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MISCELÂNEA DE ACEPIPES / MARIA MORTATTI

Miscelânea é um gênero literário ou científico caracterizado pela compilação, em um só volume, de escritos dispersos e avulsos sobre vários assuntos, de um ou mais autores. Esse gênero era utilizado desde a Antiguidade, como, entre outros, pelo historiador, biógrafo, filósofo grego Plutarco (48 d.C. – 120 d.C.), que em seu livro Vidas paralelas compilou biografias, aos pares, de homens ilustres de Roma e da Grécia. Na Idade Média, entre outros, o livro As viagens de Marco Polo, do mercador e explorador veneziano Marco Polo (c.1254 –1324) é uma miscelânea, cujas histórias foram organizadas por Rusticiano de Pisa, a quem o explorador as contou quando ambos estavam na prisão em Gênova. No Renascimento (século XIV/século XVII) – a era do "homem universal" –, com a invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg e principalmente no Século de Ouro espanhol (entre os séculos XVI e XVII), as miscelâneas ganharam novo impulso, sendo consideradas antecedentes do ensaio. Tornaram-se a forma mais adequada de reunir e divulgar, sem preocupação com tema comum, as ideias do os humanistas, eruditos ou às vezes apenas homens com muitas leituras e desordenadas, inquietos intelectualmente, curiosos e interessados por todo tipo de assunto, como filosofia, literatura, ciência, medicina, artes... O objetivo das miscelâneas era instruir e encantar, transmitindo de forma agradável, em prosa, verso ou peça de teatro, um conjunto de conhecimentos e informações compilados de fontes diversas, muitas vezes escritos em "língua vulgar", numa mistura de opinião, instrução e diversão – às vezes doutrinação – para despertar o interesse dos leitores. As do século XVI incluíam curiosidades de tipos diversos, como episódios históricos, provérbios, aforismos, fábulas, memórias autobiográficas, mas predominando como fonte a tradição da cultura popular, com casos assustadores, lendas com personagens fantásticos – como nos bestiários medievais –, seres humanos monstruosos, histórias de fantasmas e aparições de demônios e até receitas de beleza, conselhos domésticos, medicina popular, superstições. Tanta mistura também rendeu sátiras bem-humoradas, como a do poeta espanhol Francisco de Quevedo (1580 – 1645) que escreveu Libro de todas las cosas y otras muchas más, uma miscelânea de aforismos, anúncios, sonetos e outros textos breves que ridicularizam tanto o gênero quanto seus leitores. Essas miscelâneas foram traduzidas e adaptadas em várias línguas, servindo de inspiração a padres e escritores. Com o tempo, foram se distanciando das características iniciais e se assemelhando aos almanaques populares da França do século XVII e XVIII. Mas o gênero continuou a ser praticado na Espanha – o almanaque Lunário Perpétuo de enorme sucesso também no Brasil –, em outros países, como Portugal, Inglaterra e árabes.  Até os dias atuais, alguns autores publicam miscelâneas com textos que, por exemplo, não cabem nos gêneros predominantes de sua produção literária ou científica. Entre famosas obras desse gênero encontram-se: Pastiches e miscelânea (1919), do escritor francês Marcel Proust, reunião de pastiches publicados no jornal Le Figaro e textos entre ensaio e literatura, sobre temas diversos; e Outras inquisições (1952), do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), reunião de ensaios publicados em revistas e jornais entre 1936 e 1952. Conforme o melhor da tradição miscelânica, esse gênero é também muito adequado, ainda hoje, para despertar a curiosidade e tentar conquistar a atenção e o interesse de leitores, como um prato delicado servido em pequenas porções, antes da refeição, para abrir o apetite, convidando à degustação do prato principal: a leitura como fonte de prazer e conhecimento de autores, livros e assuntos de seu entorno. Foi o que busquei fazer neste texto que integra uma miscelânea de acepipes.

Maria Mortatti