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A ARTE DE PERDER, POR ELIZABETH BISHOP / MARIA MORTATTI

One art” (“Uma arte”) é uma joia. Cuidadosamente lapidada: 17 rascunhos em seis meses; versão final em duas semanas. Na forma, um villanelle – pequeno poema de forma fixa com 19 versos, cinco tercetos e uma quadra. No fundo, uma elegia – poema lírico de lamento, dor, melancolia –, que a poeta a vida toda desejou escrever, mas não completou. No brilho da pedra preciosa, a lapidação autobiográfica da experiência universal da perda. 

O poema foi publicado na revista The New Yorker, em abril de 1976, e em seguida no livro Geography III, três anos antes da morte da autora, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (Massachusetts, 08.02.1911 – 06.10.1979), órfã de pai, mãe com doença mental, criada por familiares, uma mulher tímida, asmática, autodesterrada, cosmopolita, viajante, esquiva a rótulos e sentimentalismo. Vivia da fortuna deixada pelo pai e enfrentava crises de alcoolismo. Viajou pela França, Espanha, Irlanda, Itália, Norte da África e Brasil. Escreveu poemas, textos em prosa com memórias de infância e relatos de viagem, extensa correspondência com importantes poetas – como Marianne Moore e Robert Lowell – durante 50 anos, até o dia de sua morte. Perfeccionista no trabalho com a palavra, publicou em vida apenas 101 poemas em quatro livros e alguns contos. Laureada com prêmios importantes, como: o Pulitzer – 1956, por seu segundo livro Poems: North & South/A Cold Spring; o National Book Award in Poetry – 1970, por The Complete Poems; e o Neustadt International Prize for Literature – 1976, a primeira mulher e o primeiro norte-americano a receber o prêmio. 

Em novembro de 1951, em viagem pela América do Sul, desembarcou no porto de Santos/SP e seguiu para o Rio de Janeiro para visitar amigos por duas semanas. Experimentou um caju que lhe causou forte alergia, obrigando-a a ficar mais tempo do que o previsto, conheceu a arquiteta Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, a Lota (1910 – 1967), apaixonou-se por ela e permaneceu no Brasil por 15 anos. Morou na cidade do Rio de Janeiro, na chácara Samambaia, em Petrópolis, e na cidade de Ouro Preto/MG, onde construiu uma casa. Aqui escreveu grande parte de sua obra, também sobre temas brasileiros, conheceu intelectuais e poetas e divulgou traduções em inglês de poemas de Manuel Bandeira – que também traduziu poemas da norte-americana –, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, além de o Diário de Helena Morley, de Alice Brant. Nos textos em prosa e em cartas aos amigos, criticava hábitos da cultura brasileira e, embora não tivesse interesse por política, chegou a elogiar o golpe militar de 1964, dada a proximidade de sua companheira, Lota, com políticos da UDN. Em 1966, com dificuldades financeiras, foi para Seattle, EUA, para ministrar um curso na Universidade de Washington e se apaixonou por uma jovem aluna norte-americana. Em setembro de 1967, Lota foi a Nova York para se encontrar com Bishop e, no dia seguinte, ingeriu overdose de tranquilizante, entrou em coma e morreu semanas depois, com 57 anos de idade. No início dos anos 1970, Bishop vendeu a casa em Ouro Preto e retornou aos Estados Unidos da América, viveu com outra mulher e, em 1970, passou a lecionar na Universidade de Harvard, em Massachusetts. Morreu em Boston, de aneurisma cerebral, com 68 anos de idade. A intensa relação amorosa de Bishop e Lota é retratada em livros e no filme Flores raras (2013), de Bruno Barreto, baseado no livro Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira. Em 2019, foi lançada sua biografia, pelo professor norte-americano Thomas Travisano, traduzida no Brasil pela Companhia das Letras.

Após a morte da irrequieta poeta, sua extensa correspondência foi publicada, seus livros foram reeditados, sua obra vem sendo redescoberta, com crescente reconhecimento de sua proeminência na literatura de língua inglesa do século XX, e traduzida em outros países, também no Brasil. É considerada uma das mais importantes poetas norte-americanas, pela precisão de descrições do mundo físico e a lírica concisa sobre temas como a solidão, a busca de pertencimento e, sobretudo, a angústia da perda que a acompanhou por toda a vida e, como essência da experiência vital, é reencontrada, enfrentada, dominada e lapidada na elegia em villanelle, esta joia de Elizabeth Bishop: 

One art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

– Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

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Uma arte

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

– Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

(Tradução de Horácio Costa, Companhia das Letras, 1990)

Maria Mortatti  23.05.2023