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BESTIÁRIOS MEDIEVAIS: MANUSCRITOS ILUMINADOS COM SERES FANTÁSTICOS / MARIA MORTATTI

Bestiário ou Livro das bestas (do latim “bestia”, “animal”) era, na Idade Média, a denominação de um gênero de literatura em prosa ou verso, contendo descrições físicas e de comportamento de animais, reais ou imaginários – além de plantas e minerais –, acompanhadas de explicação e de uma ou mais iluminuras, pintura decorativa aplicada às letras capitulares ou a representações imagéticas nos manuscritos (códices ou pergaminhos) medievais, produzidos principalmente em conventos. Os bestiários não foram os únicos manuscritos iluminados, mas, numa época em que poucos sabiam ler – muito menos em latim, idioma da maioria dos bestiários – as iluminuras não eram mero elemento decorativo nesse tipo de livro. Os animais reais ou imaginários simbolizavam vícios e virtudes humanos, com função de transmitir ensinamentos morais e religiosos, ligados principalmente ao cristianismo. Embora a fonte dos ensinamentos fosse a natureza, como a conheciam na época, o objetivo não era um texto científico. Algumas observações e imagens do mundo natural eram precisas, sobre animais considerados positivos – como leão e águia – ou negativos – como porco e serpente –, mas outros eram completamente fantásticos – como a fênix, dragão, unicórnio, basilisco, bonnacon. Texto e imagem compunham o sentido e a dimensão alegórica e simbólica desses livros, caracterizando-os como literatura dos laicos (litterature laicorum) e um poderoso recurso com função didática e moralizante: "para melhorar a mente das pessoas comuns, de tal maneira que a alma perceba pelo menos fisicamente as coisas que ela tem dificuldade em compreender mentalmente: o que eles têm dificuldade em compreender com os ouvidos, eles perceberão com os olhos" (Bestiário de Aberdeen). Durante a Idade Média, o sucesso e a popularidade dos bestiários eram comparáveis aos da Bíblia.

Os bestiários remontam à Antiguidade clássica greco-latina, e o mais importante foi o Physiologus (Fisiólogo), de autoria desconhecida, escrito em grego, entre os séculos I e III, em Alexandria. Continha histórias baseadas nos fenômenos da natureza, divididas em 48 seções, uma para cada planta, pedra ou animal relacionados com a Bíblia. O original não foi localizado, e o que se conhece é uma retradução. Mas alcançou tanta popularidade que, no século V, foi traduzido na Etiópia, na Síria e na Armênia. Embora os manuscritos latinos mais antigos começassem a circular apenas no século VIII, possivelmente no século V já circulasse uma versão latina desse livro, pois um Fisiólogo latino consta da lista dos livros proibidos pelo Decretum Gelasium, do Papa Gelásio (492 – 496), como relata a pesquisadora Angela Varandas. Após o século VIII, o Fisiólogo foi vertido para vários idiomas, como anglo-saxônico, árabe, islandês, provençal, castelhano e italiano, e começaram a ser produzidas as muitas versões latinas que, além de outros manuscritos, originou os bestiários dos séculos XII, XVIII e XIV, cujo desenvolvimento coincide com o das bibliotecas monásticas, sem que se possa indicar autoria única, pois, para sua elaboração, eram necessários o copista, o tradutor, o revisor, o iluminador, entre outros. 

Os bestiários conquistaram prestígio principalmente na Inglaterra, em manuscritos em latim, como os mais famosos: Book of Beast e The Aberdeen Bestiary, ambos do século XII, aproximadamente. Mas também existiram os produzidos na França, com traduções em vernáculo do Fisiólogo latino – como os bestiários de Philippe de Thaon, Guillaume Le Clerc, Pierre de Beauvais e Richard de Fournival. A popularidade desses livros se deve, sobretudo, ao neoplatonismo na cultura medieval, caracterizando-se como um livro híbrido: naturalista, maravilhoso, exegético, didático e alegórico. Santo Agostinho, um dos primeiros teólogos e filósofos do cristianismo, estabelecendo relações entre o mundo natural e material e o mundo essencial e divino, considerava que os bestiários, com sua forma alegórica, contribuíam para ensinar contra os perigos dos pecados e dos vícios e, assim, glorificar o Senhor e atingir a Verdade divina.

Com os avanços científicos do Renascimento europeu, especialmente sobre a concepção antropocêntrica do mundo e a invenção da prensa de tipos móveis que propiciou a disseminação do livro impresso e imagens mais realistas, os bestiários medievais foram perdendo sua função original, mas continuaram inspirando renascentistas, como o polímata florentino Leonardo Da Vinci, autor de Bestiário, fabulas e outros escritos (póstumo). No século XX, o escritor francês Guillaume Apollinaire, publicou O bestiário ou o cortejo de Orfeu (1911) e o argentino Jorge Luis Borges, O livro dos seres imaginários (1968). Neste século, a escritora britânica J. K. Rowling lançou Animais fantásticos & onde habitam (2001), e o canadense Tony Allan, The mythic bestiary: The illustrated guide to the world’s most fantastical creatures (2008). A palavra “bestiário” continua sendo usada em referência a monstros, em videogames, por exemplo. A interação texto e imagem daqueles manuscritos iluminados originaram os livros ilustrados e, entre outros processos de reprodução de imagens, as xilogravuras, como nos folhetos do cordel do Nordeste brasileiro, em que a tradição dos bestiários medievais continua presente, com sereias, dragões e outros seres fantásticos. Daqueles livros das bestas também se originaram mitos incorporados definitivamente ao imaginário popular e à simbologia das artes, como a fênix que renasce das próprias cinzas. E confesso: o assunto deste texto me inspirou a também escrever meu Bestiário amoroso. Devidamente iluminado.

Maria Mortatti – 04.08.2023