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GUIMARÃES ROSA E FITA-VERDE: AVE, PALAVRA! / MARIA MORTATTI

O escritor, diplomata e médico cordisburguense-brasileiro João Guimarães Rosa (27.06.1908 – 19.11.1967), premiado e consagrado pelos poemas, contos, novelas e o monumental romance Grande sertão: veredas, traduzidos e lidos em vários países, é também autor de textos talvez menos conhecidos, como os que integram Ave, palavra, obra póstuma. Com primeira edição em 1970, pela José Olympio, Ave, palavra foi organizado pelo crítico e tradutor Paulo Rónai (1907 – 1992) , com o título e os textos que o autor já tinha deixado prontos, antes de falecer de ataque cardíaco, três dias após sua posse na Cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, cuja cerimônia de posse – que adiou por quatro anos temendo forte emoção, como se conta – ocorreu no ano em que foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura. Classificado pelo autor como “miscelânea”, o livro contém contos, poemas, notas de viagem, trechos de diários, reportagens poéticas, meditações, publicados em revistas e jornais entre 1947 e 1967. Na segunda edição, de 1978, o organizador acrescentou outros deixados por Rosa, alguns inéditos, totalizando 56 textos com temas, forma e extensão variados. 

Nesse livro está o conto “Fita verde no cabelo (Nova velha história)”, publicado primeiramente no "Suplemento Literário" de O Estado de S. Paulo, em 08.02.1964. “Ave, Rosa! Estonteante!”, foi tudo o que pude dizer, depois de devorar o texto pela primeira vez. Trata-se de versão da história de Chapeuzinho Vermelho, compilada da tradição oral e pela primeira vez registrada por escrito em forma literária – com a moralidade de advertência às jovens sobre os perigos dos lobos, especialmente ao mais melosos e aduladores –, pelo escritor francês Charles Perrault, em seu livro Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités (Histórias ou contos do tempo passado com moralidades), conhecido como Les contes de la mêre l'Oye (Contos da mamãe Gansa), de 1697. No breve (re)conto, em inconfundível estilo rosiano, “tudo era uma vez”: “em uma aldeia em algum lugar”, mora uma meninazinha, a única “sem juízo suficientemente” que, a pedido de sua mãe, vai à casa da avó “que a amava”, com cesto, pote e “uma fita verde inventada no cabelo”. No caminho, não encontra o lobo, que “os lenhadores já tinham exterminado”. E “ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso.” Depois de bater à porta, ouvir a voz da avó, entrar e vê-la acamada e doente, Fita-Verde espantou-se, “além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada”, fez as perguntas conhecidas, com respostas inesperadas, e, ao final, "mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: — ‘Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…’ Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.” Na nova velha história, exterminado o lobo, o perigo mais inquietante é a passagem da infância para a adultez, transfigurada pela palavra e representada simbolicamente pelo confronto com a perda, a dor, a solidão, a morte. Como ocorreu com Chapeuzinho Vermelho, Fita-Verde conquistou leitores de todas as idades, ganhando autonomia em publicação solo com direcionamento editorial ao público jovem e acolhida por professores, como um irresistível convite para conhecerem e apreciarem o universo dos textos rosianos, considerados “difíceis” para leitores iniciantes.  

“Ave”, significa “salve”: forma usada para saudar César, o imperador romano, e pelo Anjo Gabriel ao anunciar a Maria que ela estava grávida de Jesus. Talvez essa também fosse a forma de saudação de Rosa a sua segunda esposa, Aracy, o “Anjo de Hamburgo”, a quem ele dedicou, como pertencimento, Grande sertão: veredas. "Ave, Rosa!", repeti hoje, enquanto, folheando seus livros e relendo “Fita verde no cabelo”, lembrava-me de suas palavras no discurso de posse como “imortal”: “A gente morre é para provar que viveu.” 

Maria Mortatti – 27.06.2023