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STEFAN ZWEIG: O MUNDO QUE EU VI / JOÃO SCORTECCI

Na casa onde morávamos – na Avenida D. Manoel, 1086, centro, na cidade de Fortaleza – Ceará dos anos 1960 – havia uma biblioteca belíssima, de tirar o fôlego. Um santuário! Papai Luiz e mamãe Nilce cuidavam dela com carinho e amor aos livros. Vez por outra, recebíamos novidades. Livros vindos de São Paulo! Lembro-me da festa que era abrir caixas abarrotadas de livros e do fascínio de arrumá-los nas estantes de jacarandá. A biblioteca ficava na entrada da casa, com acesso pela sala principal, a chamada “sala de visitas”. No centro, uma mesa anos 1960, com cadeira de palhinha, luminária, porta-canetas, furador de papel, grampeador e um risque-rabisque. Nas estantes, coleção do Prêmio Nobel de Literatura, enciclopédias Tesouro da Juventude, Barsa, Larousse, o livro Memórias de Carlos Lacerda, coleções completas de Monteiro Lobato e dos “queridos” da minha mãe: Agatha Christie, Júlio Verne e Stefan Zweig. O poeta, romancista, dramaturgo, jornalista e biógrafo judeu-austríaco Stefan Zweig (1881 – 1942), dos anos 1920 até a sua morte, foi um dos escritores mais famosos do mundo. Em 1934, fugindo do nazismo, deixou a Áustria e passou a viver na Inglaterra e se naturalizou cidadão britânico. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler na Europa Ocidental, em 1940 se estabeleceu em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América do Norte. Entre 1940 e 1941, Zweig e Lotte (Charlotte Elizabeth Altmann), sua secretária e segunda esposa, estiveram três vezes no Brasil. É dessa época o ensaio Brasil, país do futuro, cujo título se converteu em “epíteto nacional” – nas palavras de seu biógrafo Alberto Dines – e, com o tempo, tornou-se um “carma”, motivo de piada, como se o Brasil fosse um “eterno país do futuro”. Em 1942, Zweig e Lotte se estabeleceram na cidade de Petrópolis, na região serrana do estado Rio de Janeiro, onde ele finalizou a autobiografia, O mundo que eu vi, escreveu a novela Schachnovelle: conto de xadrez e deu início à obra O mundo de ontem, um trabalho autobiográfico, com uma descrição da Europa em período anterior a 1914. Em 22 de fevereiro de 1942, deprimido com o crescimento da intolerância, da perseguição aos judeus, do nazismo e do autoritarismo na Europa e sem esperanças no futuro da humanidade, Zweig escreveu uma carta de despedida e, com uma dose fatal de barbitúricos, ele e a esposa cometeram suicídio. Zweig escreveu: “Cada dia eu aprendi a amar mais este país e não gostaria de ter que reconstruir minha vida em outro lugar depois que o mundo da minha própria língua se afundou e se perdeu para mim e minha pátria espiritual, a Europa, destruiu a si própria. Mas, para começar tudo de novo, um homem de 60 anos precisa de poderes especiais e meu próprio poder desgastou-se após anos vagando sem um assento. Por isso, prefiro terminar a minha vida no momento certo, como um homem cuja obra cultural foi sempre a mais pura de suas alegrias e também a sua liberdade pessoal – a mais preciosa fruição neste mundo. Deixo saudações a todos os meus amigos: talvez vivam para ver o nascer do sol depois desta longa noite. Eu, mais impaciente, vou embora antes deles.  –  Stefan Zweig, 1942.” A versão de suicídio do casal é contestada até hoje. Existe farta documentação apontando para assassinatos. Creio que o mistério ficará para sempre. A casa em Petrópolis, onde o casal viveu por alguns meses e morreu, é hoje um centro cultural dedicado à vida e à obra de Zweig. Quando “vejo” minha mãe Nilce na biblioteca lendo um livro, pergunto-me: Stefan Zweig? No melhor das horas, seis da tarde, acordo com sua voz – inconfundível – dizendo-me: “João, aqui é mamãe!”

João Scortecci

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MULHERES, LIVROS E PÁGINAS REVIRADAS: ACONTECIMENTOS DE UM FERIADO / MARIA MORTATTI

“Ler é uma maneira suave de esperar”: com esse conselho do saudoso professor de literatura portuguesa, Jorge Cury (1932 – 2019), iniciei o descanso no feriado. Para prosear e usufruir do direito ao ócio criativo, convidei companheiras da minha biblioteca. 

