro e pediu 30 dias para concluir a obra, um romance policial, algo assim. Voltou na data combinada e sentenciou: “Não consigo terminar o livro! Estou desistindo.”. “Quer ajuda?”, perguntei. “Não, obrigado.” Desistiu de vez. Foi embora feliz, aliviado, resolvido. A maioria de nós mente, inventa desculpas, conversa para boi dormir: “estou finalizando”; “falta pouco”; “fazendo ajustes pontuais”; “dando a última olhada”; “na revisão com um amigo”; “no prelo” ... Já escutei de tudo: esse será o meu último livro! Pergunta: “E sua obra-prima: não vai escrevê-lo?” “Chega! Chega!”, mentimos, sempre. Todas as vezes em que começo novo lembro do Zacarias, o escritor feliz, calmo, resolvido e mortal. 

João Scortecci    


Ler Mais

DRUMMOND E O DIA 13 DE MAIO DE 2012 / JOÃO SCORTECCI

O poeta Drummond, antes do sol e aos olhos do tempo, ligou-me, tristonho, reclamando da vida, assim que soube do que fizeram com sua estátua da orla de Copacabana, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Estava deprimido e chutando pedras. Estava travestido de “José” e vazio, vencido pelo vasto mundo que é a vida. Pobre poeta Drummond! Falou-me de Itabira – quase nada – da sua terra natal, da sua infância, dos amigos que se foram e das pedras agudas que habitam a imortalidade. “Drummond, o que aconteceu?”, perguntei-lhe. “Roubaram-me os óculos. Assim não consigo ver as palavras, os amores, o sentimento do mundo...", disse-me. Senti sua dor. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”, resmungou. No silêncio do claro enigma, poetamos perdas. Depois, desligou o telefone e partiu – veloz – a galope. 

João Scortecci


Ler Mais

BIENAL DO LIVRO: COBRA GIGANTE, PEDAÇOS DE MELÃO E LIVROS! / JOÃO SCORTECCI

Da Bienal Internacional do Livro de São Paulo de 1994, realizada no Parque do Ibirapuera, Pavilhão Ciccillo Matarazzo, participei uma única vez, a última, antes de o evento mudar de local. A Bienal do livro de São Paulo, acontecimento realizado a cada dois anos, nos anos pares, acontece desde 1970, pelos espaços do Ibirapuera, do Anhembi, Expo Center Norte, São Paulo Expo e agora, depois de 54 anos, novamente no Anhembi, reformado e ampliado. Em 1994, decidi participar pela primeira vez, de uma bienal do livro. A Scortecci Editora tinha, na época, 16 anos de funcionamento, e a oportunidade era, sem pensar muito, um ato de loucura. Comprei o espaço no último dia possível. Olhei a planta do evento – um labirinto – ou melhor, um caracol, obra do arquiteto Niemeyer, no coração do parque, com 40 mil m² de área e 250 m de extensão. “Uma cobra gigante?”, comentei. “Isso mesmo: o público entra pela boca da cobra e sai pelo rabo”. Foi o que me disseram. Risos. “Formato de cobra?”, quis saber, por curiosidade. “Isso. A ideia é simples: fazer com que o público caminhe, obrigatoriamente, passando por todos os estandes!” Foi o que um diretor da Câmara Brasileira do Livro, entidade promotora do evento, explicou-me. "Um curral!", pensei. Nas entranhas da planta, no meio do corpo da cobra gigante, num vão, embaixo da rampa de acesso ao piso superior, localizei um espaço livre, de 20 m². “Quero este!”, apontei com o dedo. Na verdade, era o último espaço disponível. Fiz o cheque. Fui embora feliz, radiante, mordendo as orelhas de alegria. "Eu estou na Bienal do Livro!", gritei. Era uma sexta-feira, final de tarde. No sábado, acordei matutando e pensando na loucura que havia feito. Pensei: dei o passo maior que as pernas. E o pior: comecei a desconfiar do espaço. No domingo, tive um pesadelo terrível: uma cobra gigante estava me comendo, vivo, pelos pés! A ficha, então, caiu: um espaço maravilhoso, no meio da cobra, dando sopa? Algo estranho. Certeza: caí numa roubada. Juro: pensei em cancelar a compra e depois pular no laguinho do Parque do Ibirapuera. Manchete: "Editor afoga-se no laguinho do Ibirapuera". Algo assim. Guardei a cisma e fui, então, à luta. De lá pra cá, já participamos de 15 edições da Bienal Internacional do Livro de São Paulo e, ainda, tivemos uma participação no 1º Salão do Livro de São Paulo, em 1999, e outra, durante a pandemia da Covid-19, na 1ª Bienal Internacional Virtual do Livro, em 2020. Em 1994, no final do primeiro dia do evento, um sábado, tudo havia transcorrido maravilhosamente bem. Deixei o espaço feliz, radiante, pisando nos cascos, pronto para a maratona de dez dias de Bienal. No segundo dia, um domingo, fui um dos primeiros a chegar ao pavilhão do Ibirapuera. Passei pela cabeça da cobra – local onde estavam as grandes editoras – e mirei o meu destino: chegar até o vão livre, embaixo da marquise, da rampa de acesso ao piso superior, onde estaria, então, o estande da Scortecci. Estava lá. Contemplei, de longe, os livros perfilados nas estantes de madeira, num total, aproximadamente, de uns 300 títulos. Parei na entrada do estande e gritei: “Não! Não!” Alguém da segurança me aguardava, sentado numa bancada. “O que aconteceu aqui?”, perguntei. O segurança apontou para o mezanino e disse, calmamente: “Sabia que lá em cima funciona um restaurante self-service?”. “E eu com isso?”, protestei. Cenário: os livros da Scortecci estavam sujos – emporcalhados – com restos de comida. Alguém “varreu” e jogou a sujeira rampa abaixo, explicou-me o segurança. Na estante principal, central do estande, onde havia arrumado os lançamentos do ano, um troféu inesquecível: pedaços de melão. Fui reclamar e o que eu escutei, até, hoje, dói nas tripas: “A noite você precisa cobrir as estantes com os livros com um plástico!” Deveria? Escutei a "recomendação" de um diretor, de plantão. Isso, talvez, explique a fama que tenho, até hoje, depois de 30 anos de bienais, de reclamar, sempre, sistematicamente, de alguma coisa. Virou folclore! Respondo com o coração: "Não gosto de melão e tenho medo de cobra!".  

João Scortecci     


 


Ler Mais

GAZZETTA: MOEDA VENEZIANA E A GAZETA DA RESTAURAÇÃO / JOÃO SCORTECCI

“Gazeta” ou “gazzetta” – no dialeto veneziano, “gaxeta” – é o nome de uma moeda de prata da Sereníssima República de Veneza, no valor de dois centavos, do século XVI. O nome vem de empréstimo. Havia um título de 0,948 gramas e um peso de 0,24 gramas. No anverso, estava a figura do Juiz sentado e, no reverso, a do Leão de São Marcos. Foi emitida a partir de 1539, durante o governo do Doge Pietro Lando (1462 – 1545). Foi cunhada com esse peso até 1559. Em 1563, foi publicada a primeira “folha de avisos”, uma folha de notícias vendida ao público pelo preço de dois centavos. A partir de então, tornou-se um epíteto – palavra ou expressão que se associa a um nome ou pronome para qualificá-lo – para jornal, tipo específico de publicação periódica, quando os primeiros jornais venezianos custavam uma gazeta. O primeiro jornal em português, “A Gazeta da Restauração” (formato 14 x 20 cm, 12 páginas) foi fundado em 1641, pelo alvará régio concedido ao poeta, impressor e livreiro Manuel de Galhegos (1597 – 1665), um ano depois de Portugal recuperar a independência, em 1º de dezembro de 1640. Serviu de instrumento de propaganda de D. João IV (1604 – 1656), apelidado de “O Restaurador”, para consolidar o poder e combater os “feitos” dos espanhóis, durante longos 60 anos enraizados no espírito do povo português, principalmente entre a nobreza. Entre 1580 e 1640, a linha fronteiriça que separa a Espanha de Portugal deixou de existir, e os dois países formaram um só reino, chamado de União Ibérica. A primeira edição de “A Gazeta da Restauração” teve a marca tipográfica da Oficina de Lourenço de Anveres, sediada em Lisboa. As oito seguintes publicações foram impressas na tipografia do jornalista Domingos Lopes Rosa, com a redação de João Franco Barreto e depois do frei Francisco Brandão. “A Gazeta da Restauração” ganhou, ainda, uma nona edição, a última, em julho de 1642. Em 19 de agosto de 1642, por força de uma lei, foi proibida sua impressão e de todas as gazetas com notícias do reino ou de fora, com a seguinte argumentação: “Em razão da pouca verdade de muitas e do mau estilo de todas elas”.

João Scortecci

Ler Mais

JORGE CURY: "LER É UMA MANEIRA SUAVE DE ESPERAR" / MARIA MORTATTI

Jorge Cury (12.04.1932 – 01.01.2019) foi professor de Literatura Portuguesa no curso de Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (Unesp) e um dos fundadores (em 1983) do Centro de Estudos Portugueses da faculdade. Conviveu com Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro, ilustres poetas, professores e críticos literários portugueses, que lecionaram na faculdade, nos anos 1960, autoexilados no Brasil por causa das perseguições do regime político autoritário de Salazar, durante o Estado Novo (1933 – 1974).  

As principais características de Jorge Cury eram o sorriso constante e ironia contundente; simples, afetuoso e firme; católico convicto, enérgico  defensor da justiça social, da Teologia da Libertação e do método "ver, julgar e agir", da Ação Católica, criado pelo padre belga Joseph Cardijn. Para mim, Jorge foi um amigo, espécie de pai espiritual – nos movimentos de jovens católicos que ele liderava – e de pai intelectual – como professor que me ensinou a amar a literatura portuguesa, desde a do período Medieval até à do século XX.

