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A BIBLIOTECA PÚBLICA “MÁRIO DE ANDRADE”, DE ARARAQUARA-SP: HISTÓRIA E MEMÓRIAS / MARIA MORTATTI

Tornar-se humano na história é tarefa de cada indivíduo e da espécie... humana. Não nascemos prontos. Tornamo-nos o que somos por meio de longo processo de desenvolvimento biopsicossocial, conforme as interações sociais de que participamos e nos constituem no contexto histórico em que vivemos. Em sociedades letradas/grafocêntricas, aprender a ler e escrever tem função determinante nesse processo de humanização, representando novas formas de conhecer e compreender o mundo. Assim também, na história da humanidade, foram determinantes a invenção e o domínio da escrita – para registro do cotidiano, comunicação à distância no espaço e no tempo, transmissão da memória individual e coletiva  – e a criação das bibliotecas – para guarda, preservação, organização e transmissão do conhecimento e da cultura escrita em seus diferentes materiais e suportes: tabuinhas, papiro, pergaminho, papel e livro, produto da revolucionária invenção da prensa de tipos móveis, por Johannes Gutenberg, em 1439.

“Biblioteca” do grego “byblion”, “papel, rolo com escrita”, de “byblos”, “papiro, rolo de escrita”, mais “theke”, “caixa, cobertura”, é, portanto, não apenas um espaço onde se guardam objetos como livros e documentos, mas sobretudo um território onde se cultivam e transmitem a memória e a história da humanidade neles contidas e transmitidas aos herdeiros que somos, cada um de nós, quando nos tornamos leitores.

São muitas as bibliotecas que me habitam, que me acolheram e onde me refugiei em momentos bons e ruins, onde estudei e pesquisei, onde aprendi a amar os livros, a leitura, a literatura, a ciência, o conhecimento, e que contribuíram para meu processo de formação humana, proporcionando fecundas interações e ampliando minha visão de mundo.

A primeira delas em minha vida foi também a primeira da cidade natal e a terceira do interior paulista: a Biblioteca Pública Municipal "Mário de Andrade”, de Araraquara-SP. Foi criada por meio do Decreto-lei n. 49, de 23 de outubro de 1942, resultante de esforços do então prefeito Dr. Camilo Gavião de Souza Neves e do escritor paulistano Mário de Andrade (1893 – 1945), que costumava visitar seus parentes em Araraquara. Era primo de Zulmira Moraes Rocha, sobrinha e esposa de Pio Lourenço Correa (1975 – 1957), fazendeiro, filólogo autodidata, vereador, político e tio-avô da filósofa, crítica literária e professora universitária paulistana Gilda de Mello e Souza (1919 – 2005), que passou a infância na fazenda dos pais naquela cidade do interior paulista, era também prima de Mário de Andrade e se tornou esposa do  sociólogo, crítico literário e professor universitário Antonio Candido de Mello e Souza (1918 – 2017), que, por sua vez, tornou-se amigo de Pio Lourenço Correa. Foi na Chácara Sapucaia, do “Tio Pio” – como o escritor o chamava – que Mário de Andrade se refugiou por causa de uma depressão com a morte precoce do irmão, e lá, com anotações que levava consigo, escreveu o romance Macunaíma, em seis dias de dezembro de 1926. 

De volta à capital paulista, Mário de Andrade manteve correspondência com o Dr. Camilo Gavião de Souza Neves e fez a intermediação com o Departamento de Cultura de Cultura de São Paulo, de que fora diretor entre 1935 e 1937, o que garantiu a autorização e o funcionamento da biblioteca pública de Araraquara. Em 1943, o escritor doou 600 exemplares de sua coleção particular, despachando-os por trem, os quais se juntaram aos livros doados por pessoas da comunidade desde 1939. Em 1945, em homenagem ao escritor, a biblioteca foi a primeira a ser batizada com seu nome.

A biblioteca pública araraquarense funcionou inicialmente em uma sala do Palacete São Bento, hoje Câmara Municipal. Entre 1956 e 1976, foi transferida para um casarão assobradado (e assombrado, diziam) na Rua Padre Duarte n. 1792, de propriedade das irmãs da família Fortes. Desde 1977, está instalada em prédio próprio na Rua Itália. Junto a essa biblioteca, em 19 de abril de 1951, foi criada a Biblioteca Municipal Infantil que Monteiro Lobato, batizada com o nome desse escritor, em 16 de outubro de 1957. Ambas as bibliotecas possuem excelente acervo, com considerável número de volumes e usuários. Integram a biblioteca o acervo coleção particular do araraquarense Dorival Alves e a Sala Pio Lourenço Corrêa, com sua biblioteca particular, doada pela esposa em 1957 e do qual fazem parte inúmeras obras raras, especialmente livros de Mário de Andrade em primeira edição, com dedicatória a Pio, e a mesa em que escreveu Macunaíma. Como consta no Guia do Patrimônio Bibliográfico Nacional de Acervo Raro, da Biblioteca Nacional, a Biblioteca Municipal “Mário de Andrade” está entre as 33 bibliotecas do estado de São Paulo a possuir em seu acervo uma coleção de livros raros. 

