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EVA VÊ A UVA E OUTRAS LIÇÕES DO “V" / MARIA MORTATTI

A frase “Eva viu a uva” se tornou popular e tem hoje diferentes significados em diferentes contextos. É utilizada principalmente como síntese das críticas às antigas e tradicionais cartilhas de alfabetização e se tornou sinônimo de “frase de cartilha”. Há também variações utilizadas por outros grupos de falantes, como “vovô viu a uva”, em referência a algo "sem noção", sem sentido, fora do contexto de uma conversa, ou ainda com sentido chulo, digamos, em contexto nada elevado para ser mencionado aqui.

Em contexto educacional e social, sua popularização se deve especialmente ao educador Paulo Freire (1921 – 1997) e ao prestígio e reconhecimento mundiais que ele conquistou desde a segunda metade do século XX. É famosa e muito citada esta sua crítica aos métodos tradicionais de alfabetização: “Não basta saber ler mecanicamente ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”, de seu livro A educação na cidade (1991), referindo-se a seu método filosófico de alfabetização.

"Eva viu a uva" – com o verbo no passado – é uma variação de “Eva vê a uva” com que se inicia a primeira lição de Cartilha: leituras infantis, do professor Francisco Mendes Vianna, publicada em [1912], pela Livraria Francisco Alves, integrando a Série Leituras Infantis, com duas cartilhas para o ensino inicial de leitura e escrita e quatro livros de leitura para os anos seguintes. Cartilha: leituras infantis teve grande circulação em diversos estados brasileiros, como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Espírito Santo, Paraná, Pará, Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Norte (onde Freire aplicou inicialmente seu método de alfabetização), com mais de 40 edições publicadas até pelo menos os anos 1960.  

Essa não foi a única que obteve êxito escolar e editorial, entre as cartilhas escritas e publicadas no início do século XX por professores escritores didáticos brasileiros, principalmente paulistas, baseadas no método analítico para o ensino da leitura e adotadas oficialmente em vários estados. Outras cartilhas circularam por muito mais tempo e tiveram muito mais edições e tiragens. A lição do “V”, na maior parte delas e também nas do século XIX, costumava ser a primeira, sem muitas variações na palavra escolhida, para facilitar memorização e o estudo das consoantes e das sílabas simples, como ocorreu com estas grandes estrelas: “vaca” (uma celebridade nacional!), “vovô”, “ovo”, “ave”. 

Vianna ficou esquecido, e os exemplares de sua cartilha foram descartados ou vendidos a alfarrabistas e também esquecidos. Existem apenas alguns raros, em centros de memória ou acervos de historiadores, como o exemplar que tenho e utilizo para minhas pesquisas e as que oriento. Mas foi a lição do “V” de Vianna que – talvez pelo recurso mnemônico à aliteração e à evocação de redondilha menor, ou simplesmente por um desses enigmáticos acasos da história – ficou célebre e permanece no imaginário de sucessivas gerações de brasileiros como metonímia/sinédoque (figura de linguagem para indicar substituição do todo pela parte) das cartilhas e dos métodos tradicionais de alfabetização, criticados sobretudo a partir do final do século XX. Uma pequena – mas incômoda – parte do patrimônio da cultura escolar brasileira e que se busca constantemente superar. 

Aqueles tempos passaram, houve avanços significativos nas ciências da educação e da alfabetização e nos livros didáticos. Mas o ensino inicial de leitura e escrita no Brasil ainda é um problema político, social e cultural, não exclusivamente linguístico, pedagógico, metodológico. E Paulo Freire é sempre atual. Aquelas históricas lições do “V”, apesar de combatidas e excluídas dos livros didáticos, em vez de caírem em desuso, caíram em domínio público e na “boca do povo”, onde se cruzam com outras lições educacionais e sociais dos "Vês" do presente. Eva continua vendo a uva. O Ivo também. 

Maria Mortatti