Faleceu na noite/madrugada de Réveillon de 2019, em decorrência de um AVC. Semanas antes, visitei-o no apartamento da Av. São Geraldo, em Araraquara. Uma tarde inesquecível com ele, a esposa, Terezinha, e as filhas, Silvana e Maria Eugênia. Muitas lembranças, muitas risadas, muitas histórias memoráveis e um projeto que lhe propus: reunir suas memórias. Concordou. Combinamos que eu iria preparar uma projeto, com gravação de depoimentos em vídeo e pesquisa documental em sua extensa biblioteca particular, então abrigada na antiga casa da Rua 4 em frente ao Instituto de Educação "Bento de Abreu", onde estudei e fui aluna de Terezinha – professora de Química no curso Colegial-Científico. Por gostar de suas aulas, indiquei o curso de Química como segunda opção no exame vestibular. E escolhi a primeira opção, Letras. Foi assim que conheci Jorge.  

Infelizmente, não deu tempo para realizarmos aquele projeto. As memórias de Jorge ficam registradas nas de todos que com quem ele conviveram.  Para mim, ficam os muitos registros escritos de suas aulas, os livros que li por sua indicação, muitas lembranças, muitas histórias – que não cabem neste post - e suas lições que continuam vivas. De duas delas, em especial, não me esqueço. Certo dia, durante uma aula, em tarde quente de verão e sol araraquarenses, início dos anos 1970, olhou fixamente para as jovens alunas – havia apenas um aluno na turma – e em seu costumeiro tom irônico, foi dizendo o que vislumbrava para cada uma. À amiga sentada ao meu lado,  disse: “Você vai se casar com um marido rico e não vai ser professora”. E, para mim: “Você vai ser poeta”. Profético, nos dois casos. A outra  foi a mais importante. Uma eterna lição de vida e amor pelos livros e pela literatura: “Ler é uma maneira suave de esperar”.

Maria Mortatti  

Ler Mais

BORIS SPIVACOW E A QUEIMA DE LIVROS DURANTE A DITADURA MILITAR ARGENTINA / JOÃO SCORTECCI

O editor de livros argentino Boris Spivacow (José Boris Spivacow, 1915 –1994) fundou, no ano de 1966, o CEAL - Centro Editor de América Latina, uma das mais importantes editoras de Buenos Aires e do mundo. Sua destacada atividade no mundo editorial lhe rendeu muitos reconhecimentos e homenagens, incluindo o Prêmio Sul-Americano de Ciências Sociais (1989) e o título de Professor Honorário da Universidade de Buenos Aires (1994). O CEAL nasceu durante a ditadura militar do General Juan Carlos Onganía Carballo, presidente da Argentina, entre 29 de junho de 1966 e 8 de junho de 1970, quando foi deposto por um novo golpe de estado, comandado pelo general Alejandro Agustín Lanusse. A casa editorial funcionou até 1995, ano em que teve de fechar as portas. O CEAL se caracterizou no mercado pela qualidade de seus escritores e pela prática de preços sociais para seus livros. Em 26 de junho de 1980, num terreno vazio de Sarandi – província de Buenos Aires – vários caminhões descarregaram 1,5 milhão de livros – todos publicados pelo Centro Editor de América Latina – que foram queimados numa operação selvagem da ditadura militar argentina. Em “Historia universal de la destrucción de los libros”, o escritor, poeta, ensaísta e diretor da Biblioteca Nacional de Venezuela, Fernando Báez, relata como a escritora argentina Graciela Cabal (Graciela Beatriz Cabal, 1939 – 2004) resumiu o clima que imperava durante a ditadura militar Argentina: “No início tivemos muito medo; eu, cada vez que ia para o CEAL, dizia à minha vizinha de cima que, se até certa hora não retornasse, levasse meus três filhos à casa de minha mãe. Ao mesmo tempo nos acostumávamos a trabalhar nesse contexto de terror. O escritório onde eu me sentava – por exemplo – tinha um buraco, deixado pelo impacto de uma das bombas atiradas contra a editora, e eu colocava os papéis ao lado. De repente, nos chamavam do depósito, avisavam que havia uma batida policial e que vinham para a redação. Nós nos preparávamos, removíamos pastas, escondíamos agendas no jardim, queimávamos documentos. Dizíamos aos vizinhos que íamos fazer um churrasco e queimávamos papéis na banheira, que ficava escura de fumaça. Também as banheiras de nossas casas estavam escuras. Rasguei e queimei muitos livros, e foi uma das coisas das quais nunca pude me recuperar. Destruía e chorava porque não queria que meus filhos me vissem, porque não queria que contassem na escola, porque não queria que soubessem que sua mãe era capaz de destruir livros. Porque sentia muita vergonha.” Na Argentina, no dia 17 de junho, comemora-se o Dia Nacional do Editor, em homenagem ao editor Boris Spivacow, fundador do CEAL – Centro Editor de América Latina.

João Scortecci

Ler Mais

FIGUEIREDO PIMENTEL E A "BELLE ÉPOQUE" CARIOCA / JOÃO SCORTECCI

O poeta, cronista, jornalista, tradutor e autor de literatura infantil Alberto Figueiredo Pimentel (1869 – 1914), nasceu em Macaé, conhecida como a Capital Nacional do Petróleo, município do estado do Rio de Janeiro, distante, aproximadamente, 190 quilômetros da capital. Figueiredo Pimentel manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada “Binóculo” na "Gazeta de Notícias", periódico carioca, fundado por Manuel Carneiro, José Ferreira de Araújo e Elísio Mendes, que circulou de 1875 e 1956, chegando a ser um dos principais jornais da capital federal durante a Primeira República. Estreou na literatura, em 1893, com o livro de poesias, de nome “Fototipias”, no sentido de fotografias, imagens, instantâneos, clichês, retratando, então, a “Belle Époque” carioca. É autor da máxima: “O Rio civiliza-se”, slogan que até hoje, ilustra, o espírito carioca. Figueiredo Pimentel obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda. É considerado o primeiro cronista social da capital. Fototipia na artes gráficas é um processo fotomecânico de impressão que utiliza uma chapa de vidro coberta de gelatina. A técnica foi bastante utilizada nas oficinas de artes gráficas, no início do século XX. Figueiredo Pimentel, publicou, ainda, os livros: “Histórias da avozinha” (conto, 1952); “Histórias da Carochinha” (1894); “Livro mau” (poesia, 1895); O aborto, estudo naturalista (romance e novela, 1893); “O terror dos maridos” (romance e novela, 1897); “Suicida” (romance e novela, 1895) e “Um canalha” (romance e novela, 1895). Morreu jovem, aos 45 anos de idade, no dia 5 de fevereiro de 1914.

João Scortecci

Ler Mais

AFONSO SCHMIDT, REVISTA PAN E A LITERATURA INFANTIL DOS ANOS 1930 / JOÃO SCORTECCI

O jornalista, contista e romancista Afonso Schmidt (1890 – 1964), um anarquista de carteirinha, nasceu na cidade de Cubatão, litoral do estado de São Paulo, em 29 de junho. Fundou ainda jovem o jornal “Vésper” e fez parte da redação dos importantes periódicos libertários, “A Plebe” e “A Lanterna”, ao lado de figuras lendárias do movimento anarquista brasileiro como Edgard Leuenroth e Oreste Ristori. Escreveu para os jornais “Folha de S. Paulo” e “O Estado de S. Paulo”. Na cidade do Rio de Janeiro, fundou o jornal “Voz do Povo”, que se tornou o órgão de imprensa da Federação Operária. Foi preso – várias vezes - por expressar o que pensava e combateu o fascismo e o clericalismo, por meio de panfletos ou de livros, peças teatrais e artigos de jornais. Recebeu os prêmios: Machado de Assis (1942) e Prêmio Juca Pato (1963). Sua obra mais conhecida é “São Paulo de Meus Amores”, seleta de crônicas sobre a cidade, lançada em 1954, nas comemorações dos 400 anos da cidade de São Paulo. Publicou mais de 40 livros, entre eles "O Menino Filipe" (romance), "A Vida de Paulo Eiró" e "São Paulo de meus Amores" (crônicas), "O Tesouro de Cananéia" (contos) ou "A Primeira Viagem" (autobiográfico). Durante alguns anos, foi também colaborador da “Revista Pan” (1935 – 1945), semanário, de propriedade do meu avô materno, o editor e gráfico José Scortecci. Schmidt assinava a coluna “A Nossa Estante” sobre livros e tendências do mercado livreiro. Em 26 de dezembro de 1935, Ano 1, Número 1, página 40, da PAN, escreveu: “Estamos no período em que a literatura para crianças alcança a maior difusão. Em São Paulo, principalmente, a venda desses livros apresenta aspecto bastante animador. Há autênticas feiras de livros de histórias (...). Cada vitrina de livraria é, com certeza, um deslumbramento para os pequenos leitores. Observa-se, porém, que esse gênero literário tão delicado, tão fino, onde há mundos novos a explorar, não encontra facilmente adeptos (...). Os que produzem há vinte anos são os que ainda hoje produzem, salvando minguadas exceções. O fundo da literatura infantil ainda é constituído pelos velhos Perrault, Lebrun, Conego Schmidt e o formidável Andersen. A literatura para crianças parece alheia às leis da oferta e da procura (...).” Afonso Schmidt morreu no dia 3 de abril de 1964, aos 73 anos de idade. 

João Scortecci


Ler Mais

BIBLIOTECA ANCARA, NA TURQUIA / JOÃO SCORTECCI

Istambul, maior cidade da Turquia, antiga Constantinopla, foi a capital do Império Romano (330 – 395), do Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente) (395 – 1204 e 1261 – 1453), do Império Latino (1204 – 1261) e, após a tomada pelos turcos, do Império Otomano (1453 – 1922). Istambul, localizada entre o Corno de Ouro – estuário que divide o lado europeu da cidade de Istambul – e o Mar de Mármara – mar interior que separa o mar Negro do mar Egeu –, no ponto em que a Europa encontra a Ásia, foi na Idade Média a maior e mais rica cidade da Europa. A partir de 1923 deixou de ser capital, posto assumido por Ancara, localizada no centro da Turquia, distante 545 km de Istambul. Em 20 de fevereiro de 2020, Ancara inaugurou uma das maiores e mais belas bibliotecas do mundo, com mais de 4 milhões de livros e publicações em 134 idiomas diferentes. Ao todo são 201 quilômetros de estantes de livros, com capacidade de receber 5 mil pessoas. O espaço – 125.000 metros quadrados – está anexado ao complexo presidencial do país e foi idealizado pelo governo turco, junto a intelectuais, ONGs e grupos beneficentes. Parte do acervo foi obtido por meio de doações e, além dos materiais impressos, o acervo on-line disponibiliza 120 milhões de edições digitais de livros e 550.000 e-books.