Graças a essa biblioteca, que frequentei assiduamente desde que a conheci por volta de 12 anos de idade até me mudar de cidade, tornei-me leitora compulsiva do precioso acervo durante o período em que estava instalada no sobrado antigo da Rua Padre Duarte, que me encantava e, ao mesmo tempo, assustava, com seu porão, árvores antigas e enormes no quintal — inacessível para os usuários — e escadaria de cimento pretejado pelo limo e pelo tempo. Em cada um dos cômodos da parte superior do sobrado, havia prateleiras do chão até o teto, onde os livros estavam dispostos por assunto e por ordem alfabética de sobrenome do autor. Para escolhê-los, podíamos manuseá-los diretamente nas estantes ou solicitar ajuda às bibliotecárias. Eu passava horas ali, escolhendo de acordo com critérios simples, como: título, ilustração da capa, uma chamada de orelha ou de quarta-capa, um trecho lido aleatoriamente. 

Alguns livros me escolheram, mas permaneceram por muito tempo apenas como “objetos de desejo” guardados na memória daqueles proibidos namoros vespertinos. Dentre os muitos clássicos da literatura brasileira e universal, estavam os sete volumes com as traduções brasileiras da obra Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu), de Marcel Proust. Por causa da organização em ordem alfabética, a inicial “P” calhou de ficar nas estantes mais altas das prateleiras da sala da frente da biblioteca. Eu podia ler e admirar, à distância somente, os títulos visíveis nas lombadas. Para alcançá-los, era preciso subir em uma escada ou pedir ajuda às bibliotecárias. Não tive coragem de tomar nem uma nem outra iniciativa. Não podia subir na escada, porque temia expor minha intimidade por baixo da saia. Naquela época, meados dos anos 1960, “mulher de família” não usava calça comprida nem shorts. E eu não podia pedir ajuda às bibliotecárias, pois, cheias de nobres e pedagógicas intenções, elas já tinham me advertido seguidamente que, naquelas seções a que a curiosidade teimava em me conduzir, encontraria somente livros para adultos. Os adequados à minha idade, aqueles que de fato poderiam me agradar, encontravam-se no acervo da Biblioteca Infantil “Monteiro Lobato”, que não me lembro de ter conhecido, mas soube que funcionava no pavimento térreo no mesmo prédio da biblioteca “para adultos”. Li Lobato tempos depois, para selecionar e indicar bons livros para meus alunos e para estudar e pesquisar a história da literatura infantil. E não desisti de Proust. Nem ele de mim. Nos anos 1980 – não havendo mais escadas e saias entre Proust e a mulher –  recuperei o tempo perdido: finalmente comprei e li os sete volumes e tantos outros belos livros. Acompanham-me até hoje.

Essa biblioteca cumpriu sua função na história da humanidade e da cidade, por meio da minha história de formação e de muitos outros leitores. Acolheu-me, apresentando-me principalmente clássicos da literatura, por meio dos quais – mesmo não sabendo, naquela época, quem era Mário de Andrade, ex-dono de muitos dos livros que eu lia – tive a sorte de participar, involuntariamente e à distância no espaço e no tempo, de ricas e fecundas redes de relações literárias e intelectuais, aprendi a amar os livros, a leitura, a literatura, o conhecimento e a ciência, ampliando a visão de mundo, e pude compreender, empiricamente, o valor das bibliotecas, principalmente as públicas, para a guarda, preservação, organização, transmissão do conhecimento e da cultura escrita, e a importância da garantia de condições de acesso a todas as pessoas para usufruírem, sobretudo, do inalienável direito à literatura em todos as manifestações e em todos os tipos de cultura.

Habitei essas e tantas outras. E elas continuam me habitando. Vez ou outra procuro um livro que sei que li, mas não o encontro em minhas estantes. Então me lembro em que estante de que biblioteca estava, em que momento e por que o li, o que senti. Não posso ter cada um deles de novo comigo. Mas, nos livros que escolhi e me escolheram para ficarem para sempre ao meu lado, pulsam os de todas as bibliotecas que contribuíram para minha formação como mulher, poeta, professora, pesquisadora, possibilitando-me a interlocução, como herdeira, com a memória e a história da humanidade neles contida, e me convidando a compartilhar e contribuir para a formação humanizadora de outros leitores.

Maria Mortatti





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