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BUFFON: “O ESTILO É O PRÓPRIO HOMEM” / MARIA MORTATTI

Estilo, do latim "stilus", ponteiro de ferro utilizado na Antiguidade greco-latina para escrever sobre tabuinhas enceradas, passou a significar, já naquela época, o modo de escrever, tornando-se objeto de estudo da Retórica – arte de usar a linguagem para persuadir e influenciar –, incluindo regras de bem escrever e discursar, situando-se entre a gramática e a crítica literária, com tentativas nem sempre exitosas de definição. Coube ao Conde de Buffon formular a noção moderna do termo, especialmente com uma frase que o tornou conhecido, para além do campo científico em que se destacou como um dos maiores naturalistas do Século das Luzes. 

O filósofo, naturalista, matemático e escritor francês George-Louis Leclerc, Conde de Buffon (07.09.1707 – 16.04.1788), pioneiro na formulação de concepções filosóficas sobre a influência do meio na degeneração das espécies e de considerações sobre as diferenciações das raças humanas, que subsidiaram o progresso da biologia, foi precursor das teorias evolucionistas que influenciaram, entre outros, Jean-Baptiste de Lamarck e Charles Darwin. Em 1733, pelos trabalhos no campos da física e da geometria, foi convidado para a Academia de Ciências, da França. Em 1739, foi nomeado intendente do Jardim do Rei, em Paris, e se dedicou à investigação da natureza, de que resultou a monumental e enciclopédica História natural, geral e particular, publicada em 36 volumes, entre 1749 e 1804, em que descreve com precisão os mais variados seres da natureza e apresenta concepção própria da história natural, do método, dos princípios, da linguagem e do estilo mais adequados a essa ciência.

Curiosamente, esse ilustre naturalista é com mais frequência lembrado – quando citam seu nome – pela frase “Le style c’est l’homme même”/”O estilo é o próprio homem”, que consta de seu discurso de recepção na Academia Francesa, em circunstâncias também curiosas, como conta a pesquisadora Isabel Coelho Fragelli, baseada em notas de Stéphane Schmitt. Com a morte do acadêmico Languet de Gergy, arcebispo de Sens, o poeta e dramaturgo Alexis Piron foi indicado para substituí-lo, mas o Rei Luís XV suspendeu o processo, porque considerava licenciosa uma das obras do poeta. Mesmo sem ter solicitado o ingresso, Buffon foi eleito, no dia 1º de julho de 1753, para ocupar a Cadeira e, no dia 25 de agosto daquele ano, proferiu seu famoso discurso de recepção: Discurso sobre o estilo. E, em vez de, como mandava a tradição, proferir elogios a seu antecessor Languet de Gergy – figura controversa e com muitos desafetos, por defender o partido dos religiosos contra o dos filósofos –, Buffon escolheu o tema que acabaria por torná-lo famoso também como grande escritor, e seu discurso, “um clássico da arte oratória”, aplaudido entusiasticamente pelos acadêmicos e marco de renovação dos estudos sobre estilo. Eis o famoso trecho, que, por coerência, é melhor citar literalmente, mantendo o estilo do autor: “As obras bem escritas são as únicas que passarão à posteridade; a grande quantidade de conhecimentos, a singularidade dos fatos, e mesmo a novidade das descobertas não são garantias seguras de imortalidade; se as obras que as contêm discorrem somente sobre pequenos objetos, se são escritas sem gosto, sem nobreza e sem gênio, devem decerto perecer; pois os  conhecimentos, os fatos e as descobertas são facilmente transmitidos, transportados e, de fato, ganham muito quando são trabalhados por mãos mais hábeis. Essas coisas estão fora do homem; o estilo é o próprio homem; o estilo não se pode, portanto, nem transmitir, nem transportar, nem alterar; se ele é elevado, nobre, sublime, o autor será igualmente admirado em todos os tempos; pois apenas a verdade é durável e eterna.”

As interpretações posteriores da frase e sua utilização em outros contextos nem sempre coincidem com o pensamento ou intenção original de Buffon. Seu estilo como escritor foi criticado por enciclopedistas de seu tempo; seu discurso foi apreciado por escritores seguintes, como Charles Baudelaire e Gustave Flaubert; outros consideraram o estilo sobretudo como marca pessoal da expressão do gênio de um escritor ou de uma escola literária ou artística; e o conceito moderno que cunhou deu origem à Estilística, ramo da Linguística. Buffon também foi membro das academias francesas de Lyon e Dijon e das de Londres, Edimburgo e Berlim. Na Academia Francesa, não conseguiu a influência a que aspirava e acabou não mais frequentando as reuniões. Mas foi admirado por soberanos como Luís XV, Catarina da Rússia, Príncipe Henrique da Prússia, e por filósofos como Rousseau, Voltaire e Montesquieu. Em seu funeral estavam presentes todos os membros da Academia. Durante a Revolução Francesa, seu túmulo foi arrombado, o chumbo da cobertura do caixão foi roubado para produzir balas, seu coração, salvo e guardado por Suzane Necker, foi depois perdido, restando apenas seu cerebelo na base de sua estátua que Luís XVI mandou erguer em 1776, na entrada do Museu de História Natural, em Paris.

Criticado ou admirado por seu estilo, fato é que, ao cunhar aquela frase axiomática, o naturalista Buffon inscreveu seu nome, com estilo, nas tábuas da posteridade. E, sobretudo nos dias atuais, com o célere avanço da Inteligência Artificial e das plataformas de geração de textos por robôs treinados para capturar/copiar/plagiar conteúdos disponíveis na Internet, é inevitável uma provocativa reflexão: “O estilo é o próprio homem”, ou seja, é próprio dos seres humanos, tão somente. O resto é simulacro de texto, sem autor, sem crédito, sem alma, sem... estilo. Ou melhor, no estilo – facilmente detectável – da artificial inteligência de robôs, dispositivos capazes de agir de maneira automática, em substituição aos seres humanos, especialmente em tarefas sujas ou perigosas.

Maria Mortatti