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A CANÇÃO DOS FANTASMAS NATALINOS DE CHARLES DICKENS / MARIA MORTATTI

A Christmas Carol. In Prose. Being a Ghost Story of Christmas (Uma canção de Natal. Em prosa. Sendo uma história de fantasmas de Natal), é um clássico natalino escrito há 180 anos pelo inglês Charles Dickens (7.2.1812 – 9.9.1870), autor de outras histórias do gênero, além de romances, contos, peças de teatro, artigos em jornal e folhetins semanais, compondo uma obra com personagens que se tornaram icônicos e apreciados por leitores e críticos, em especial pela exposição dos problemas sociais, como pobreza, desemprego, trabalho infantil, condições degradantes do trabalho fabril, na Era Vitoriana (1837 – 1901). Uma canção de Natal foi escrito em apenas seis semanas, por pressão financeira – estava para nascer seu quinto filho – e depois de seu regresso de viagem em que constatou as péssimos condições de vida e trabalho dos pobres ingleses e de educação de crianças pobres em “escolas maltrapilhas”. Dickens tinha então 31 anos de idade, mas já era famoso nos países de língua inglesa, como autor dos romances The Pickwick papers (Os Cadernos de Pickwick), de 1836, e Oliver Twist, de 1837. Uma canção de Natal foi financiado pelo autor – que cuidou meticulosamente da preparação e edição com a alta qualidade que desejava, e foi lançado em Londres, em 19.12.1843, pela Chapman & Hall, com ilustrações de John Leech e preço acessível. Rapidamente se tornou o livro de maior sucesso da época. A primeira edição se esgotou na véspera daquele Natal: foram vendidos mais de 6.000 exemplares ou 16.500, conforme outros registros. Em 1844, teve mais de 13 edições, e sua popularidade continua até os dias atuais. Além das reedições e traduções integrais para muitos idiomas, durante 180 anos teve mais de 100 versões ou adaptações para livro, cinema, TV, teatro, balé, ópera, videogame, história em quadrinhos...

Nos moldes de carol (canção natalina), o livro está estruturado em cinco estrofes/capítulos em prosa, em que se narra a história de Ebenezer Scrooge, um velho avarento e egoísta, que odeia o Natal e tinha “gelo na alma”. Na noite da véspera de Natal, recebe a visita de três fantasmas/espíritos natalinos – histórias de fantasmas contadas no Natal eram uma tradição vitoriana. O Fantasma dos Natais Passados o faz recordar o jovem de bons sentimentos que fora. Com o Fantasma do Natal de Hoje viu seu isolamento e solidão. O Fantasma dos Natais Futuros lhe mostrou a tristeza da indiferença em relação a sua morte, se continuasse a não se importar com a dor e sofrimento das pessoas, que o fantasma o fez ver. Ele se arrepende e se torna um homem generoso que passa a personificar o espírito do Natal e defender as festas natalinas. O nome "Scrooge", porém, passou a ser usado correntemente com o sentido figurado de "sovina", "pão-duro".

Como acontece na criação literária, pode-se presumir que, nessa e nas outras histórias que escreveu, Dickens se inspirou em experiências de sua vida. Filho de escrivão, com dificuldades financeiras que levaram o pai à prisão, Dickens foi obrigado a abandonar estudos escolares com 15 anos de idade, para trabalhar em fábrica de graxa, depois em escritório e depois como jornalista. Essas experiências contribuíram para sua defesa de causas sociais em favor dos mais pobres, por meio da criação literária e de suas atividades em campanhas e organizações de caridade. Mas há também marcas menos generosos em sua biografia. Em 1836, casou-se com Catherine Thomson Hogarth Dickens (19.5.1815 – 22.11.1879), filha de George Hogarth, jornalista, editor de jornal, crítico musical e escritor. O casal viveu junto durante 15 anos e teve 10 filhos, além de dois abortados espontaneamente. Em 1858, Dickens exigiu a separação conjugal – divórcio era um escândalo para a época –, alegando que Catherine perdera a beleza e as qualidades de esposa, mãe e dona de casa, com que ele sonhara, e lhe dava muitos filhos cujo sustento lhe causava graves dificuldades financeiras. Como criativo “método contraceptivo”, contam seus biógrafos que ele passou a usar uma estante de livros para separar os corpos, no quarto do casal.  E a crueldade com a esposa chegou ao ponto de exigir sua internação em manicômio, o que foi recusado pelo médico. Dickens, então, expulsou-a da casa em que moravam, deixando-a levar apenas um dos filhos; os demais foram criados por ele com a ajuda de uma das irmãs de Catherine, que, especulava-se, mantinha também relacionamento mais íntimo com o cunhado. Sabia-se, porém, que, além de outros possíveis casos extraconjugais de Dickens, o motivo da separação, não assumido publicamente, era o relacionamento do escritor com a jovem atriz inglesa, Ellen Ternan – que Catherine descobriu devido a um bracelete que foi equivocadamente entregue em seu endereço... . Conforme relato de sua tataraneta, Catherine era escritora, atriz e cozinheira – lançou livro de receitas para donas de casa –, mas foi apagada pelo casamento com o grande escritor que se tornou famoso, mundialmente conhecido por seus livros e pelas leituras públicas de sua obra – atividade de sucesso em que foi pioneiro. Em 1865, Dickens sofreu um derrame cerebral e faleceu com 58 anos de idade, deixando inacabado seu último romance The mystery of Edwin Drood. Catherine faleceu 14 anos depois, com 64 anos de idade. Mais recentemente, vem sendo redescoberta, para além de “esposa de Charles Dickens”. 

Uma canção de Natal se tornou um clássico e sinônimo de festa natalina como conhecemos hoje no Ocidente cristão. Dickens é lembrado como um dos escritores mais importantes e influentes do século XIX, que soube encontrar o equilíbrio entre arte e entretenimento, conquistando a admiração de críticos literários, escritores e leitores. As pessoas se aglomeravam para assistir a suas leituras dramáticas de cenas de seus livros. O escritor russo Fiódor Dostoiévski se sentiu honrado ao conhecê-lo, quando visitava a Grã-Bretanha. O escritor inglês William M. Thackeray, um dos eminentes romancistas vitorianos, embora rival literário de Dickens, reconheceu a relevância de A Christmas carol: "um benefício nacional e, para cada homem ou mulher que o lê, uma delicadeza pessoal”.  E eu, nesta véspera de Natal na terceira década do século XXI, ao reler Uma canção de Natal e escrever este texto, reencontro a grandeza do legado de Dickens, apesar ou por causa das contradições entre a crueldade do homem, a generosidade do “engajamento” social e a qualidade estética de sua obra. Constato, assim, mais uma vez, que, em certos ou em todos os casos, o autor, como tal, existe na obra que cria, menos como reflexo ou refração de si e seu tempo do que como projeção do desejo de também receber a visita dos espíritos de Natal. Em qualquer tempo. Se existirem.

Maria Mortatti – 24.12.2023