João Scortecci


Ler Mais

OS RENEGADOS DE TREVISAN / JOÃO SCORTECCI

Todos nós conhecemos um João, um Luiz, um José, um Francisco e um Joaquim. Isso eu afirmo e ainda passo recibo, se precisar. Um detalhe: Luiz com “Z”. O nome “Joaquim” tem origem hebraica e seu significado é "Deus estabeleceu" ou "aquele que Deus elevou". A primeira versão do nome em português surgiu em Portugal, por volta do século XVIII. No Brasil, hoje, existem, cerca de 8.566 pessoas registradas com esse nome. Lendo a biografia do “Vampiro de Curitiba”, o talentoso e reservadíssimo curitibano Dalton Trevisan (1925 –     ) que no dia de ontem, 14 de junho, completou 99 anos de idade, encontrei referências sobre a “Revista Joaquim”, de cunho literário publicada entre os anos de 1946 e 1948 (21 edições) por Dalton Trevisan, Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. A escolha do título e do subtítulo da revista – “Homenagem a Todos os Joaquins do Brasil” –, tinha dupla intenção: popularizar o veículo e fornecer ao leitor um indicativo da principal característica do periódico: esconder as autorias de determinadas ideias. A revista teve colaboradores do porte de Poty Lazzarotto, Temístocles Linhares, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, Guido Viaro, Otto Maria Carpeaux, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Sergio Milliet, Lêdo Ivo e Mario Pedrosa. Também publicou inéditos em português de Louis Aragon, Tristan Tzara, T.S. Elliot, Garcia Lorca, Rainer Maria Rilke, André Gide e Jean Paul Sartre. Dalton Trevisan – não o conheço pessoalmente – é autor premiadíssimo: Prêmio Jabuti (1960, 1965, 1995 e 2011), Troféu APCA (1976), Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2003), Prêmios Literários da Fundação Biblioteca Nacional (2008, 2015), Prêmio Camões (2012), Prêmio Machado de Assis (2012) e Prêmio do Negrinho (2013). É autor de mais de 50 livros publicados e dois outros, renegados: “Sonata ao Luar” (1945) e “Sete Anos de Pastor” (1948). Detalhe oportuno: na “Revista Joaquim”, número 21, de dezembro de 1948, o escritor, pintor, crítico de arte e tradutor Sérgio Milliet (Sérgio Milliet da Costa e Silva, 1898 – 1966) escreveu crítica sobre um dos livros renegados de Dalton Trevisan: “Sete Anos de Pastor”. Aqui com os meus nervos: talvez, também, renegue dois ou três dos meus livros. Existe um perigo: ninguém esquece de lembrar dos renegados. Para muitos, livros "esgotados" e nada mais.  

João Scortecci  

  

Ler Mais

DARWIN E O LIVRO MAIS CENSURADO E INFLUENTE DA HISTÓRIA / JOÃO SCORTECCI

O naturalista, geólogo e biólogo britânico Darwin (Charles Robert Darwin, 1809 – 1882), célebre por seus avanços sobre evolução nas ciências biológicas, estabeleceu a ideia que todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum. Em 1859, publicou A origem das espécies e propôs a teoria de que os ramos evolutivos são resultados de seleção natural e sexual e a luta pela sobrevivência resulta em consequências similares às da seleção artificial. A obra foi publicada em Londres, impressa por John Murray, com tiragem de 1.250 exemplares. A edição se esgotou em um dia, e a Igreja reagiu violentamente. O assunto polêmico gerou artigos de jornais, sátiras e caricaturas que debochavam do britânico. Em 1860, saiu uma segunda edição, que também se esgotou em poucos dias. O livro A origem das espécies provocou um escândalo na sociedade e foi rejeitado em colégios, bibliotecas do mundo e na comunidade científica. Há registro de que edições inteiras foram destruídas e queimadas. A teoria de Darwin – segundo a qual todos os seres vivos descendem de um ancestral em comum – precisou de décadas para ganhar aceitação e reconhecimento da sociedade e da comunidade científica. Hoje, a teoria de Darwin é considerada o mecanismo unificador para explicar a vida e a diversidade na Terra. Pesquisa realizada no Reino Unido durante a Academic Book Week (2019) elegeu A origem das espécies, de Charles Robert Darwin, a obra censurado mais influente da história. Na lista dos 20 títulos censurados mais influentes da história – a título de curiosidade – aparecem: 1984 (George Orwell), Uma vista da ponte (Arthur Miller), Amado (Toni Morrison), Admirável mundo novo (Aldous Huxley), Country girls (Edna O'Brien), Seus materiais escuros (Philip Pullman), Eu sei por que o pássaro engaiolado canta (Maya Angelou), O amante de Lady Chatterley (D. H. Lawrence), Ratos e homens (John Steinbeck), Direitos do Homem (Thomas Paine), Versos satânicos (Salman Rushdie), O apanhador no campo de centeio (J. D. Salinger), A cor púrpura (Alice Walker), As vinhas da ira (John Steinbeck), A metamorfose (Franz Kafka), Para matar um Mockingbird (Harper Lee) e Ulisses (James Joyce). Darwin, em seus últimos anos de vida, publicou outros livros polêmicos: A variação dos animais e plantas sob a ação da domesticação (1868), A descendência humana e a seleção sexual (1871) e Expressão das emoções no homem e nos animais (1872).

João Scortecci

Ler Mais

“DIA DAS LETRAS GALEGAS”, ROSALÍA DE CASTRO E A MORTE / JOÃO SCORTECCI

O dia 17 de maio foi instituído em 1963 como o “Dia das Letras Galegas”, quando se comemoraram os 100 anos de edição da primeira obra escrita em língua galega (língua ibero-românica ocidental de caráter oficial da Comunidade Autônoma da Galiza), “Cantares Gallegos”, da escritora espanhola Rosalía de Castro (Maria Rosalía Rita, 1837 – 1885). Nascida em Santiago de Compostela, capital da Comunidade Autónoma da Galiza, noroeste de Espanha, Rosalía de Castro é considerada a fundadora da literatura galega moderna. Escreveu tanto em prosa quanto em verso, utilizando o galego e o castelhano. Sua obra esteve profundamente marcada pelas circunstâncias que rodearam sua vida, como sua origem, os problemas econômicos, a morte dos seus filhos e sua frágil saúde. Em 1863, em Vigo, cidade da costa noroeste da Espanha, o seu primeiro grande livro, "Cantares Gallegos", foi publicado por seu marido, o historiador galego Manuel Murguía (1833 – 1923), que geriu, sem a licença da esposa, a impressão de um “poemário”, que fixa o começo de uma nova era para a poesia galega e foi a base do ressurgimento da literatura nessa língua, até então extinta como língua escrita. Em 1880, Rosalía de Castro publicou “Folhas Novas”, praticamente uma continuação de “Cantares Gallegos”. Em castelhano, publicou “La flor” (1857), “A mi madre” (1863), “En las orillas del Sar” (1884) e o romance “El caballero de las botas azules” (1867), obras marcadas pelo Romantismo literário. Rosalía de Castro passou os últimos anos da sua vida em Padrón, na província espanhola de Galiza, na Casa da Matanza, que depois se tornaria casa-museu. A morte acidental do seu filho mais novo aos dois anos de idade e sua doença amargaram os seus derradeiros anos de vida. Morreu de câncer, em 1885, aos 48 anos de idade. Antes de morrer, pediu aos filhos que queimassem os trabalhos literários que, reunidos e ordenados por ela mesma, não foram publicados. Foi enterrada no campo-santo da Adina, na Galiza. Anos mais tarde, em 1891, seus restos foram transladados para o Panteão de Galegos Ilustres, no convento de São Domingos de Bonaval, em Santiago de Compostela. Entre os poetas – muitos pensam assim – há um pacto pós-morte: “O que não for publicado ou ainda não concluído em vida, deve ser – literalmente – esquecido e queimado!”.  

João Scortecci


Ler Mais

KARL KRAUS, O PANFLETÁRIO DO PAPEL / JOÃO SCORTECCI

Gosto da palavra “panfleto”, o que ela representa e de sua importância na divulgação em massa de uma ideia ou marca. Um sobrevivente: prático e funcional, em tempos de mídia eletrônica. Quem não gosta de um panfleto de rua? Eu adoro. Digo o mesmo dos cartões de visita: insubstituíveis! Alguns – pobres de espírito – chamam-no de folheto. Um folheto é um panfleto que não deu certo: tempo, papel e tinta perdidos! Os panfletos são revolucionários, criativos, irados de ideias, poesia e paixão. No século XII, circulou na Inglaterra um poema de amor escrito em latim, com o nome de “Pamphilus seu de amoré”, anônimo, que se tornou popular e foi traduzido para inglês como “Phamphlet”. Até os fins do século XIV a palavra “Phamphlet” era usada em inglês para designar qualquer texto pequeno, de tamanho menor do que os enormes livros manuscritos daquela época, antes da invenção da imprensa. O dramaturgo, jornalista, ensaísta, aforista e poeta austríaco Karl Kraus (1874 – 1936), indicado duas vezes ao Nobel de Literatura, é considerado como um dos maiores escritores satíricos em língua alemã do século XX e um panfletário “casca de ferida”. Editor e único redator durante quase 40 anos da revista “A Tocha” (“Die Fackel”), denunciava com grande virulência a corrupção da língua, responsabilizando principalmente a imprensa da época. Karl Kraus, filho de um rico fabricante e comerciante de papel, viveu para seus escritos e organizou sua vida em torno de seu trabalho de editor, escritor e panfletário. Durante a vida, tomou posições liberais, conservadoras, socialistas e clericais. Tornou-se membro da Igreja católica, mas abandonou o catolicismo em 1922, vinte e três anos depois que, da mesma forma, renunciou ao judaísmo. Em 1933, escreveu a sátira “A Terceira Noite de Walpurgis” (“Die Dritte Walpurgisnacht”), sobre a ideologia nazista, que começa com a famosa frase, "Mir fällt zu Hitler nichts ein" ("Nada me ocorre sobre Hitler."). Karl Kraus morreu em Viena, em 12 de junho de 1936, aos 62 anos de idade, depois de ter sido atropelado por um ciclista. Para Karl Kraus, a linguagem era o desenvolvedor mais importante dos males do mundo: “que a mais antiga das palavras seja estranha de perto, recém-nascida, e cause dúvida se está viva ou não. Então ela vive!”.

