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GEORGE SAND, O PSEUDÔNIMO DA PENA INOCENTE / MARIA MORTATTI

Pseudônimo, pen name/writer's alias (Ing.), nom de plume (Fr.): nome fictício usado por escritor(a) para ocultar seu nome verdadeiro (ortônimo). Difere de heterônimo (outro nome) e de anônimo (sem nome). Ao longo da história da literatura, especialmente quando, com o aparecimento do livro impresso, a noção de autoria individual assumiu importância legal e distintiva, passando a constar das obras, várias foram publicadas por um “anônimo” ou por um pseudônimo. Os motivos são variados: caráter político ou polêmico da publicação, mudança de estilo literário do autor, interdições sociais ou culturais, entre outros. Alguns são “descobertos”; outros permanecem secretos. Entre inúmeros exemplos famosos de identidade “alternativa” estão os pseudônimos masculinos usados no século XIX por mulheres da alta burguesia e com alto nível de instrução que, segundo o historiador alemão Peter Gay, dedicavam-se às letras para burlar a interdição de participarem da vida literária e exercerem profissões liberais dominadas por homens.

A francesa George Sand – Amandine Aurore Lucile Dupin (01.07.1804 – 08.06.1876) – foi a primeira com pseudônimo masculino que conheci em leituras na juventude, nos anos 1960/1970, nas traduções que se difundiam e se popularizavam no Brasil desde os anos 1930, embora alguns de seus livros já circulassem no País no século XIX, apreciados por leitoras e leitores ilustres, como D. Pedro II, e criticados por outras e outros. Não me lembro exatamente de quais livros de George Sand li naquela época. Provavelmente foram os mais conhecidos do público jovem de minha geração, como A pequena Fadette (tradução brasileira de J. M. Machado, de 1957, pelo Clube do Livro –, romance mais realista, publicado na França em 1849, retratando dificuldades financeiras e sociais das famílias no contexto da Revolução Francesa de 1848. Maior do que o envolvimento com as histórias e personagens de seus romances, porém, foi o impacto da descoberta que se tratava de uma mulher escritora. A curiosidade me levou a buscar conhecer os motivos para um pseudônimo e masculino, para o sucesso de sua obra e a intensidade de sua vida como uma apaixonada e revolucionária mulher do século XIX. 

Após a morte do pai, oficial militar, Aurore Dupin passou a morar com a avó no castelo de Nohant. Com a morte da avó, para herdar seus bens, casou-se aos 18 anos de idade com o barão Dudevant, tornando-se baronesa de Dudevant, e se divorciaram em 1836. Com ele, teve o filho Maurice. Sua filha Solange teve como pai supostamente um nobre com quem Aurore se envolveu na época. Em 1831, ela viajou a Paris, fez amizade com artistas, intelectuais e políticos, conheceu o escritor Jules Sandeau, com quem escreveu o primeiro romance, e, com parte do sobrenome do amante mais o nome George, comum em sua região de origem, compôs o pseudônimo masculino, como forma de garantir a publicação e circulação de seus textos, protegendo-se contra o preconceito em relação a publicações de mulheres. Depois que, como George Sand, publicou seu exitoso primeiro romance, Indiana (1832), com trama sentimental e de crítica à sociedade e ao tratamento dado à mulher, continuou a usar o pseudônimo, mesmo quando sua identidade era já conhecida. 

Em Paris, fez amizade com pessoas famosas da época, entre eles os escritores Victor Hugo, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Alfred de Musset, Prosper Mérimée – com estes dois, manteve relacionamento amoroso –, o pintor Eugène Delacroix, o advogado Michel de Bopuges – também amante e que a converteu aos ideais republicanos e socialistas –, os compositores Franz Liszt e Frédéric Chopin – com este manteve um relacionamento entre 1838 e 1847 – e o gravador Alexandre Manceau, o último amante. Depois dos eventos políticos de 1848, retornou a sua casa em Northan, continuou a receber correspondência e visitas de seus amigos famosos, escreveu obras mais realistas baseadas na vida do país e à maneira das histórias de fadas, como Contes d'une grand-mère (Contos de uma avó), com histórias que escreveu para os netos.

Com 27 anos de idade já era a escritora mais popular e prestigiada por grandes escritores europeus e foi a primeira mulher a viver de direitos autorais, garantindo o sustento com a atividade de escritora. Em sua vasta obra, marcada por três temáticas principais: o romantismo sentimental, o socialismo humanitário e o gosto pelo campo – constam mais de 100 publicações, entre romances, novelas e contos, textos jornalísticos e políticos, ensaios de crítica literária, peças de teatro, memórias, livros de viagens e correspondência, além de ter se dedicado à pintura. Destacou-se por abordar corajosamente temas considerados tabus na época, como o adultério e os direitos das mulheres, infringindo as convenções na vida pública e particular, provocando escândalos com suas publicações, suas relações amorosas e seu modo de fumar em público e se vestir com trajes masculinos – na época proibidos para mulheres – para poder participar de atividades permitidas somente aos homens, como as literárias.

Considerada um marco na história do romantismo francês, apesar das críticas de escritores, como Sthendal e Charles Baudelaire, conquistou reconhecimento e prestígio na França e outros países. Foi elogiada e admirada, além dos contemporâneos franceses, por, entre tantos outros, os escritores de língua inglesa Elizabeth Barret Browning, Henry James, Walt Whitman e também pelo imperador D. Pedro II, que, em 1872, durante viagem à Europa, chegou a visitá-la, mas, por motivos políticos, ela não estava em Paris, como relata o historiador brasileiro e acadêmico José Murilo de Carvalho. Alguns dos seus romances foram adaptados para cinema e séries de TV, e sua vida e obra têm sido tema de filmes, livros e estudos acadêmicos. Após seu falecimento, a neta doou a propriedade em Nohant ao governo francês, que a tornou Maison de George Sand, aberta à visitação pública.

É conhecido este trecho da carta de Victor Hugo lida no funeral da escritora: “George Sand era uma ideia. Ela ocupa um lugar único em nossa era. Outros são grandes homens… ela foi uma grande mulher. […] Eu choro uma morte e saúdo uma imortal.” Quase um século depois de sua morte, quando a conheci, a história dessa “grande mulher imortal” e do recurso ao pseudônimo para tentar burlar as interdições para a escritora eram ainda impactantes e me inspiraram a também criar pseudônimos masculinos. Com o tempo, fui abandonando todos, exceto um, que adotei como pen name/writer's alias/nom de plume e permanecerá secreto. Pois, como declarou George Sand, também eu, “Não sendo rapaz, dispenso a espada e fico com a pena, da qual vou me aproveitar da maneira mais inocente do mundo”. 

Maria Mortatti 

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Como citar este texto: MORTATTI, Maria. George Sand, o pseudônimo da pena inocente. 2023. Disponível em: https://www.livroseautores.com.br/2023/04/george-sand-o-pseudonimo-da-pena.html