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CAMÕES, O VATE IMORTAL / MARIA MORTATTI

Conheci Camões no início dos anos 1970, quando, com 17 anos de idade, ingressei no curso de Letras. “Conheci Camões” é uma metonímia, figura de linguagem que consiste no emprego de uma palavra fora do seu contexto semântico normal, para substituir outro termo, mantendo-se, entre eles, relação de contiguidade de sentido. No caso em questão, consiste em substituir a obra pelo autor. E, mesmo que quisesse, era impossível conhecê-lo, tanto em  carne e osso – 392 anos então nos separavam e dizem que sua ossada foi perdida no terremoto de Lisboa em 1755 –, quanto em biografia – muitos dos dados e informações sobre sua vida são presumidos, apenas.

Luís Vaz de Camões (c. 1524 – c. 1579 ou 1580), nascido em Lisboa, Portugal, presumivelmente recebeu formação clássica, estudou na Universidade de Coimbra, frequentou a Corte de D. João III, iniciou a carreira como poeta lírico, levava vida boêmia e turbulenta, envolveu-se amorosamente com nobres e plebeias, e, por causa de uma decepção amorosa, alistou-se como militar, autoexilou-se na África, perdeu um olho em batalha, voltou a Portugal, feriu um servo do Paço Real, foi preso, depois perdoado, partiu para o Oriente, onde permaneceu por muitos anos, foi preso várias vezes, combateu ao lado de forças portuguesas, escreveu seu poema épico Os Lusíadas, publicou-o quando retornou a Portugal, recebeu uma pequena pensão do Rei D. Sebastião e, nos anos finais de vida, teve dificuldades financeiras para se manter, queixando-se de injustiças sofridas e da pouca atenção dada a sua obra pelos contemporâneos. 

Impossibilidades e imprecisões à parte, fato é que, na época em que o conheci, menos do que o Luís – o homem incerto cuja síntese biográfica apresento acima – importava-me conhecer o Camões – o vate imortal, o grande poeta da literatura portuguesa e ocidental, autor de extensa obra épica, lírica e dramática, com traduções para vários idiomas, e a quem se atribui a renovação e fixação da língua portuguesa. 

Além de sua inquestionável grandeza, importar-me mais com a obra do que com o homem se devia a pelo menos dois motivos principais, relacionados com o contexto histórico e também entre si: a tendência, então em voga no meio acadêmico, de análises estruturalistas de textos literários, sobrepondo-se a outros aspectos, como biografia do autor e contexto histórico e social; e  a censura imposta à mídia impressa no período mais duro e sombrio da ditadura militar no Brasil (1964 – 1985) , que fez Camões cantar Os Lusíadas para a gente brasileira, diariamente, por um bom tempo, preenchendo os espaços das matérias vetadas pelos censores.

Quem me apresentou o poeta, de modo sistemático, foi Jorge Cury (1932 – 2019), professor de Literatura Portuguesa do curso de Letras da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Araraquara (encampada pela Universidade Estadual Paulista, em 1976). Para nossa sorte de iniciantes, o experiente professor e estudioso da literatura não se atinha a análises estruturalistas. Com ele, li grande parte da obra camoniana – em edições brasileiras da Ediouro e da Agir, compradas na Livraria Acadêmica, ou em edições mais luxuosas do acervo da biblioteca da faculdade –, aprendi a analisar temas, conteúdo, estrutura, forma, e, ainda, aprendi versificação, gêneros poéticos, referências literárias e mitológicas, história de Portugal, da literatura e da língua portuguesa, e, claro, o que se sabia sobre a vida do poeta.

Esse aprendizado acadêmico se complementava com o aprendizado político sobre aqueles anos no País, em especial por meio da repercussão eloquentemente cochichada da epopeia camoniana estampada nas primeiras páginas do jornal O Estado de S. Paulo. Embora tenha apoiado o golpe militar de 1964, o jornal passou a ser censurado em 1973, depois de publicar matéria sobre a sucessão presidencial que ocorreria no ano seguinte. Até 1975, foram censuradas 1.122 matérias de cunho político e sobre a repressão. Em seu lugar, no período em que foi censurado, o jornal publicou duas vezes seguidas Os Lusíadas completo, com suas 1.102 estrofes. Essa forma de denúncia, de certo modo e apesar das motivações nefastas e reprováveis sob qualquer ponto de vista, contribuiu indiretamente para a divulgação da obra do poeta português para nossa geração de brasileiros.

Tal foi o fascínio que Camões despertou em mim naquele momento, que me atrevi a tentar “imitá”-lo, como ele imitara Virgílio e Homero. Em meus exercícios de poeta aprendiz e atrevida, cometi sonetos, canções, éclogas, elegias, odes, redondilhas, sextina e até uma epopeia, intitulada “As luzidias”, cuja heroína coletiva eram mulheres em busca da conquista de algo hoje equivalente à igualdade de direitos em um mundo feito de e para heróis-homens. A primeira estrofe imitada – que cheguei a ler para meus alunos, quando me tornei professora de língua e literatura – era ou menos assim, se a memória não me falha: “As almas das varoas assassinadas/que da universal praia lusitana/por mares nunca dantes navegados/ousaram passar além da Taprobana/em perigos e guerras esforçadas/mais do que prometia a força humana/entre homens edificaram/Novo Reino, que tanto iluminaram.” [1] E continuava com episódios de mulheres anônimas que, pelo silêncio e pela submissão impostos por homens, foram “assassinadas” por apagamento na história.

Não dei conta, claro, de continuar aquela epopeia imitada. Provavelmente me faltaram os inimitáveis engenho e arte de Camões. Nem dei conta de missão de salvar as mulheres do apagamento. Passado meio século daquela ousadia da jovem poeta e mais de quatro séculos da morte do vate português, penso hoje que, além de coletiva, essa é missão para muitas gerações ainda, como é a de ler e reler a obra camoniana, em tempos menos ou mais sombrios, não apenas para conhecer a tradição literária e a história em que estamos imersos, mas também para divulgar sua obra para novas e novas gerações de leitores.

Com Camões aprendi e continuo aprendendo, a cada nova leitura, muito do ofício de poeta. E espero ter conseguido ao menos apresentá-lo neste texto, desejando fascinar – quem sabe? – muitas gerações de leitores e convidá-los a usufruir do direito de também conhecerem e apreciarem a obra do poeta símbolo da identidade de Portugal e "fundador" da  língua portuguesa, que, nós, brasileiros, herdamos.

Há c. 444 anos, foi-se o homem. Nem os ossos restaram. Como escreveu o poeta: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mas sua obra permanece, luzidia e lusitanamente universal. Metonímias à parte ou no todo, uma tautologia: Camões, o vate, é imortal!

Maria Mortatti - 21.02.2023

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[1] Em Os Lusíadas, a primeira estrofe do Canto I é esta: "As armas e os barões assinalados,/Que da ocidental praia Lusitana,/Por mares nunca de antes navegados,/Passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados,/Mais do que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo Reino, que tanto sublimaram;"


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