João Scortecci


Ler Mais

ADRIANO NOGUEIRA E OS REGISTROS LITERÁRIOS / JOÃO SCORTECCI

O tempo é veloz! Rosani Abou Adal ligou para mim, convidando: “Scortecci, você não quer escrever para o jornal uma nota sobre os 20 anos da morte do Adriano Nogueira?” Confesso que, antes de dizer “sim”, assustei-me com a velocidade do tempo: 20 anos! Inacreditável! O advogado e escritor Adriano Nogueira nasceu no dia 8 de setembro de 1928, na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo. Faleceu em 2004, aos 76 anos de idade. Em 1989, foi um dos fundadores, junto à jornalista e escritora Rosani Abou Adal, do jornal Linguagem Viva.

Aproximamo-nos, Adriano Nogueira e eu, durante a realização do I Concurso de Poesias Linguagem Viva, em 1993, quando editamos os 30 poemas classificados em uma antologia publicada com apoio da Fundação Biblioteca Nacional, União Brasileira de Escritores e Scortecci Editora. Em 1998, a Scortecci Editora publicou o seu livro Registros Literários, seleta de artigos da coluna “Efemérides Literárias”, em que Adriano Nogueira resgata parte da memória de escritores piracicabanos: Almeida Fischer, João Chiarini, Thales de Andrade, Mário Neme, Cecílio Elias Netto, Lino Vitti, Francisco Lagreca, Ortiz Monteiro, David Antunes, Léo Vaz e João Baptista de Souza Negreiros Athayde.

Registros Literários foi prefaciado pelo escritor cearense Caio Porfírio Carneiro, na época secretário-geral da UBE – União Brasileira de Escritores, que assim descreve Adriano Nogueira: "Piracicabano de nascimento de residência a vida inteira, fez o que achou justo: reuniu no livro, em grande parte dele, retratos e registros de figuras e obras dos filhos da terra, que deixaram notável legado para o Estado e o País." 

Adriano Nogueira foi também Secretário da Academia Piracicabana de Letras e Diretor da União Brasileira de Escritores, em várias gestões. Em 1990, recebeu o troféu Mirante, destinado ao destaque cultural do ano de 1990, em Piracicaba. E, nessa cidade, foi um dos fundadores do Diretório Municipal do Partido Socialista Brasileiro, junto ao professor e um dos mais importantes folcloristas brasileiro, o piracicabano João Chiarini (1919 – 1988).

Sensível e inesquecível, Adriano Nogueira nos deixou importante legado sobre a literatura e a cultura piracicabanas. Nas "Efemérides Literárias", ajudou a escrever parte das histórias do jornal Linguagem Viva, hoje memorial da literatura brasileira. No livro Registros Literários, perpetuou-se, registrando com sabedoria e inteligência, traços da história da literatura brasileira.

João Scortecci



Ler Mais

POETA TORQUATO TASSO – O AMOR É UM DESEJO DE BELEZA / JOÃO SCORTECCI

Sorrento é uma comuna italiana da região da Campânia, província de Nápoles, Itália, onde nasceu o poeta Torquato Tasso, em 11 de março de 1544. Jerusalém libertada (Gerusalemme Liberata), sua obra-prima, é um poema épico publicado em 1581, no qual são narrados, em versão ficcionalizada, combates entre cristãos e muçulmanos, no fim da Primeira Cruzada, proclamada em 1095, pelo papa Urbano II, com o objetivo de auxiliar os cristãos ortodoxos do Leste e libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. Com base nesses fatos históricos, o poeta narra episódios em que os cavaleiros cristãos, liderados por Godofredo de Bulhão, combatem os muçulmanos, a fim de levantar o Cerco de Jerusalém em 1099. O poema é composto em estrofes de oito versos, distribuídos por oito cantos de extensão variável. Uma das características mais marcantes do texto é o conflito entre os impulsos do coração e as demandas do dever, como acontece entre os personagens Tancredo e Clorinda: ele, um soldado cristão; ela, uma guerreira muçulmana. O poema teve grande repercussão na época, pois o Império Otomano, também conhecido como Império Turco, fundado no fim do século XIII pelo líder tribal Oguz Osmã, estava se expandindo e representava uma ameaça para a Europa. Em 1576, Torquato Tasso começou a dar mostras de descontrole mental – ficou visto como perigoso – e a sofrer de mania de perseguição. Esteve várias vezes recolhido em conventos e manicômios, e, numa dessas ocasiões, roubaram-lhe os manuscritos de Jerusalém Libertada, que acabou pirateado e publicado, sem sua autorização. Ele concluiu a obra em 1575, mas passou vários anos revisando o texto antes de sua publicação em 1581. A edição do poema épico em dois volumes foi concluída em 1745, pelo editor e jornalista veneziano Giovanni Battista Albrizzi (1698 – 1777), membro de uma família ativa no comércio livreiro de Veneza. Torquato Tasso morreu aos 51 anos de idade, em 25 de abril de 1595, poucos dias antes de ser coroado “Rei dos poetas”, pelo Papa Urbano II. Até o início do século XX, era um dos poetas mais lidos na Europa e continua sendo um dos poetas mais célebres da literatura italiana e universal. São dele estas também célebres palavras: “Perdido é todo o tempo que em amor não é gasto” e “O amor é um desejo de beleza”.

João Scortecci

Ler Mais

COPYRIGHT E O ESTATUTO DA RAINHA ANA / JOÃO SCORTECCI

O uso pela primeira vez do termo “copyright” data de 1701, na Stationers Company (Worshipful Company of Stationers and Newspaper Makers), companhia real inglesa, que detinha o monopólio da indústria editorial e era, oficialmente, responsável por estabelecer e fazer cumprir os chamados regulamentos de reprodução e venda de obras literárias, até a promulgação do “Estatuto da Rainha Ana”, de 10 de abril de 1710. Foi a Rainha Ana (1665 – 1714) quem uniu em um único Estado soberano a Inglaterra e a Escócia, no chamado Reino da Grã-Bretanha. Existem correntes que sujeitam o nascimento do direito de autor à invenção da imprensa, na Europa, no século XV, criada a partir da invenção da prensa de tipos moveis pelo alemão Johannes Gutenberg. É sabido que muito antes da invenção da imprensa na Europa, a China e a Coréia já contavam com técnicas de impressão, e não se pode esquecer, também, que já havia noções de propriedade intelectual na Roma Antiga. No final do século XIX, vários Estados, assinaram o primeiro acordo multilateral sobre Proteção das Obras Literárias e Artísticas, na chamada “Convenção de Berna”, de 9 de setembro de 1886, na Suíça. A Convenção foi revista em Paris (1896) e Berlim (1908), completada em Berna (1914), revista em Roma (1928), Bruxelas (1948), Estocolmo (1967) e Paris (1971) e emendada em 1979. Desde 1967, a Convenção é administrada pela World Intellectual Property Organization (WIPO), incorporada às Nações Unidas em 1974. No Brasil, a Lei n. 9.610 de 19/02/1998 regula os direitos de autor. Esse direito exclusivo do autor (art. 5. º, XXVII, da Constituição Federal de 1988), constitui-se como um direito moral (criação) e um direito patrimonial (pecuniário) de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar. No Brasil – país signatário da Convenção de Berna, pelo Decreto Legislativo nº 94, de 4 de dezembro de 1974 – uma obra entra em domínio público após 70 (setenta) anos, contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao falecimento do autor ou do último coautor, se houver. Como regra, o domínio público refere-se tão somente aos direitos patrimoniais do autor, não se aplicando aos direitos morais, os quais são imprescritíveis. O espírito humano agradece!

João Scortecci

Ler Mais

CLEONICE BERARDINELLI: VIVER NÃO É PRECISO / JOÃO SCORTECCI

Dói pensar – e saber, entristecido, que não pude, não tive, a oportunidade de conhecer pessoalmente a professora e acadêmica Cleonice Berardinelli (Cleonice Seroa da Mota Berardinelli, 1916 – 2023). Perdi, com a minha falta de sorte – ou desatenção, provavelmente – a oportunidade de conhecer junto, do seu jeito, Fernando Pessoa e sua legião de heterônimos. Pobre de mim! Numa matéria na TV – quando da sua morte, em 2023 – a vi declamando versos de Pessoa. Conheci, convivi, fui amigo e próximo de muitos “imortais”. E daí? Nesses 50 anos de livros – ininterruptos – a trupe, covardemente, navegou contra o vento, velozmente. Navegar é preciso? Conto – na dor que só cresce com a maré – apenas os perdidos, os náufragos. E daí? Estou perto dos 70 anos – eu sei, eu sinto – que o tempo ceifador não me perdoará, nunca. Dói nos dias ruins – dia sim, dia não – perder piratas, sereias, marujos e heterônimos da palavra. E daí? Tudo falta de mim mesmo.   

João Scortecci   


Ler Mais

CÉCILE SAUVAGE, A "POETISA DA MATERNIDADE" E DO EROTISMO MÍSTICO / MARIA MORTATTI

Recentemente conheci a poetisa francesa Cécile Sauvage (20.07.1883 –16.08.1927), por meio do comentário de um amigo sobre meus livros de poemas, que o fizeram evocar o erotismo místico da “poetisa da maternidade”, epíteto com que ela ficou conhecida em seu país, conforme retratada pelo escritor Henri Pourrat (1887 – 1959), no romance La Veillée de Novembre (A vígília de novembro), a ela dedicado. Relativamente pouco conhecida nas décadas inicias do século XX e muitas vezes lembrada apenas como mãe do renomado compositor Olivier Messiaen, Cécile Sauvage deixou um importante legado poético, que vem sendo redescoberto com o crescente interesse pela literatura de autoria feminina do século XX. Foi elogiada pela escritora e filósofa feminista Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1949). Mais recentemente, a poeta e pesquisadora francesa Béatrice Marchal recuperou e transcreveu os manuscritos perdidos de poemas de amor de Sauvage, sua poesia foi traduzida na Inglaterra por Emily Vogel e Daria Chernysheva, e, na Itália, por Elena Bugin. Em sites da Internet, estão disponíveis alguns poemas em francês e traduções em inglês, além de algumas informações sobre sua vida e obra, que reúno neste texto. 

