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ASTRID LINDGREN & PÍPPI MEIALONGA: PROTAGONISTAS DA/NA LITERATURA / MARIA MORTATTI

Astrid Lindgren (14.11.1907 – 28.01.2002), escritora sueca que renovou a literatura infantil e participou ativamente de importantes debates públicos em seu país e sua época, é a criadora de Píppi Långstrump (Píppi Meialonga). Publicou 10 livros para crianças e é a 18ª. autora mais traduzida do mundo, com 165 milhões de livros vendidos, em 107 idiomas e 77 países, segundo a Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Dos três livros protagonizados por Píppi foram vendidos cerca de 60 milhões de exemplares, com traduções para 76 idiomas, além de oito adaptações cinematográficas, duas séries e dois filmes para TV. Em 1958, a escritora recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen, o “Nobel” da literatura infantil, concedido pelo International Board on Books for Young People, e, em 1994, o Prêmio Right Livelihood, “por sua dedicação à justiça, não violência e compreensão das minorias, bem como seu amor e cuidado pela natureza”. Após sua morte, o governo sueco criou o Astrid Lindgren Memorial Award (Prêmio ALMA), concedido anualmente a um escritor ou ilustrador de literatura infantojuvenil ou organização que se distinga pelo seu trabalho a favor da divulgação da leitura e da defesa dos direitos humanos de jovens e crianças.

Píppi Långstrump (Pippilotta Viktualia Rullgardina Krusmynta Efraimsdotter Långstrump) é a protagonista dos três livros publicados entre 1945 e 1948, pela editora sueca Rabén & Sjögren: Píppi Meialonga; Píppi a bordo; Píppi nos mares do sul (títulos das traduções brasileiras pela Companhia das Letrinhas). A personagem nasceu com as histórias que a escritora – quando forçada a repouso por causa de fratura no tornozelo – escreveu para a sua filha Karin, de sete anos de idade. Três anos depois, foram publicadas no primeiro livro, como presente de Natal. Píppi, menina órfã de nove anos, tem cabelos ruivos presos em tranças, sardas no rosto, pernas compridas e magricelas cobertas por meias longas, uma preta e outra marrom. Sua mãe morreu quando ela era pequena; o pai marinheiro, com quem ela vivia, desapareceu no mar. A menina vai morar em uma casa na Vila Vilekula, com uma mala de moedas de ouro, o macaquinho, Sr. Nilson, e um cavalo, que mora na varanda, tornando-se amiga de seus vizinhos, o menino Tom e da menina Aninha. Nos capítulos dos livros, são narrados os curiosos, surpreendentes e divertidos episódios da vida da protagonista, a “menina mais forte do mundo”, que mora sozinha, faz o que quer e não se preocupa com regras dos adultos. 

Essa personagem corajosa, inteligente, atrevida, irreverente e generosa mudou a representação das meninas na literatura infantil, gênero literário cuja história começou a ser delineada no século XVIII na Europa, acompanhando novos contextos sociais e políticos e novos conceitos de infância e educação, com predomínio da função pedagógica-didática nos textos para crianças. No século XIX, meninas se tornaram célebres protagonistas em livros para esse novo público, escritos por europeus, traduzidos para muitas línguas, adaptados para várias mídias e que são patrimônio da literatura infantil universal. Em Os desastres de Sofia (1858), da escritora russa Condessa de Ségur (1799 – 1874), que morava na França, a protagonista é uma menina desastrada, curiosa e desafiadora, mas um exemplo de comportamento não adequado e que não devia ser seguido. Em As aventuras de Alice no país das maravilhas (1865), do escritor inglês Lewis Carrol (1832 – 1898), a fantástica protagonista é curiosa e irreverente, com seu ilimitado nonsense em contraste com os limites da Era Vitoriana. Em Heide, a filha da montanha (1880), da escritora suíça de expressão alemã Johanna Spyri (1827 – 1901), a protagonista é uma órfã simpática, altruísta e otimista, um exemplo a ser seguido, conforme finalidades didáticas e visão religiosa da autora. Pode-se incluir aqui uma das principais personagens de A menina do narizinho arrebitado (1920), de José Bento Monteiro Lobato (1882 – 1948), Emília, a boneca de pano falante, irreverente, independente, espontânea ao falar, considerada, porém, alter ego do polêmico escritor brasileiro.

Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, com o novo contexto político e social, conceitos de infância, educação, literatura infantil também mudaram. Aquelas pioneiras protagonistas infantis continuaram atraindo e encantando leitores, cada uma a seu modo, com inegável destaque para Alice. Mas é Píppi, a mais “jovem” delas, quem inaugura outro modelo, filha que é de uma mulher de espírito arrojado, que considerava que nada da vida – nem a morte e a melancolia – deve ser ocultado da criança, que desejava escrever “para um público leitor que pode criar milagres. As crianças criam milagres quando leem” e escrevia do jeito que gostaria que o livro fosse, se ela fosse criança.

Na recente história do protagonismo feminino na literatura infantil, a originalidade de Píppi, com sua surpreendente inventividade, inesgotável espontaneidade e sátira às proibições do mundo adulto, consiste em oferecer outro tipo de exemplo e de possibilidades libertárias para meninas – e meninos também –, legitimadas pela qualidade e domínio literários da notável escritora sueca.  No discurso que proferiu ao receber o Prêmio Hans Christian Andersen, em 1958, Astrid Lindgren enfatizou: “Uma infância sem livros – isso não seria infância. Isso seria como ser excluído do lugar encantado onde você pode ir e encontrar o tipo mais raro de alegria”. Esse é o motivo de as crianças precisarem de livros, sobretudo de livros de literatura e com personagens que incluam meninas e meninos no direito a habitarem o lugar encantado, como o mundo de Píppi.

Astrid Lindgren, a longeva escritora falecida aos 94 anos de idade – com a filha Karin ao seu lado –  influenciou e continua influenciando a criação de protagonistas femininas na literatura infantil. E Píppi, sua mais famosa personagem, continua e continuará a proporcionar aos leitores – crianças, jovens e adultos – aquele tipo raro de alegria.

Maria Mortatti