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ENSINO DA LEITURA E ESCRITORES DIDÁTICOS NA "BELLE ÉPOQUE" EDUCACIONAL PAULISTA / MARIA MORTATTI

Após a proclamação da República brasileira, iniciou-se a reforma da instrução pública paulista liderada pelo médico e educador Antonio Caetano de Campos (1844 – 1891). Com objetivos de inovar e modernizar a instrução pública, a reforma oficializou, institucionalizou e sistematizou um conjunto de aspirações políticas para a educação em consonância com o projeto republicano de modernização do País e divulgadas desde o final do Império. Enfeixadas pela filosofia positivista, essas aspirações convergiam para a busca de cientificidade – e não mais o empirismo – na educação das crianças e delineavam a hegemonia dos métodos intuitivos e analíticos para o ensino de todas as matérias escolares. A partir de então, essa “nova bússola” sintonizada com os progressos da "pedagogia moderna" deveria orientar a escola primária e a preparação não apenas teórica, mas, sobretudo, prática, de um novo professor que deveria deduzir da psicologia da infância e suas bases biopsicofisiológicas os modos de ensinar à criança. 

No âmbito dessa reforma, a Escola Normal de São Paulo – fundada em 1846, “reinaugurada" em 1894, no novo e suntuoso prédio localizado na Praça da República, no centro da capital paulista, então batizada com o nome de Caetano de Campos e que atualmente abriga a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo –, foi se configurando como condensação do modelo de formação da elite intelectual e de sistema de ensino proposto para o estado de São Paulo e disseminado para outros estados brasileiros, por meio das “missões de professores paulistas”. Além do magistério de ensino primário, professores formados por essa escola normal assumiram, direta ou indiretamente, posições de liderança na instrução pública paulista e em outros estados, ocupando cargos na administração educacional, liderando movimentos associativos do magistério, assessorando autoridades educacionais e produzindo material didático e de divulgação das novas ideias, caracterizando-se como escritores didáticos. Por meio de sua atuação, contribuíram decisivamente para configurar o clima da Belle Époque educacional paulista, por analogia – ainda que em escala e impacto menos visíveis – com o clima intelectual e artístico da Europa entre final do século XIX e início do século XX que influenciou, no campo das artes e da literatura, a realização da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, ano também em que se comemorou o centenário da Independência do Brasil. 

Nesse contexto, destacaram-se, ainda, disputas em torno dos métodos de ensino inicial da leitura e escrita – também denominado “alfabetização”, a partir dos anos 1910 –, centradas nas características de dois tipos básicos de método: o sintético, que consiste em se iniciar o ensino da leitura pelas menores unidades linguísticas e era utilizado rotineiramente até então; e o método analítico, que consiste em iniciar esse ensino por meio de historietas ou grupos de sentenças e que fora divulgado na província de São Paulo e, em especial na Escola Normal da Praça, por educadores norte-americanos, como Miss Marcia Browne, diretora da escola primária modelo masculina, anexa à Escola Normal.  Extrapolando aspectos didático-pedagógicos, a discussão em torno do assunto esteve diretamente vinculada à discussão e à proposição de ações visando consolidar o novo regime político, em sintonia, portanto, com urgências políticas e sociais da época. A atuação daqueles professores configurou, também, o engendramento de uma atitude definidora do que considerei o segundo momento crucial na história da alfabetização no Brasil: a disputa entre mais modernos e modernos – sobrepondo-se àquela entre modernos e antigos, observável na década de 1880 – pela hegemonia de tematizações, normatizações e concretizações relativamente ao ensino da leitura. Dessas disputas, resultou a fundação de uma (nova) tradição, segundo a qual o método analítico proposto pelos reformadores educacionais paulistas era revolucionário, porque sintetizava todos os anseios do "ensino moderno e científico", e sua excelência se comparava à excelência do regime republicano. Em decorrência da hegemonia dessa convicção, nesse momento histórico o método analítico para o ensino da leitura se tornou obrigatório nas escolas paulistas (principalmente nos grupos escolares, criados em 1984, na capital, e no interior e litoral do estado, nas décadas seguintes), por meio: das normatizações por parte dos administradores educacionais, de tematizações das  bases teóricas do método e de concretizações elaboradas por professores escritores didáticos, majoritariamente homens, em cartilhas de alfabetização e livros de leitura que se tornaram populares no meio educacional, tiveram sucessivas edições e circularam em diferentes estados brasileiros, impulsionados por fatores, como processo de seleção, aprovação e compra, pelo Estado, de livros didáticos adotados oficialmente, expansão e consolidação do mercado editorial de livros didáticos produzidos por brasileiros e por editoras brasileiras, que foram se especializando nesse segmento para a escola brasileira e adequado à nova ordem educacional, e processo de profissionalização do escritor didático com o correspondente engendramento de uma especialidade editorial, a publicação de livros didáticos.

As disputas em torno do ensino inicial da leitura e escrita tenderam a se amenizar com a “Reforma Sampaio Dória”, implantada, no estado de São Paulo, pela Lei n. 1750, de 1920, que, entre outros importantes aspectos, garantia autonomia didática aos professores. Além disso, a partir dos anos 1920, problemas e urgências políticas e sociais de outra ordem passaram a ser priorizados, e outros sujeitos começaram a se destacar no cenário educacional, propondo outras formas de intervenção do Estado nas coisas da instrução assim como outros projetos, centrados em outras bases teóricas, para a educação e o ensino inicial da leitura e da escrita, ou alfabetização. O produto das férteis iniciativas daqueles educadores formados pela Escola Normal “Caetano de Campos” e as então novas formas de pensar e praticar a educação e o ensino inicial da leitura e escrita, como parte de um projeto republicano para a nação brasileira, consolidaram-se nas décadas posteriores, caracterizando o legado dessa Belle Époque educacional paulista para a história educacional, cultural e editorial do País. E a esse legado se pode aplicar com muita justeza o sábio conselho do modernista Mário de Andrade, em Paulicea desvairada: "O passado é lição para se meditar, não para reproduzir."

Maria Mortatti – 10.09.2023