Nascida na cidade de La Roche-sur-Yon (Vendée), Cécile Sauvage se mudou com a família, em 1888, para a cidade de Digne-les-Bains, região da Provença, onde cursou o Liceu e, com 20 anos de idade, escreveu o longo poema Les Trois Muses (As três musas). Seu pai, Prosper Sauvage, professor de História, que a encorajava nas atividades literárias, enviou o manuscrito ao poeta francês de língua occitana, Frédéric Mistral (1830 – 1914), que, por sua vez, incentivou a poetisa a enviá-lo para a Revue forézienne, de Saint-Étienne, cujo editor era Pierre Messiaen, professor de língua inglesa e conhecido por sua tradução crítica da obra de Shakespeare. O editor ficou impressionado com o poema, iniciou-se correspondência amorosa entre eles, casaram-se em 1907 e tiveram dois filhos Olivier Messiaen (1908 – 1992), que se tornou compositor, e Alain Messiaen (1912 – 1990), que se tornou poeta. Em 1909, Cécile Sauvage se apaixonou por Jean de Gourmont, irmão de Rémy de Gourmont, editor e fundador da revista Mercure de France, de Paris, em que também foram publicados poemas de Sauvage. Em 1910, Pierre Messiaen foi transferido para uma escola em Ambert, na Auvergne, onde moraram até 1913. Ela viveu por muito tempo na cidade de Saint-Étienne, onde escrevia diariamente e conheceu a obra de poetas ingleses. Quando Pierre foi para o front durante a Primeira Guerra mundial, a poetisa morou com os filhos no apartamento de seu irmão, na cidade de Grenoble, onde havia um piano e Olivier Messiaen se descobriu músico. Depois, a família se instalou em Paris e lá a poetisa morreu de tuberculose com 44 anos de idade. 

Cécile Sauvage publicou, em vida, apenas dois volumes de poemas, ambos pela editora Mercure de France: Tandis que la terre tourne (Enquanto a terra gira), de 1910 – em que se encontra L’Âme en bourgeon (Alma em botão), seu mais conhecido conjunto de poemas que tratam da maternidade e foram escritos durante a gravidez do primeiro filho, Olivier Messiaen; e Le Vallon (O Vale), de 1913 – em que se encontra outro conjunto de poemas sobre a maternidade, mas em tom mais melancólico e evocando a paisagem de Auvergne e a fauna e flora da Provença. Postumamente, sua obra foi reunida por Pierre Messiaen e publicada no volume Les Œuvres de Cécile Sauvage (Obras completas de Cécile Sauvage), de 1929, no qual constam: poemas sobre outros assuntos, como os primeiros com um tom pastoral – que, para alguns estudiosos, lembram os do poeta francês Francis Jammes (1868 – 1938) –; o conjunto de poemas Primevère (Prímula); trechos de poema dramático, de cartas e de escritos pessoais. Também foram publicadas postumamente, com edição e apresentação de Pierre Messiaen, a coletânea de ensaios sobre ela, Cécile Sauvage: Études et souvenirs (Cécile Sauvage: estudos e lembranças), de 1929, e uma coletânea com trechos de Lettres à Pierre Messiaen (Cartas a Pierre Messiaen), de 1930. Há, ainda, outros documentos nos arquivos de Olivier Messiaen e Yvonne Loriod-Messiaen preservados na Bibliothéque Nationale de France. Em 2009, Béatrice Marchal publicou o livro Écrits d’amour (Escritos de amor) (Paris: Éditions du Cerf), com manuscritos inéditos, entre os quais os poemas de amor dedicados a Jean de Gourmont, como "L’Étreinte mystique" ("O abraço místico"), "Prière" ("Prece"), and "L’Aile et la rose" ('A asa e a rosa"). 

O erotismo místico pode ser observado neste trecho de poema de Écrits d’amour: “Oh! où es-tu mon amour, j'ai soif de ta caresse, / Je te cherche dans l'air autour de moi, je presse / Ton fantôme en mes bras, tu tombes sur mon coeur, / J'ai dans mes bras le poids de ton corps, sa chaleur, / Je sens fléchir ta taille et ta tête s'incline. / La chaleur de ta bouche enfièvre mon visage, / Je vais te respirer, te boire... et tout s'efface. /Hélas! n'es-tu pas là? Mes pauvres bras sont vides...” ("Oh! onde está você meu amor, tenho sede de seu carinho, / Procuro você no ar ao meu redor, pressiono / Seu fantasma em meus braços, você cai no meu coração, / Tenho em meus braços o peso do seu corpo, seu calor, / Sinto sua cintura flexionar e sua cabeça inclinar. / O calor da sua boca deixa meu rosto febril, / Vou respirar você, beber você... e tudo desaparecerá. / Infelizmente! você não está aí? Meus pobres braços estão vazios...”) (Tradução minha) 

Alguns dos poemas de L’Âme en bourgeon, foram musicados por Claude Debos e Olivier Messiaen, que destacava a importância, para sua carreira musical, da “profecia” da mãe e do “ambiente feérico” em que ela criou seus filhos. Eis um trecho do poema “La Tête” (“A cabeça”), de “L’Âme de bourgeon”: "Ô mon fils, je tiendrai ta tête dans ma main, /Je dirai : j’ai pétri ce petit monde humain ; / tous ce front dont la courbe est une aurore étroite / J’ai logé l’univers rajeuni qui miroite /Et qui lave d’azur les chagrins pluvieux. /Je dirai : j’ai donné cette flamme à ces yeux, / J’ai tiré du sourire ambigu de la lune,” ("Ó meu filho, vou segurar sua cabeça em minhas mãos, /Direi: fui eu quem moldou este pequeno mundo humano; / Sob esta frente cuja curva é uma estreita madrugada / Eu abriguei o universo rejuvenescido que brilha / E que lava as tristezas chuvosas com o azul. /Direi: dei essa chama a esses olhos, / Tirei do sorriso ambíguo da lua,”) (Tradução minha)

Estudiosos da obra de Sauvage destacam como principais características as alegrias da maternidade e a simplicidade da natureza – para alguns inspirada na poesia da cantora e poeta francesa Marceline Desbordes-Valmore (1786 –1859), a única mulher entre os “poetas malditos” do Romantismo francês, como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Lautréamont. Mais recentemente, com a descoberta de seus poemas de erotismo místico dedicados ao amante,  foi também considerada “poetisa do amor”, evocando a obra de dois religiosos espanhóis: a freira e poeta Santa Teresa d' Ávila (28.03.1515 – 04.10.1582) e o sacerdote, místico e poeta San Juan de la Cruz (1542 – 14.12.1591). Para outros, ainda, e também para Olivier Messiaen, confidente da mãe, a coletânea póstuma organizada por Pierre Messiaen contém alterações nas dedicatórias e nomes, por exemplo, para ocultar o amor adúltero de sua esposa. Há ainda os que afirmam não haver evidências suficientes de inspirações de outros poetas em sua obra, até porque Sauvage preferiu “escrever em silêncio” em sua “mesinha branca manchada de tinta”, distanciada do mundo literário, apesar da insistência da família para que ela participasse de prêmios literários.

Conhecendo um pouco mais sobre a vida de Cécile Sauvage e a surpreendente contemporaneidade e universalidade da obra que produziu no início do século XX, especialmente os escritos de amor marcados pelo erotismo místico – transgressor para os padrões morais de comportamento feminino de sua época –, é possível entender por que ficou silenciada por muitas décadas e somente passou a ser novamente apreciada quando condições objetivas propiciaram avanços nas lutas em defesa dos direitos das mulheres, também à voz na literatura. À sua gradativa redescoberta cabe a analogia/profecia de seus versos na coletânea Melancolie: "Souvent le cœur qu’on croyait mort / N’est qu’un animal endormi ; / Un air qui souffle un peu plus fort  / Va le réveiller à demi ; /Un rameau tombant de sa branche / Le fait bondir sur ses jarrets / Et, brillante, il voit sur les prés / Lui sourire la lune blanche." ("Muitas vezes o coração que pensávamos estar morto / É apenas um animal adormecido; / Um ar que sopra um pouco mais forte / Vai meio que acordá-lo; / Um ramo caindo do galho / Fazendo-o pular de joelhos / E, brilhante, ele vê sobre os prados / A lua branca a lhe sorrir.") (Tradução minha)

Maria Mortatti – 13.03.2024



Ler Mais

O POETA TARAS E AS BANDURAS DA UCRÂNIA / JOÃO SCORTECCI

O poeta e pintor ucraniano Taras Shevchenko nasceu em 9 de março de 1814, numa família de servos, na Província de Kiev – durante o Império Russo –, hoje capital da Ucrânia. Foi fundador da literatura moderna ucraniana. Sua maior obra foi a coletânea poética Kobzar, publicada no ano de 1840, em São Petersburgo. Depois da publicação da obra, Taras foi apelidado de “O Kobzar” – contador de histórias, criador de versos, compositor de música, historiador oral itinerante, que canta com seu próprio acompanhamento, tocado em uma “bandura”, instrumento popular ucraniano, de cordas dedilhadas. Ficou órfão aos 11 anos de idade e se tornou propriedade do aristocrata e militar russo, Pavel Engelhardt (1798 – 1849). Em 5 de maio de 1838, com a ajuda do pintor e professor russo Karl Briullov (1799 – 1852), que doou a uma loteria um quadro do retrato do famoso poeta russo Vasily Zhukovsky (1783 –1852), com o objetivo de arrecadar fundos, Taras Shevchenko conseguiu sua liberdade. Nesse mesmo ano, foi aceito para estudar na Academia Imperial de Artes. No ano seguinte, foi agraciado com uma medalha de prata e, em março de 1845, o Conselho da Academia da Arte atribuiu-lhe o título de "artista", honraria para poucos. Em 5 de abril de 1847, foi preso durante o processo da “Irmandade dos Santos Cirilo e Metódio”, organização política que pretendia transformar o Império Russo numa federação de estados eslavos. A polícia russa encontrou com Shevchenko o poema "Sonho", que atacava a monarquia russa, satirizava o Czar Nicolau I e sua esposa, a rainha Alexandra. Foi, então, enviado à prisão em São Petersburgo e depois mandado para o exílio na base militar russa de Orsk, junto aos montes Urais, ficando, ainda, proibido de “escrever, desenhar e pintar”. Dez anos depois, em 1857, voltou do exílio e fixou residência em Nijni-Novgorod, Distrito Federal do Volga, no sul da Rússia Europeia. Em maio de 1859, recebeu a permissão para visitar a Ucrânia. Morreu de ascite, popularmente conhecido como “barriga d'água”, em 10 de março de 1861, aos 47 anos de idade. Shevchenko foi sepultado no Cemitério Smolensk, em São Petersburgo e, meses depois, transferido para a cidade de Kaniv, na Ucrânia, como era seu desejo expresso no poema "Testamento”: “É-me indiferente”, um de seus poemas mais conhecidos, é marcado pelo profundo patriotismo: “É-me indiferente, se vou / Eu viver na Ucrânia, ou não / Se alguém se lembrará, ou esquecer-me-á / Na neve do exílio - / É-me mesmo indiferente. / Sem liberdade cresci entre os desconhecidos,/ E, sem ser chorado pelos meus,/ Sem liberdade, chorando, morrerei,/ E tudo levarei comigo,/ Nem uma pequena mancha deixarei / Na nossa gloriosa Ucrânia, / Na nossa – mas que não é a nossa terra. / E nem se lembrarão o pai com o filho,/ Nem dirá ao filho: “Reza,/ reza, filho: pela Ucrânia / Que outrora foi torturada / É-me indiferente, se vai / Esse filho orar, ou não…/ Mas não me é indiferente,/ Como a Ucrânia é adormentada / Por pessoas más, mentirosas, e no fogo,/ Já roubada, a acordarão…/ Oh, isso já não me é indiferente.”

