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CAROLINA MARIA DE JESUS: “O LIVRO É A MELHOR INVENÇÃO DO HOMEM” / MARIA MORTATTI

Carolina Maria de Jesus (Sacramento/MG, 14.03.1914 – São Paulo/SP, 13.02.1977), mulher, negra, pobre, pouco escolarizada, que desde pequena gostava de ler e escrever e sonhava em ser escritora, que foi empregada doméstica, favelada e catadora de papel, é a autora do clássico Quarto de despejo: diário de uma favelada, seu livro de estreia lançado em 1960, que alcançou estrondoso e imediato sucesso comercial e literário, projetando internacionalmente o nome da autora. Embora tenha ficado conhecida sobretudo pelos diários, Carolina foi também compositora, cantora e escreveu extensa obra, em diferentes gêneros – poemas, contos, crônicas, romances e peças de teatro, a maioria inédita e em fase de publicação. Publicou outros livros com recursos próprios, como Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), o romance A felizarda/Pedaços da fome (1963), Provérbios (1962). Postumamente, foi publicado Um Brasil para brasileiros/Diário de Bitita, livro de memórias, anotadas em dois diários, editado em 1982, na França, e em 1986, no Brasil. Grande parte de sua obra – em cadernos com diários manuscritos, disco com interpretação de canções de sua autoria, além de dezenas de fotografias e outras anotações – vem sendo (re)descoberta, divulgada, lida, estudada e festejada.

Em Quarto de despejo: diário de uma favelada se encontra o diário da autora, escrito entre 15 de julho de 1955 e 1º. de janeiro de 1960, em que relata o cotidiano da vida na favela paulistana do Canindé, às margens do Rio Tietê, onde passou a morar, no final dos anos 1940, depois de passagens por outras cidades em busca de emprego, e de onde saía para catar papel que utilizava para escrever, além de vender para sustentar os três filhos que criou sozinha, pois não se casou para não se submeter à violência dos homens. De forma autêntica e comovente, mas também com certa dose de humor e poesia, Carolina relata a triste e angustiante vida na favela, com privações, miséria, fome, preconceito, violência e abandono social: “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados”. Mas registra também reflexões sobre a sociedade e a política da época, sobre os sonhos e as fantasias que criava para esquecer que estava na favela, sobre seu amor pelos livros e pela literatura, que impulsionaram a transição de sua vida, e pela escrita, que a salvava nos piores momentos de fome. Como se nenhum momento de sua vida pudesse ser desperdiçado, os registro pontuais vão iluminando o “projeto” da escritora: 

Quando cheguei em casa, era 22h30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem (21.07.1955). 

Levantei de manhã e fui buscar água. (...) Não tinha dinheiro em casa. Esquentei comida amanhecida e dei aos meninos (...) Seu Gino veio dizer-me para eu ir no quarto dele. Que eu estava lhe despresando. Disse-lhe: Não! É que estou escrevendo um livro para vende-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. (27.07.1955). 

Em um dos mais poéticos trechos do diário, depois de receber seis cruzeiros com a venda de material reciclável, Carolina conta que chegou a pensar em guardar para comprar feijão, mas, torturada pela fome, resolveu "tomar uma media e comprar um pão": 

Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. ...A comida no estomago é como o combustível nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.” (27.05.1958)

