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CEGALLA, A MÃE E A VÍRGULA – DOIS NOVÍSSIMOS CASOS DE VOCATIVO / MARIA MORTATTI

“Vocativo” – do latim “vocatius”, derivado de “vocare” ("chamar”), por sua vez, derivado de “vox” (“voz”, “som”, "chamado”, "grito”) – é a denominação de um caso gramatical identificado pela flexão das palavras para indicar apelo, chamamento, quando quem escreve se dirige a uma pessoa – a 2ª. pessoa do discurso –, chamando-a, nomeando-a ou invocando-a. Esse caso gramatical existiu em línguas indo-europeias, como Latim e Grego clássico, conservando-se ainda em línguas indo-europeias modernas, mas não existe na língua portuguesa (escrita), na qual o vocativo é um termo da oração independente e destacado por vírgulas, podendo estar no início, no meio, ou no fim das frases e acompanhado de interjeições de apelo.

Foi mais ou menos assim que aprendi lá pelos 11 anos de idade, no curso ginasial, com a Novíssima gramática da língua portuguesa, do professor, gramático, poeta, escritor e tradutor brasileiro, Domingos Paschoal Cegalla (1912 – 2013), que, sem saber, foi meu primeiro e mais longevo professor de Português. E assim ensino aos alunos desde aquele tempo em que comecei a dar aulas particulares, depois como professora de Português e Literatura na educação básica e depois, ainda  – até hoje –, como professora universitária. Publicada pela Editora Nacional, essa gramática teve a primeira edição em 1964 e, com cinco atualizações acompanhando mudanças na língua, encontra-se na 49ª. edição. Às vésperas de completar 60 anos, continua novíssima. Ainda tenho o exemplar em formato pequeno, capa dura, com cor amarela de fundo, lombada despregando e muitas anotações nas páginas. As lições são inesquecíveis. Sei quase de cor uma a uma, os exercícios que as acompanham e os exemplos com trechos de clássicos da literatura. E delas me lembro, por exemplo, a cada novo caso de vocativo insabido que vejo em textos de alunos, de colegas ou em mensagens por e-mail e textos em redes sociais. Aos alunos, explico a correção necessária; nos demais textos não me cabe interferir. 

Dois casos recentes me fizeram evocar as antigas e sempre novíssimas lições do mestre Cegalla, que foram novamente úteis, dessa vez para me divertir e me proteger. 

Em um deles, a vírgula do vocativo me salvou do mau humor, depois de um dia intenso de trabalho corrigindo textos de alunos. De tanto ler e corrigir frases, como "Professora enviei o texto", "Bom dia Maria", "Muito bom José", lembrei-me da conhecida piada sobre o duplo sentido da frase, conforme o uso ou não da vírgula: "Mãe só tem uma!"/"Mãe, só tem uma!". Se hoje se considera preconceituosa a ideia de maternidade apenas como função biológica da mulher, pode haver, portanto, mais de uma mãe. Mas, para chamá-la(s) – por escrito –, nada mudou: continua sendo necessária a vírgula do vocativo. Esse esquecido e incômodo sinal de pontuação – pasmem! – não "caiu com o novo acordo ortográfico", como ouvi alguém dizer outro dia e não me contive: “Mãe do céu! Querem ‘impichar’ a vírgula do vocativo! Ela, não! Socorro, Cegalla!”

No outro caso, a vírgula me salvou de um golpe pelo celular. Estava dirigindo, quando chegou a mensagem pelo WhatsApp. Um golpe de vista na telinha: era minha filha. Parei no acostamento. Sim, a foto era dela, mas tinha alguma coisa esquisita: “Oi mãe tudo bem? Comprei esse número só pra falar com a família tabom”. Respondi à saudação e até concordei com um “ok”. A conversa prosseguiu em tom apressado. Pediu dinheiro; precisava da transferência bancária naquela manhã; com urgência; e para a conta de uma amiga. Fui acompanhando e concordando laconicamente. Até que não tive mais dúvida. Era golpe! Se tivesse sido só uma vez, vá lá! Mas insistia e persistia no erro. Conheço os textos de minha filha. O amarfanhado e despontuado “tabom”, debitei-o na conta da generosidade do "descorretor" de irreverências involuntárias. Mas nem na informalidade do WhatsApp ela se esquece da vírgula do vocativo. De fato, era golpe. E baixo. Ela me confirmou depois: “Não, mãe. Não era eu!”. A mãe conhece – ao menos em casos pontuais – a filha que tem...

Escritora, professora e revisora, não perco o hábito de cumprir – pontualmente – o dever de ofício, distinguindo, por certo, entre erro ortográfico, erro de pontuação e erro de digitação. Leitora experiente e perspicaz, conheço os autores que leio, até os que nunca vi em carne e osso, até os que acham que se escondem "sob o véu diáfano" da apropriação indébita. Ler – de ponta a ponta, ponto por ponto, vírgula por vírgula – almas configuradas nas diferentes dimensões de um texto escrito (ou oral) talvez seja mesmo uma vocação – um chamamento da alma. Às vezes, algo parecido com uma convocação – um chamado para reunião – para ver e ouvir o que não queria ou não me cabia. Mas, de um ponto de vista bem pragmático, nesses dois casos foi salvação. Nem valia a pena perder tempo com especulações existenciais, explicações de regras gramaticais ou desmascaramento de desalmados. Nem invocar Cegalla. Bastou um golpe de vírgula. Certeiro. 

Maria Mortatti 

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