João Scortecci

Ler Mais

O LIVRO TRIANGULAR E O DRAGÃO ALADO / JOÃO SCORTECCI

Triângulo equilátero é um tipo de triângulo que tem os três lados iguais, e seus ângulos internos medem 60º. São vistos como símbolos místicos e usados em diferentes culturas e tradições esotéricas. O Livro Triangular (Manuscrito Triangular) é um texto francês, sem título, do século XVIII, escrito em código e atribuído ao lendário conde de St. Germain (Jacques St. Germain, 1696 – 1784), com encadernação e folhas de pergaminho no formato de um triângulo equilátero. Conde de St. Germain foi uma das figuras mais misteriosas do século XVIII. Era considerado místico, alquimista, ourives, lapidador de diamantes, cortesão, aventureiro, cientista, músico, compositor e imortal. O Livro Triangular começa com uma pequena inscrição em latim, mencionando tratar-se de um presente oferecido pelo conde de St. Germain, e seguido por uma ilustração de um dragão alado. Todo o texto – incluindo as inscrições pertencentes aos diagramas – está em códigos. O manuscrito, encadernado em couro e dourado na frente, mede 23,7 cm em cada um dos seus três lados. Na tradição do grimório – coleções medievais de feitiços, rituais e encantamentos mágicos invariavelmente atribuídas a fontes clássicas hebraicas ou egípcias – encontra-se a prática de conjurar espíritos e anjos, em um triângulo desenhado no chão. Essa forma particular, fortalecida pelos nomes divinos escritos ao redor dela, foi pensada para forçar um espírito a responder honestamente e cumprir seus deveres sem demora. O ritual descrito no Manuscrito Triangular assemelha-se aos descritos no grimório Heptameron, um manual de magia ritual atribuído ao filósofo, astrólogo e professor de medicina italiano Pietro d'Abano (1257 – 1316), que apareceu por volta do século XVI na Europa. As duas cópias conhecidas do Livro Triangular (Manuscrito Triangular) fazem parte das coleções do Getty Research Institute, localizado no Getty Center em Los Angeles, Califórnia, EUA. Os espíritos cantam sobre uma poderosa criatura – dragão alado – que reina sobre tudo o que é místico. Muito presente no folclore e na arte asiática, seu significado faz menção à condição de força e poder. Representa a energia transformadora do fogo. A palavra se origina do grego “drákōn”, que significa “ver claramente” ou “aquele que enxerga longe”. Na alquimia, o dragão expressa a manifestação do ser superior e protetor sobre o trabalho do alquimista. Ele é a união dos quatro elementos: Ar, Fogo, Água e Terra. É a força expansiva do pensamento e da inteligência, da liberdade e da responsabilidade espiritual.

João Scortecci

Ler Mais

TRIÂNGULO HISTÓRICO DE SÃO PAULO E A CASA GARRAUX / JOÃO SCORTECCI

A Rua 15 de Novembro, no centro da capital do estado de São Paulo, faz parte do chamado “Triângulo Histórico” da cidade. Foi aberta no século XVI, com o nome de Rua Manoel Paes Linhares, ligando o Pátio do Colégio e o Largo da Sé ao Largo de São Bento. A partir de 1715, com a construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado), passou a ser conhecida como a Rua do Rosário. Em 1846, a Câmara Municipal decidiu alterar seu nome para Rua da Imperatriz, como forma de homenagear D. Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II. Com a Proclamação da República, em 1889, o nome passou a ser Rua 15 de Novembro. O Triângulo Histórico da cidade (Decreto n. 61.815, de 24 de março de 2020) compreende o espaço inserido nas áreas de abrangência do perímetro formado pelas ruas Sete de Abril, Coronel Xavier de Toledo, Praça Ramos de Azevedo, Conselheiro Crispiniano, Avenida São João e Avenida Ipiranga. No início do século XX, a Rua 15 de Novembro foi retificada em seu traçado, adquirindo um aspecto mais retilíneo em relação ao anterior, que era sinuoso, devido ao fato de que ela contornava os vales do antigo “Quintal do Colégio”, hoje parte da Ladeira General Carneiro. A partir do ano de 1900, a Rua 15 de Novembro se tornou uma das mais importantes da cidade, com belos edifícios, livrarias, cafés, restaurantes e sedes dos jornais “Correio Paulistano”, “Diário Popular” e “O Estado de S. Paulo”. Posteriormente, tornou-se “centro bancário” da cidade, até a década de 1970, quando os grandes bancos migraram para a Avenida Paulista. Entre 1860 e 1934, a famosa Casa Garraux, livraria fundada pelo francês Anatole Louis Garraux, funcionou na Rua da Imperatriz, n. 250. O estabelecimento era conhecido como uma grande “tentação”, devido à diversidade de produtos importados que comercializava: penas para escrita, envelopes, papéis de carta, artigos de escritório, revistas e periódicos, jogos, globos terrestre, charutos cubanos, além, é claro, de livros, muitos livros. No endereço da antiga Casa Garraux, hoje funciona o restaurante Bovinu's Fast Grill. Na fachada, permanecem as duas esculturas em ferro fundido – obras listadas no catálogo de 1892 da Fundição Val d'Osne de Paris, sob os números 325 e 323 –, representando dois ícones do século XV ligados à invenção da imprensa: os alemães Johannes Fust e Johannes Gutenberg.


João Scortecci

Ler Mais

O POETA GEORG TRAKL EM GÉLIDOS CALAFRIOS / JOÃO SCORTECCI

Aos emudecidos das trevas. Das tripas, “A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta”. No papel, versos do poeta austríaco Georg Trakl (1887 – 1914). Hoje chove calor: “árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro”. “Oh! Tão tristes as sombras nos muros”. Cegueira. Um pedido da quase noite: “A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea”... Sinos da tarde? Talvez. “A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso”, aquele que se crê dominado pelo demônio. “Epidemia purpúrea” – números imorais: “fome que despedaça olhos e carne”. Mundo enlouquecido pelo fim. Georg Trakl – tomado de ira – consome ópio, veronal e cocaína. Depois, o suicídio, aos 27 anos de idade. O poeta maldito teve uma relação incestuosa com sua irmã, seu grande amor. Calafrios! Poesia de profunda angústia, melancolia e desespero humano. “Crepúsculo: A enfermidade fecha-os fantasmagoricamente nela./As estrelas espalham uma tristeza alva/ No cinzento, cheios de ilusão e repiques,/Vê como, horríveis, se dissipam confusamente.” Georg Trakl, emudecido, então, sussurrou-me sua dor: “O que faço do rebento morto?” Mais calafrios! Gélidos do inferno, pensei. Embalo trevas – com o manto branco do abandono – e, no ópio, entrego-me aos silêncios. Durmo e acordo Georg Trakl. Espero a chuva passar – tudo no seu tempo – e depois passarinhos. Veronal, de verão. 

João Scortecci

Ler Mais

WILLIAM MCKINLEY, ELBERT HUBBARD E "UMA MENSAGEM A GARCIA" / JOÃO SCORTECCI

Meu pai, Luiz Gonzaga, era assinante da revista Seleções – isso nos anos 1960. Lia e relia a brochura de cabo a rabo! Era vidrado na seção “Piadas de caserna”, que ilustrava as duas últimas páginas da revista. Seleções é a denominação da versão brasileira da Reader’s Digest, criada em Pleasantville, Nova York, no ano de 1918, por DeWitt Wallace (1889 –1981) e sua esposa, Lila Bell Wallace (1889 – 1984). Eu tinha pouco mais de 13 anos quando o meu pai – eufórico – entregou-me para ler um artigo publicado na revista. “Eu?” “Sim. Leia!” Foi o que eu fiz. Era um artigo do filósofo e escritor norte-americano Elbert Hubbard (Elbert Green Hubbard, 1856 – 1915), intitulado “Uma mensagem a Garcia”. “Leia e guarde a mensagem pelo resto da sua vida.”, insistiu meu pai. O texto – belíssimo – e mais atual do que nunca, relata a história de "um camarada de nome Rowan" que heroicamente, contra todas as adversidades, levou uma mensagem do presidente estadunidense McKinley (William McKinley, 1843 – 1901), ao general nacionalista Garcia (Calixto Garcia Íñiguez, 1839 – 1898), líder das forças rebeldes cubanas durante a Guerra Hispano-Americana. O texto foi escrito no dia 22 de fevereiro de 1899, data comemorativa de 100 anos de nascimento do primeiro presidente dos Estados Unidos, Washington (George Washington, 1732 – 1799), líder da vitória na guerra da independência. “Uma Mensagem a Garcia”, de Elbert Hubbard, é um texto vibrante, humano e imortal e pode ser encontrado facilmente na Internet. McKinley foi o último presidente a ter lutado na Guerra de Secessão, começando como um soldado no Exército da União e terminando como major. Em 6 de setembro de 1901, William McKinley foi baleado pelo anarquista Leon Czolgosz, nas dependências do Temple of Music, na Exposição Panamericana em Buffalo, em Nova York, quando cumprimentava o público. Faleceu em 14 de setembro, de gangrena, causada por seus ferimentos. “Precisa-se, com urgência, de um homem de nome Rowan, capaz de levar uma mensagem a Garcia.”

