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EX-LÍBRIS OU A ARTE DE AMAR POSSESSIVAMENTE OS LIVROS / MARIA MORTATTI

Certas palavras e expressões contêm tudo: o dizível e o inefável. Equivalem a um poema de uma ou poucas palavras. Condensam tal poder de evocação de sentimentos, pensamentos, experiências, que, como as madeleines proustianas, mobilizam a memória e nos fazem estremecer de um prazer semelhante ao do amor, despertando o desejo de explorar e criar. 

Ex libris meis é uma expressão que me intriga, encanta e provoca há muito tempo, talvez desde a juventude, quando me tornei frequentadora assídua inicialmente da Biblioteca Pública Municipal “Mário de Andrade” e depois também da biblioteca da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ambas situadas na cidade de Araraquara – SP e com precioso acervo de clássicos, além de obras que hoje, de memória, identifico como raras. Antes de saber do significado da expressão em Latim, eu a lia num convincente exercício de adivinhação baseada nas semelhanças fonéticas e semânticas em Português, com a junção de três elementos/cognatos que, em si mesmos, carregam significados densos, provocativos e, de certo modo, complementares entre si: “és o livro meu” e “meus ex-livros”.

Essa primeira imagem não se apagou da memória nem se mostrou de todo errada, quando conheci o significado da expressão, o termo dela derivado e seu uso em livros. O prefixo “ex”, indica movimento para fora, extração, separação, afastamento; “libris” – plural de “liber”, com significado de “córtex da árvore”, passou a significar “livro, obra escrita com páginas superpostas”; “meis”, é pronome possessivo plural. 

Dessa expressão latina, que significa “dos livros de/pertencentes a”, origina-se o termo “ex-libris” para designar toda inscrição utilizada para identificar o titular (pessoa ou instituição) da biblioteca particular ou pública a que pertencem um ou mais exemplares de livros. A inscrição pode ser manuscrita – como assinatura, iniciais do nome, monograma ou outro sinal específico – ou impressa, como um pequeno ornamento tipográfico, acompanhado da identidade do proprietário, podendo ainda conter uma frase em latim, um emblema ou uma divisa. Em tipografia e artes gráficas, o termo se refere a um desenho gráfico, sob a forma de selo ou etiqueta, produzido por processos gráficos comerciais, industriais, artesanais ou artísticos, que pode ser impresso em papel, tecido, couro, plástico e finas chapas de madeira ou cortiça para ser colado no livro, ou impresso, em geral, diretamente na contracapa ou folha de rosto. Como se não bastassem as palavras anotadas em manuscrito, tornou-se necessário gravar, selar, para marcar, com eloquência, a posse do livro, o produto-objeto. O ex-libris não é, portanto, uma marca feita pelo autor do livro, para registrar seu direito de propriedade sobre a ideia e o conteúdo escrito. Essa marca de propriedade com ilustrações impressas, coladas, nos livros   consideradas por especialistas uma obra de arte  possibilita ainda identificar o proprietário em caso de desvio ou furto.

Daí advêm, ainda, as palavras “ex-librismo”/”ex-librística”, atividade de quem estuda ou  coleciona ex-líbris. Apenas mais recentemente vem se intensificando, em particular no Brasil, o interesse pelo assunto, por parte de bibliófilos, colecionadores e estudiosos nas áreas de biblioteconomia, história do livro, artes gráficas e design gráfico, editoração, heráldica, e vêm se produzindo e divulgando textos sobre o assunto. Quando movida pela curiosidade e desejo em mim despertados pela palavra-poema, consultei alguns desses textos  como Anais da Biblioteca Nacional, artigos do bibliotecário Augusto de Carvalho Siciliano, O livro dos ex-libris (2014)organizado por Alberto da Costa e Silva e Anselmo Maciel (Academia Brasileira de Letras e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, com apoio cultural do Ministério das Relações Exteriores) –, com eles aprendi e deles extraí muitas informações sobre a história do ex-líbris, estilos, colecionadores e curiosidades, cuja síntese compartilho neste texto. Nas palavras de Ubiratan Machado em texto nesse livro, o “ex-líbris nasceu do mais enganoso de todos os sentimentos, o sentimento de posse, mas também como uma declaração de amor ao livro. Amor e engano, uma pontinha de vaidade. Eis a fórmula para explicar essa persistente história de quase quatro mil anos. Símbolo de poder de um faraó, marca de propriedade de um rei assírio, expresso em ideogramas japoneses ou em mensagem iluminada nos maravilhosos manuscritos medievais, o ex-líbris assumiu, ao longo dos milênios, as mais diversas formas, até a atual, criada no século XV: uma pequena gravura para se colar na contracapa ou na guarda dos livros. Calcula-se que, desde sua origem, já foram criados mais de um milhão de ex-líbris, uma parcela deles da mais alta expressão artística. Pequenas joias de arte, assinadas por mestres de todas as épocas e estilos."