Com O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo (Intrínseca), Irene Vallejo me provocou recordações sobre a invenção do alfabeto, da escrita, do livro, da biblioteca e as extraordinárias transformações na memória, na linguagem, no ato criativo, em nossas relações com o saber e com o passado: “Toda e qualquer sociedade aspira a permanecer e ser lembrada.” (p.) Virei a página e esbarrei n’A ridícula ideia de nunca mais te ver (Todavia), de Rosa Montero, com o diário de Mme. Curie, em que ela dá a conhecer seu luto pela morte do marido Pierre: “Nunca, antes de conhecer-te, eu havia visto um homem como tu e desde então jamais vi um ser humano tão perfeito. (...) A dor é surda, mas segue viva.” (p.) Virei a página e Annie Ernaux me chamou para O acontecimento (Fósforo): “Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior.” (p. ) O livro escorregou-me das mãos e esbarrou em dois outros sobre a escrivaninha: Três novelas femininas (Zahar), de Stefan Zweig, e O cavaleiro inexistente (Companhia das Letras), de Italo Calvino

Folheando-os, encontrei as instigantes protagonistas: a mulher eternamente apaixonada, de “Carta de uma desconhecida”, do escritor alemão; e Irmã Teodora/guerreira Bradamante, a intrépida personagem narradora da novela de cavalaria às avessas, do cubano-italiano. Aquela é a anônima que deixa uma carta póstuma ao escritor a quem amou a vida inteira, mas de quem ele nunca tomou conhecimento, embora com ela tivesse copulado três vezes, sem a reconhecer: “Nada existia se não estivesse relacionado a você, nada em minha existência fazia sentido se não estivesse ligado a você. (...) Eu estava sempre perto de você, sempre à espera e em movimento, mas você não tinha mais consciência disso do que da tensão da mola no relógio em seu bolso, contando no escuro as horas para você, acompanhando seus passos com um palpitar inaudível e merecendo apenas uma vez em milhões de segundos um olhar apressado seu.” (p. 107) A outra é Teodora, que me acolheu em sua clausura: “Escrevo no convento... me cabe representar a maior loucura dos mortais, a paixão amorosa ... o que não sei trato de imaginar...  Aqui no convento, a cada uma se dá a sua penitência, seu modo de ganhar a salvação eterna. A mim tocou esta de escrever histórias: é dura, muito dura. Lá fora, é um verão ensolarado... Eu também poderia estar lá no meio, e em boa companhia, com meus jovens pares, algumas criadas e flâmulas. Mas a nossa santa vocação quer que se anteponha às alegrias perecíveis do mundo alguma coisa que permaneça... De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu.” (p. 61) 

Quando me dei conta, o feriado já se dissipava. Essas mulheres tinham me envolvido num turbilhão de palavras, folhas desordenadas, páginas reviradas. Não resisti: terminei o dia registrando no teclado alfanumérico do computador as suas-minhas histórias, por hábito ou penitência ou vocação ou desejo de permanência. Quando a noite findava, Borges me alertou: eu já tinha escrito, à la Pierre Menard, umas noventa e nove linhas de minha "Carta de Teodora à mulher desconhecida". Foi então que, revelando-se como a guerreira Bradamante, Irmã Teodora me chamou à sensata realidade. Apaguei minha atrevida novelinha e virei a página em busca do reino a ser conquistado: “Livro, agora você chega ao fim... Quando vim me trancar aqui estava desesperada de amor por Agiulfo [o cavaleiro inexistente], agora queimo pelo jovem e apaixonado Rambaldo. Por isso, minha pena se pôs a correr. Corria ao encontro dele; sabia que não tardaria a chegar. A página tem o seu bem só quando é virada e há vida por trás que impulsiona e desordena todas as folhas do livro. ... De narradora no passado, e do presente que me tomava a mão nos trechos conturbados, aqui está, ó futuro, saltei na sela de seu cavalo. Quais imprevistas idades de ouro prepara, você, malgovernado, você, precursor de tesouros que custam muito caro, você, meu reino a ser conquistado, futuro...” (p. 114-115)

Quando finalmente o feriado chegou ao fim, mirei o futuro, virei a página e anotei o conselho daquelas mulheres: escrever o vivido é uma maneira dura, muito dura, de aspirar ao infinito. E sem nenhuma garantia de que o amor seja imortal e a alma se salve. 

Maria Mortatti


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