Depois de ela ter procurado editoras, sem obter êxito, o diário foi publicado com edição e organização pelo jornalista Audálio Dantas (1929 – 2018), que a descobriu ou foi por ela descoberto, quando preparava reportagem sobre a favela. Ao ler os cadernos, Audálio concluiu que Carolina já tinha escrito a visão “de dentro da favela”, dando voz àquela população abandonada e marginalizada pela sociedade. Em 1958, ele publicou trechos do diário, com o título "O drama da favela escrito por uma favelada”, na Folha da Noite, e, em 1959, outra matéria na revista O Cruzeiro, tendo ambas causado polêmicas e muita curiosidade para leitores da época, impactados e que chegaram a duvidar do fato de uma mulher, negra, pobre e pouco escolarizada ter escrito, ela mesma, sua história. O livro foi publicado pela Livraria Francisco Alves e lançado em 19.08.1960, com a presença de famosos escritores, editores, políticos. Na semana de lançamento, foram vendidas cerca de 10 mil cópias, chegando a 80 mil nos primeiros meses e, depois, foi traduzido para 15 idiomas, com efeitos também em medidas de autoridades para desmantelar a favela cuja miséria ficou estampada no livro. Carolina foi capa de revistas nacionais e estrangeiras, conquistou a admiração de críticos e leitores, mas também inveja dos vizinhos da favela, que viam suas vidas retratadas no diário, e foi alvo de novas polêmicas dos que a consideravam apenas “exótica” e "pitoresca" ou duvidavam da autenticidade de sua autoria. Mas foi defendida por escritores como Manuel Bandeira e Otto Lara Resende, além de Audálio Dantas. Em 1961, o livro foi adaptado para o teatro por Edy Lima, com direção de Amir Haddad e Ruth de Souza no papel principal, e, em 1971, Carolina foi protagonista do filme Favela: a vida na pobreza, da alemã Christa Gottmann, com base em Quarto de despejo. Para a autora, a publicação do livro representou a realização do sonho e lhe proporcionou glória, fama e algum dinheiro para se mudar da favela até chegar ao sítio no bairro de Parelheiros. Em seu diário, registra detalhadamente os acontecimentos do “dia alegre” do lançamento, e em seus depoimentos, destaca sua devoção aos livros e a realização de seu desejo de ser escritora: “meu amor pela literatura foi-me incutido pela minha professora, Lanita Salvina”; “A transição da minha vida foi impulsionada pelos livros. Tive uma infância atribulada. É por intermédio dos livros que adquirimos boas maneiras e formamos nosso caráter.” “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia (...) o meu diário” “Fiquei alegre olhando o livro e disse: ‘O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor.’ E li meu nome na capa do livro: ‘Carolina Maria de Jesus. Diário de uma favelada. Quarto de despejo.’ Fiquei emocionada. É preciso gostar de livros para sentir o que eu senti.”

Com Quarto de despejo, registro da intimidade ficcionalmente compartilhada como denúncia e salvação, testemunho das condições de vida dos marginalizados e também como criação literária, Carolina se tornou uma das escritoras mais conhecidas no Brasil e a autora brasileira mais publicada no exterior, em particular nos Estados Unidos da América, segundo o historiador José Carlos Sebe B. Meihy, um dos principais responsáveis pela “redescoberta” da escritora, nos anos 1990. Carolina morreu com pouco antes de completar 63 anos de idade e pobre, mas deixou imensas contribuições, para sua época e para os dias atuais e em várias dimensões: como intérprete do Brasil, como protagonista da história de resistência e luta da população negra contra as desigualdades de classe social, raça e gênero; como pioneira na “literatura marginal”, pelo testemunho das condições de vida da população abandonada em favelas e outros “quartos de despejo”. Com leve declínio nas décadas seguintes ao lançamento, a partir dos anos 1990, além de sucessivas reedições do livro de estreia e gradativa publicação de inéditos, Carolina e sua obra se tornaram definitivamente objeto de estudos sociológicos, antropológicos e literários por pesquisadores brasileiros e estrangeiros e leitura obrigatória em exames pré-vestibulares no País. Além das biografias e homenagens em exposições comemorativas e prêmios literários, foi agraciada postumamente com o título de Doctor Honoris Causa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Embora não tenha sido a primeira escritora brasileira negra nem a primeira a publicar diários, em Quarto de despejo  publicado há 63 anos e sempre atual – Carolina Maria de Jesus deu voz, de forma pioneira, à experiência viva e vivida da fome como privação fisiológica e como metáfora da busca de realização do direito humano à fantasia e ao sonho, por meio da leitura e da escrita, combustível do espirito, como o alimento é para o corpo. Alimentou-se da escrita, quando não tinha o que comer. Por muitas noites de Scherazade, contou-se histórias para sobreviver. Do material descartado, fez a poesia-testemunho de si e dos marginalizados. Transformou o papel catado no lixo em páginas de seu diário-livro. Catando palavras para nomear sua realidade, a leitora se tornou a escritora reconhecida e festejada pelo pioneirismo e qualidade de sua obra. Com suas "escrevivências" – termo criado pela escritora contemporânea Conceição Evaristo, influenciada pela obra de Carolina –, a autora de Quarto de despejo alimentou também a literatura e a cultura brasileiras, conquistou lugar definitivo no cânone literário e deixou um valioso legado como inspiração e referência, não apenas para escritoras negras e movimentos culturais da “periferia”, mas para todos os que conhecem e vivem o poder transformador do livro, essa “melhor invenção do homem" e de Carolina Maria de Jesus, simbolizada por sua obra imortal e reafirmada num de seus últimos pedidos à filha, Vera Eunice: não flores, mas livros sobre seu túmulo.

Maria Mortatti – 16.09.2023