João Scortecci


Ler Mais

RENÉ THIOLLIER, O MECENAS ESQUECIDO DE 1922 / JOÃO SCORTECCI

O escritor e advogado René Thiollier (René de Castro Thiollier, 1882 – 1968) foi um dos fundadores do Teatro Brasileiro de Comédia e conselheiro no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Foi também um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, realizada de 13 a 17 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo. René, amigo pessoal do então prefeito da capital paulista, Artur Bernardes (Artur da Silva Bernardes, 1875 – 1955), foi quem pagou, do próprio bolso, o aluguel do teatro. Era filho do francês Alexandre Honoré Marie Thiollier e de Fortunata de Sousa e Castro Thiollier, irmã da Baronesa de Itapetininga e Baronesa de Tatuí, proprietária de todo o Vale do Anhangabaú. A família morava numa luxuosa casa na Avenida Paulista, n. 1.853, esquina com a Alameda Ministro Rocha Azevedo. Durante anos, a casa abrigou as reuniões da Academia Paulista de Letras, da qual René Thiollier era secretário-geral perpétuo. Como cronista e colunista social, escreveu para periódicos, como Diário Popular, Jornal do Commercio, Correio Paulistano, O Estado de S. Paulo e Revista do Brasil. Publicou livros de contos (Senhor Dom Torres e A Louca do Juqueri); estudos histórico-biográficos (Um grande chefe abolicionista: Antônio Bento, A república rio-grandense e A guerra paulista de 1932); crônicas e ensaios (O homem da galeria, Episódios de minha vida e A Semana de Arte Moderna). Em 1934, foi eleito membro da Academia Paulista de Letras e um dos responsáveis pela criação da revista da entidade. Foi diretor dessa revista por 15 anos, até 1952, quando, voluntariamente, afastou-se, para sempre, dessa Academia. Sobre a obra literária de René Thiollier – que acabou não “vingando” –, questiona-se a qualidade da escrita e o descompasso com as ideias modernistas da época. René Thiollier foi um mecenas, e sua ajuda e colaboração foram fundamentais para a realização, com êxito, da Semana de Arte Moderna de 1922. Em 18 de abril de 2008, por meio do Decreto n. 49.418, do prefeito Gilberto Kassab, foi criado no município de São Paulo o Parque Prefeito Mário Covas, inaugurado em 25 de janeiro de 2010, numa área de 5.400 m², localizada na esquina da Avenida Paulista com a Alameda Ministro Rocha de Azevedo. Essa decisão recebeu críticas da Família Thiollier e de outros paulistanos, que gostariam de homenagear o antigo proprietário do local, o escritor e advogado René Thiollier. Seu pai, Alexandre Honoré Marie Thiollier – que foi proprietário da primeira livraria de São Paulo, a Casa Garroux – construiu a mansão da Avenida Paulista em homenagem à esposa, Fortunata. Em 1909, Alexandre Honoré viajou para a Europa para tratamento da saúde, alugando, então, o casarão para a família Burle Marx. Na época, o casal esperava o quarto filho, que nasceu no casarão e que viria a ser o famoso paisagista Roberto Burle Marx (1909 – 1994). René Thiollier – o mecenas esquecido – morreu no ano de 1968, aos 86 anos de idade.

João Scortecci

Ler Mais

THIAGO DE MELLO, O POETA FEITO DE CANTO E PÃO / JOÃO SCORTECCI

“Moço, onde fica Barreirinha?”. Logo ali, perto de tudo e longe do nada, na direção de Manaus, na leveza das águas do Rio Andirá e – quem a vida nos dirá –, morada do poeta, Thiago de Mello (30.03.1926 – 14.01.2022). Conheci-o nos anos 1980, durante a Bienal Nestlé de Literatura. Inquieto e doce. Sorriso leve, feito de pássaros e sereno: necessariamente ele. Amoroso! Foi o que me disseram de sua intimidade. Durante a ditadura militar no Brasil, Thiago de Mello se exilou na Argentina, no Chile, em Portugal e na Alemanha. No Chile, rabiscou versos com Neruda, que escreveu um belo depoimento para o livro de Thiago de Mello: “Faz escuro, mas eu canto”, de 1965. Quando voltou ao Brasil, foi preso. E voltou por quê? Para lutar e lutar. Dizia isso, sempre, como em seu poema “mais querido”, “Madrugada camponesa”, em versos de fecundar a terra: “(...) faz escuro ainda no chão,/ mas é preciso plantar/ (...) Não vale mais a canção/ feita de medo e arremedo/ para enganar a solidão.” O poeta voltou - para perto de tudo - e lutou. Sobre a natureza humana, escreveu: “Agora vale a verdade/ cantada simples e sempre,/ agora vale a alegria/ que se constrói dia a dia/ feita de canto e de pão.” Thiago de Mello é considerado um dos poetas mais influentes e respeitados no Brasil, reconhecido como um ícone da literatura amazonense e brasileira. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Um de seus poemas mais conhecido é “Os Estatutos do Homem – Ato Institucional Permanente”, escrito no Chile, em 1964, no qual “clama” a atenção para os valores simples da natureza humana. “Permanente?”. Sim, permanente e único. No Artigo I, sanciona: “Fica decretado que agora vale a verdade./que agora vale a vida/e que de mãos dadas/trabalharemos todos pela vida verdadeira (...)”. “Os Estatutos do Homem”, composto por 13 Artigos e um “Artigo final”, é de uma beleza ímpar e universal. Um hino à liberdade, forjado nos princípios da natureza. O “Artigo final” consagra e celebra o espírito de paz pelo homem e pela vida. O poeta determina: “Fica proibido o uso da palavra liberdade,/ a qual será suprimida dos dicionários/e do pântano enganoso das bocas./A partir deste instante/ a liberdade será algo vivo e transparente/como um fogo ou um rio,/e a sua morada será sempre/o coração do homem.” Conta o poeta que, quando mostrou esse poema para Neruda, ele se emocionou e disse: “Quero vê-lo traduzido para o espanhol.”  Thiago, o poeta, feito de canto e pão. “Faz escuro, mas eu canto”: assim é a vida verdadeira.

João Scortecci

Ler Mais

TYPHIS, O TIMONEIRO DE ARGO, E FREI CANECA, ESCRITOR DE PAPÉIS INCENDIÁRIOS/ JOÃO SCORTECCI

O semanário Typhis Pernambucano foi fundado e editado pelo escritor, jornalista, clérigo católico e político Frei Caneca (Joaquim da Silva Rabelo, 1779 – 1825). O semanário – impresso no formato 21 x 30 cm – circulou entre 25 de dezembro de 1823 e 12 de agosto de 1824, num total de 29 exemplares. Foi inspirado em Tífis, discípulo da deusa Atena, timoneiro da embarcação Argo, construída com a ajuda da deusa para que Jasão e os argonautas navegassem de Iolcos até Cólquida, para recuperar o Velocino de Ouro – a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo. O Typhis Pernambucano trazia, como epígrafe, versos d’Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões: "Uma nuvem que os ares escurece sobre nossas cabeças aparece". Frei Caneca, erudito, de origem humilde, conhecido por esse apelido por ter sido vendedor de canecas quando garoto, em Recife, foi educado no Seminário de Olinda. Dirigindo o jornal, fazia sua pregação republicana, denunciando o autoritarismo imperial e conclamando a população à luta. Em seu primeiro número, lançado em 25 de dezembro de 1823, o Typhis Pernambucano anunciava que o país parecia "uma nau destroçada pela fúria oceânica, ameaçando soçobro, carecendo da ajuda decidida e abnegada de todos os seus filhos". Frei Caneca participou da Revolução Pernambucana (1817), que proclamou uma república e organizou o primeiro governo independente na região. Com a derrota do movimento, foi preso e enviado para Salvador, Bahia, onde permaneceu detido por quatro anos, dedicando-se à redação de uma gramática da língua portuguesa. Libertado em 1821, voltou a Pernambuco e retomou as atividades políticas. Em 2 de julho de 1824, em Pernambuco, eclodiu a Confederação do Equador, movimento revolucionário de caráter republicano e separatista, alastrando-se para outras províncias do Nordeste do Brasil. O movimento, no entanto, não obteve sucesso e acabou derrotado. Frei Caneca foi preso, acusado do crime de sedição e rebelião contra as imperiais ordens de Sua Majestade, e condenado à morte por enforcamento. Nos autos do processo, Frei Caneca foi indiciado como um dos chefes da rebelião e "escritor de papéis incendiários". Armado o espetáculo do enforcamento, em 13 de janeiro de 1825, diante dos muros do Forte das Cinco Pontas, três dos carrascos se recusaram a enforcá-lo. A Comissão Militar ordenou, então, seu fuzilamento atado a uma das hastes da forca. O corpo foi colocado num caixão de pinho e deixado no centro de Recife, em frente ao Convento das Carmelitas. Foi recolhido pelos padres Carmelitas e enterrado em um local até hoje não identificado.