O ex-libris se desenvolveu com a criação do livro tipográfico, conforme a técnica da prensa de tipos móveis inventada por Gutemberg, em  1439, e também da xilogravura, uma técnica mais antiga de gravura. Os primeiros ex-líbris surgiram na Alemanha, na região da Baviera, no final do século XV, foram muito utilizados por livreiros e bibliófilos na Europa a partir do século XVI e se espalharam pela Ásia e Leste Europeu e outros países.

No Brasil, o mais antigo ex-líbris data do final do século XVIII, e seu proprietário era Manoel de Abreu Guimarães, provedor de Sabará – MG e possivelmente comerciante. Com a vinda da família real portuguesa, em 1808, chegaram também ex-líbris portugueses – marcas de propriedade em forma de carimbos, ex-líbris, superlibris, ex-donos, etc., – e também o maquinário da Impressão Régia, marcando o início das atividades gráficas e editoriais no País. No século XIX, alguns intelectuais brasileiros começaram a adotá-lo, como o Visconde do Rio Branco, senador do Império, e a Viscondessa de Cavalcanti, uma das primeiras mulheres a ter ex-líbris no país.

O ex-librismo/colecionismo no mundo se iniciou com a publicação na França, em 1875, do livro Les ex-libris français: depuis leur origine jusqu'à nos jours, de A. Poulet-Malassis, e despertou o interesse de brasileiros. O primeiro colecionador de ex-líbris no Brasil foi o chanceler José Maria da Silva Paranhos (1845 – 1912), o Barão do Rio Branco, que, em suas viagens pela Europa, costumava reunir uma extensa coleção de obras raras que marcava com seu ex-líbris, e muitos dos livros de sua biblioteca traziam o ex-líbris de outros bibliófilos, o que o levou a fazer a coleção que hoje pertence ao acervo da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro.

Nas décadas iniciais do século XX, iniciaram-se as publicações brasileiras sobre o assunto, em artigos de jornal e capítulos de livro. Embora 1922 seja considerado o ano do nascimento do ex-líbris moderno, acompanhando a evolução das artes plásticas, o ex-librismo no Brasil se intensificou entre os anos 1940 e 1960, com exposições, publicação de textos em jornais, revistas e livros, fundação de associações e clubes, envolvimento de artistas, colecionadores e pesquisadores. Mais recentemente, com o crescimento do interesse por marcas de propriedade, o ex-líbris e o ex-librismo começam a despertar novamente e atenção. Localizei até o termo “ex-webis”, para designar a marca de propriedade aplicável ao livro digital. Há mesmo muito, ainda, a explorar e aprender...

Das lembranças de jovem leitora, ficaram também outras variantes – modestas – de ex-líbris, como as inscrições manuscritas diretamente na folha de rosto ou sobre etiquetas autoadesivas – "Este livro pertence a ...", seguida de "Emprestar é um prazer. Devolver é um dever" – em livros de colegas que tomei emprestados ou nos poucos meus, comprados a duras penas, dos quais cuidava com amor e nos quais aprendi a também inscrever minhas marcas de propriedade: nome, a data de compra e a livraria ou cidade, depois carimbo com meu nome e toda a marginalia. As dedicatórias e autógrafos que ganhei de autores especiais também são meus ex-líbris. Mesmo assim, perdi muitos dos mais amados que emprestei com prazer e muitas pontinhas de ciúmes, confesso. Foram-se, sem dizer adeus. Deles ficaram somente lembranças do dia em que comprei, aconcheguei-os nos braços, dos momentos prazerosos de leitura e estudo que me proporcionaram e os vazios nas estantes de minha biblioteca. 

Sinto falta dos meus ex-livros. Eram livros meus. Onde e com quem estarão agora? Explorando o assunto e pensando no que aprendi sobre a arte de amar possessivamente um livro, cheguei a pensar em criar um ex-líbris, para não mais perder os livros que me pertencem e fazem parte da minha vida. Mas design gráfico não é minha especialidade. Decidi, então, criar um poema in memoriam, para condensar o que é só meu, indizível e inefável, terminando com este verso:  “liber vitæ meæ, ex libris meis”*.

Maria Mortatti -  19.02.2023

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*O poema está publicado no livro Mulher enlouquecida, de Maria Mortatti (Scortecci Editora, 2023)


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