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“RIDENDO CASTIGAT MORES”, O LEMA DE JEAN DE SANTEUL / MARIA MORTATTI

A expressão latina “Ridendo castigat mores” (“Rindo corrigem-se os costumes” ou “Pelo riso se corrigem os costumes) tem origem incerta, até certo ponto. Alguns a atribuem ao dramaturgo e poeta Gil Vicente (1465 – 1536), o pai do teatro português; outros, ao dramaturgo francês Molière (1662 – 1673), um dos grandes mestres da comédia satírica; outros, ainda, ao escritor romano Petrônio, mestre da sátira, em sua obra Satyricon (60 d.C.). Pelo que conheço há algumas décadas e confirmam os esparsos registros disponíveis em livros e em sites na internet, a célebre frase foi cunhada pelo poeta francês Jean de Santeul (Jean-Baptiste Santeul ou Jean-Baptiste Santeuil, 05.12.1630 – 05.08.1697), conhecido pelo pseudônimo Santolius Victorinus e que escrevia em latim, numa época em que essa língua ainda disputava sua preeminência sobre o francês e outras línguas vulgares. Foi cônego na paróquia de São Victor, em Paris, e também escreveu hinos religiosos, vários deles traduzidos para o inglês e de uso comum na Grã-Bretanha e na América do Norte.

A versão mais conhecida sobre a origem da frase é a do historiador e dramaturgo francês Edouard Fournier: o ator italiano Dominique Biancolelli, célebre por sua atuação nos papéis de Arlequim na Commedia dell'arte, foi para Paris com sua trupe, em 1662, e, conhecendo a fama de Santeul, pediu-lhe uma frase para ser gravada no frontispício de seu teatro. Assim nasceu o lema que seria usado também em muitos outros teatros e em periódicos satíricos, aplicando-se, ainda, às obras de Gil Vicente, Molière e Petrônio, entre outras. Santeul vivia de acordo com essa filosofia. Dava conselhos maliciosos, irritando pessoas piedosas, que reclamavam por não ser adequado cantarem os hinos religiosos de um autor ímpio e de costumes pouco recomendados. De temperamento jocoso, afável no trato e singular em seus hábitos, Santeul podia também se tornar raivoso, além se ser orgulhoso e convencido, como relatam seus contemporâneos. Segundo o poeta francês Nicolas Boileau, Santeul se considerava o maior poeta do mundo e declamava seus versos, aos gritos, nos salões da Place Maubert: “(...) fala como um louco e pensa como um sábio; ele diz coisas ridiculamente verdadeiras, e coisas loucamente sensatas e racionais…”.  Em suas Memórias, o francês Louis de Rouvroy de Saint-Simon conta que Santeul morreu por causa de uma brincadeira de que aceitou participar durante um jantar na casa de seu amigo, o duque de Bourbon: por diversão, despejaram uma caixa cheia de tabaco na taça de champagne do poeta. Depois de 24 horas dos efeitos da experiência cruel, Santeul faleceu, aos 67 anos de idade.

“Não considere aquele que trabalha, mas o trabalho” é outra frase atribuída a Santeul, em resposta às críticas que recebia. De fato, assim tem sido. Vários de seus mais de 400 hinos continuam em uso, e seus poemas estão inscritos em fontes na cidade de Paris. A história da excêntrica vida e trágica morte do poeta também inspirou Marcel Proust a criar o personagem de seu primeiro romance, escrito a partir de 1895, que ficou inacabado e só foi publicado em 1952, 30 anos após sua morte, com o título Jean Santeuil, traduzido no Brasil por Fernando Py (Nova Fronteira, 1982). “Ridendo castigat mores”, a frase-lema da vida do poeta Jean de Santeul, continua atual, sempre cabendo em algum ato do drama cômico-satírico que é a vida de todos nós.

Maria Mortatti