João Scortecci

 

Ler Mais

FRANCISCO WEFFORT E PAULO RENATO: LIVRO GUARDADO / JOÃO SCORTECCI

Em 1998, o Ministro da Cultura Francisco Weffort e o escritor amazonense Márcio Souza, Presidente da Funarte – Fundação Nacional de Artes, foram os organizadores da obra Um olhar sobre a cultura brasileira, publicada pela Funarte/Ministério da Cultura. Um livro belíssimo, capa dura, formato 21 x 28 cm, 472 páginas, impresso em papel couché matte 90 g, pela Lis Gráfica e Editora. O Presidente da República, na época, era Fernando Henrique Cardoso. No time do MinC – Ministério da Cultura, estavam José Álvaro Moisés, Secretário de Apoio à Cultura, Ottaviano de Fiore, Secretário de Política Cultural do Ministério da Cultura, Eduardo Portella, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, entre outros. Eu estava no meu segundo mandato na CNIC – Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, como membro do colegiado da Lei Rouanet, responsável pelas Áreas de Humanidades e Integradas. Durante o 1º. Salão Internacional do Livro de São Paulo, em 1999, no dia 23 de abril – Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor –, no estande do MinC no Expo Center Norte, na capital paulista, o Ministro Francisco Weffort (1937 – 2021) e o escritor Márcio Souza autografaram um exemplar da obra para o então Ministro da Educação Paulo Renato (Paulo Renato Costa Souza, 1945 – 2011). Ele recebeu o livro, leu a dedicatória, agradeceu e me entregou o exemplar para eu segurar. Eu acompanhava a comitiva do Ministro Weffort, juntamente dos diretores da CBL – Câmara Brasileira do Livro, do MinC e membros da CNIC. Não percebi – estava desatento – quando o Ministro Paulo Renato deixou o estande e foi embora do evento. Fiquei com o livro. Encontrei-o, depois, algumas vezes, em Brasília, mas o livro autografado acabou ficando “esquecido” em São Paulo, para um encontro especial, que acabou nunca acontecendo. O segundo mandato do Presidente da República Fernando Henrique Cardoso terminou em 2003, e o Ministro Paulo Renato, acabou, infelizmente, falecendo em 25 de junho de 2011. Guardo com o maior carinho e respeito o exemplar autografado, na certeza de que um dia fará parte do Memorial Ministro Paulo Renato ou, quem sabe, do Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. Tesouro de papel, Deus quis assim. 

João Scortecci

Ler Mais

SPAZIO PIRANDELLO, LOYOLA, ZIRALDO E A GAFE / JOÃO SCORTECCI

Uma história puxa outra! Lendo o post de um amigo nas redes sociais, falando de sua amizade e como conheceu o escritor Ignácio de Loyola Brandão, isso nos anos 1970, voltei, também, no tempo. Conheci o Loyola Brandão no início dos anos 1980, no restaurante Spazio Pirandello – na época, casa da boêmia paulista, dos empresários Wladimir Soares e Antonio Maschio – localizado na Rua Augusta, 311, na cidade de São Paulo. Era no Pirandello – ponto de encontro de intelectuais – que a vida literária e cultural da cidade acontecia, no maior estilo. A casa reunia bar, restaurante, livraria, galeria e antiquário. Lançar um livro no Pirandello era o máximo, sinal de casa cheia, sucesso e venda garantida. Fui, então, ao lançamento do livro Livre & Objeto, da escritora cearense Joyce Cavalcante, amiga da UBE – União Brasileira de Escritores. Conhecia pouca gente, e a vida literária era, até então, uma grande novidade. No meio do agito – restaurante lotado, gente saindo pelo ladrão – avistei, de longe, o escritor e cartunista Ziraldo, autor de Flicts (1969), livro do coração, que ganhei de presente do meu irmão José Henrique, em 1972. “É o Ziraldo!”. Não pensei duas vezes. Fui até ele, na maior cara de pau. “Ziraldo, sou sem fã”. Ele me olhou – sorriu – e disse, ao pé do ouvido: “Pena que eu não sou o Ziraldo! Sou o Ignácio de Loyola Brandão". Minha cara caiu. Perdi o rebolado. Quase morri. Loyola, educado, gentil, percebendo o meu desespero, disse-me: “Conheço o Ziraldo. Obrigado por me confundir com ele”. Comprei o livro da escritora Joyce Cavalcante e fui embora. Fiquei um bom tempo longe do Spazio Pirandello. Um dia, do nada, voltei. Enganos acontecem. Até hoje, quando vejo o Loyola – vez ou outra nos encontramos – lembro-me da gafe. Acontece!   

João Scortecci

Ler Mais

ALEGRIAS E TRISTEZAS DE INA VON BINZER / MARIA MORTATTI

No período imperial brasileiro, seja pela falta de escolas adequadas seja por imitação do costume da nobreza europeia, famílias abastadas, principalmente da elite cafeeira, por meio de anúncios de jornal de oferta ou procura, contratavam preceptoras estrangeiras – francesas, inglesas, alemãs – para educação de seus filhos. Foi assim que Ina von Binzer (3.12.1856 – 17.12.1929), a jovem preceptora alemã então com 25 anos de idade chegou ao Brasil, em 1881. Trazia consigo muitas ideias de como seria o novo país e, na bagagem, as 40 cartas pedagógicas de Bormann – manual alemão em cujo método confiava para os momentos difíceis com os alunos, como aprendera em sua formação para o magistério. Foi contratada inicialmente pelo Dr. Rameiro (?), proprietário da Fazenda São Francisco, na província do Rio de Janeiro, onde, por alguns meses, cuidou da educação de sete de seus doze filhos, ensinando-lhes alemão, francês, música, história, geografia, conhecimentos gerais, entre outros. Pediu demissão por recomendação médica – cansada do excesso de trabalho e da rotina desgastante –, retornando em seguida à atividade em liceu feminino na Corte, onde, por três meses, lecionou inglês, francês e piano. Insatisfeita com a vida no Rio de Janeiro e aconselhada pelo cônsul alemão a se mudar para São Paulo, onde havia mais imigrantes alemães, Ina von Binzer foi contratada pelo Dr. Costa (Martinico da Silva Prado), residente na capital paulista, para a educação de seus filhos, uma “sequência histórica” de nomes romanos: Caio, Plínio, Lavínia, Clélia e Cornélia. Devido a um grave acidente urbano que resultou na morte de um cavalo causada pelo mau comportamento das crianças, o pai enviou quatro delas para internato, e Fräulein Ina perdeu o emprego. Foi, então, contratada pelo Sr. Sousa (Bento Aguiar de Barros) proprietário da Fazenda São Sebastião (São Luís, próxima à cidade de Americana), no interior paulista, para a educação de suas três filhas. Depois de viagem à capital para a festa de Natal com os Schaumann, família proprietária da Botica Veado de Outro, e à cidade de Santos, acompanhando a família Souza, Ina von Binzer encontrou George Hall (nome não confirmado), engenheiro inglês e representante industrial, que fiscalizava a montagem de máquinas agrícolas. Apaixonou-se por ele e deixou o Brasil no início de 1884, retornando à Alemanha, onde passou a se dedicar à carreira de escritora e se casou, assumindo o nome Ina Sofie Amalie von Bentivegni.

Entre maio de 1881 e final de janeiro de 1884, Ina von Binzer escreveu 40 cartas endereçadas à amiga alemã Grete e assinadas com o pseudônimo Ulla von Eck. Foram reunidas no livro Lied und Freud einer Erszierherin in Brazilien, publicado em Berlim, Alemanha, em 1857. Em 1956, foi editada no Brasil, pela editora Anhembi, a primeira tradução, por Alice Rossi e Luisita da Gama Cerqueira, com o título Os meus romanos – Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil – inspirado nos nomes dos filhos de Martinico Silva Prado – e prefaciado pelo escritor Paulo Duarte (1899 – 1984). Em 1980, foi publicada outra edição pela Paz e Terra, com acréscimo de apresentação pelo escritor Antônio Callado (1917 – 1997). O livro continua sendo editado, lido e estudado como fonte documental para historiadores da educação, economia, sociedade, política, gastronomia, entre outros. É também uma das fontes documentais que utilizei na pesquisa para a tese de livre-docência de 1997, publicada no livro Os sentidos da alfabetização  São Paulo – 1876/1994 (Editora Unesp, 2000/2021). 

Do prefácio e da apresentação do livro foram extraídas informações para compor a biografia da autora e ilações sobre referências a pessoas e lugares identificadas nas cartas como nomes fictícios, provavelmente porque, conforme regras missivistas do século XIX, as mulheres deveriam ser contidas em seus sentimentos e discretas. Nas palavras de Paulo Duarte, o livro é “um excelente documentário sobre a vida brasileira do século XIX” e uma “excelente obra literária”. Para estudiosos, o livro pode ser classificado como relato de mulheres viajantes ou romance epistolar ou romance de formação. Nas cartas, estão registrados sentimentos, impressões, vivências, reflexões e informações sobre aspectos culturais, sociais e políticos do final do período imperial brasileiro. Pelo olhar de sua rígida formação europeia-germânica, a jovem preceptora descreve e comenta, ora angustiada ora bem-humorada, aspectos, tais como: sua inadaptação inicial à forma de educação das crianças das famílias abastadas e aos costumes culturais e gastronômicos, a falta de civilidade mas também, por vezes, a cordialidade do povo, as belezas naturais e a culinária –, os problemas sociais como a escravidão dos negros, estranhando o modo como eram tratados, mas deixando transparecer certo preconceito, como no trecho em que relata que o Dr. Costa foi buscá-la na estação em uma carruagem europeia – conversavam em francês durante o percurso –, conduzida por uma “cocheiro preto”, escravo obediente Entre suas observações como educadora, registra a inadaptação e desânimo em relação ao “ensino superficial”, reclamava do salário, da indisciplina, impontualidade e barulho dos alunos, constatando que a pedagogia alemã era inadequada e reconhecendo que se devia adotar aqui uma pedagogia brasileira “calcada nos moldes brasileiros e adaptada ao caráter do povo e às condições da vida doméstica”, pois “O nosso Bormann, ou melhor, suas quarenta cartas pedagógicas que não têm aqui a menor utilidade”. Aos poucos, foi se adaptando, mas não esquecia sua terra natal: “Realmente, estou sendo ingrata, pois todos são tão gentis comigo e o país é lindo como um conto de fadas; mas não posso modificar-me e não me sai da cabeça uma canção: ‘É muito belo um país estranho  mas nunca se tornara uma pátria’”. 

Há 140 anos, Ina von Binzer partia do Brasil. Sua última carta a Grete é assinada como Ulla Hall e em nome também de George Hall. A breve experiência brasileira – especialmente com seus rebeldes e indisciplinados “romanos” – proporcionou-lhe tristezas e alegrias no ofício de preceptora, o encontro encontro com seu futuro marido e, sobretudo, a criação da obra de maior repercussão, pelo que se sabe de sua carreira como escritora. O costume das elites de contratação de preceptoras estrangeiras se estendeu ao início do século XX, como representado em Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, inspiração para o filme Lição de amor (1975), de Eduardo Escorel. E as alegrias e tristezas da educadora alemã do século XIX perduram como pioneiro registro de sinceras confidências pessoais a iluminar um capítulo de sua e de nossa história.

Maria Mortatti – 04.01.2024


Ler Mais