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O MITO DE FAUSTO EM TRÊS VERSÕES: GOETHE, PESSOA, MANN / MARIA MORTATTI

Conta a lenda alemã que um homem chamado Fausto fez um pacto com o demônio: vendeu sua alma em troca da satisfação de todos os seus desejos e da imortalidade. Por um acidente da história – conforme alguns estudiosos do assunto –, o protagonista da lenda foi confundido com outro homem da mesma época: o astrólogo, médico, alquimista e artesão de tipos gráficos Johann Georg Fust (1480 –1540), que se tornou, com participação de seu genro  Peter Schöffer, credor das dívidas de Johannes Gutenberg, o inventor da prensa de tipos móveis, por volta de 1439. Sendo as dívidas impagáveis, Fust moveu processo contra Gutenberg, venceu e assumiu também o crédito pela invenção, tendo sido acusado de impostor. Como os nomes alemães Faust e Fust têm a mesma origem latina em Faustus, e a impressão era vista como invenção que tanto poderia beneficiar quanto causar mal à humanidade, a má reputação do Dr. Fust foi associada à de Fausto – o da lenda – com finalidade religiosa e de pregação da doutrina de Lutero, para mostrar, por meio da divulgação de material de leitura como incentivador de heresias, os malefícios da arte de imprimir e sua ligação com o demônio, acentuada pela tinta vermelha usada na impressão da que ficou inicialmente conhecida como Bíblia de Fust e Peter, mas, por justiça, apelidada de "Bíblia de Gutenberg".   

As histórias do lendário Fausto foram reunidas em livro em 1587, por Johann Spiess, livreiro e escritor de Frankfurt, e passaram a fazer parte da tradição europeia, com muitas versões literárias, tornando-se inspiração também para composições musicais, filmes, peças de teatro, artes plásticas e mídias contemporâneas. O destaque expressivo do mito ocorreu no período do romantismo alemão, passando do plano mágico religioso ao literário profano, caracterizando a ambição do homem da modernidade que negocia sua alma com o demônio, para se apropriar do mundo e da natureza, encarnando o desejo de imortalidade e a fé na ciência e na magia. E provavelmente – de modo consciente ou não – cada um tem seu Fausto preferido. Os meus são os de Goethe, Pessoa e T. Mann.

Fausto, do escritor alemão Johan Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), é uma tragédia/drama (em forma de peça de teatro) escrita em versos, em duas partes, publicadas em 1808 e 1832 (post mortem). O protagonista, um homem muito inteligente, mas insatisfeito, conhece o demônio Mefistófeles e com ele faz um pacto assinado com sangue: vende a alma, em troca da realização do desejo de saber e gozar a vida sem envelhecer. Perde, porém, Margarida, a jovem por quem se apaixona e que, depois de matar o filho gerado da relação com Fausto, é condenada à morte e morre nos braços dele. O Fausto de Goethe é símbolo da humanidade, que erra enquanto age, mas que deve agir para atingir o ideal que ela mesma entreviu. Ao final da tragédia, é salvo porque jamais deixou de tender a um ideal. Fausto – tragédia subjectiva (fragmentos), do poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935), também em versos, foi escrita entre 1929 e 1933, permanecendo inacabada e inédita até os anos 1980. O tema é o mistério do mundo, na luta entre inteligência e vida. Não há pacto nem aposta com o demônio, nem a busca do saber totalizante, apenas o monólogo do eu-poético como questionamento da realidade e do mistério que o torna superior aos outros. Também esse Fausto não tem a capacidade de amar como experiência concreta e hesita intelectualmente, não podendo corresponder à intensidade do amor que Maria lhe devota. Na luta entre inteligência e vida, vence, ao final, a inevitabilidade da morte, que anula a existência e o pensamento. Para Pessoa: “o segredo da busca é que não se acha”. Seu Fausto simboliza a consciência do ser humano em busca fáustica do conhecimento, enfrentando o poder desagregador do pensamento, o mistério de existir e a impossibilidade de amar. Doutor Fausto, do escritor alemão Thomas Mann (1875 – 1955), é um romance publicado em 1947, no qual a vida do protagonista, o compositor alemão Adrian Leverkühn, é narrada por Serenus Zeitblom, seu amigo de infância, que descreve também o ambiente cultural, musical de sua época e os acontecimentos políticos de ascensão do nazismo na Alemanha entre 1943 e 1946. Leverkühn vende a alma ao demônio, em troca de viver o suficiente para realizar sua grande e ousada obra musical, embora com a condição de que nunca poderia amar: enlouquece em decorrência da sífilis que, como forma de atingir a genialidade artística, contraiu intencionalmente na relação com a bela prostituta Esmeralda. Fausto é, nas palavras do autor: “uma figura ideal, um herói do nosso tempo, um homem que traz em si o sofrimento de uma época”.

O mito de Fausto continua vivo. Cada um tem o seu preferido e cada um é também um Fausto, sempre tentado ao pacto com os Mefistófeles que nos rondam. Vejo agora, escrevendo este texto, que meus Faustos são os que descobri e li, com 35 anos de idade, no ano de 1990, em traduções brasileiras então recém-lançadas: de T. Mann e F. Pessoa, pela Nova Fronteira; de Goethe, pela Itatiaia. Uma instigante coincidência. Que interesse teria despertado em mim esse misterioso mito nas três versões que, após três décadas, continuo relendo, fascinada? E, hoje, como a dimensão trágica da condição humana seria representada por um Fausto da “sociedade do conhecimento”, que nos tenta com as maravilhas das conquistas e avanços tecnológicos infinitos, questionando e ameaçando incessantemente nossa relação com o mundo, a natureza, os outros e nós mesmos, alimentando nosso insaciável desejo de conhecimento e de imortalidade, ainda que sob a pena de renunciar ao amor? Como seria o mito de Fausto, se contado por uma mulher e do ponto de vista de Margarida, Maria ou Esmeralda?

Maria Mortatti