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MARIA FIRMINA DOS REIS, EDUCADORA E ESCRITORA QUE CAMINHA ENTRE NÓS / MARIA MORTATTI

Autora do primeiro romance abolicionista escrito por uma mulher negra brasileira e fundadora da primeira escola pública mista e gratuita em nosso país – assim é hoje conhecida e lembrada a educadora, escritora, compositora e folclorista maranhense Maria Firmina dos Reis. Apesar de sua importância, são ainda poucas e dispersas as informações sobre sua vida e obra, que vêm sendo descobertas e recuperadas desde as décadas finais do século passado por biógrafos e estudiosos da literatura de autoria feminina e afro-brasileira, dando a conhecer escritoras – negras e brancas – desconhecidas ou ignoradas na história da literatura e da educação brasileiras.

Segundo dados mais recentes, Maria Firmina nasceu na Ilha de São Luís do Maranhão, em 11.03.1822, e faleceu na cidade maranhense de Guimarães, em 11.11.1917. Era filha de Leonor Felippa dos Reis, escrava alforriada do Comendador Caetano José Teixeira, comerciante e proprietário de terras da região, e de João Pedro Esteves, homem de posses, sócio do Comendador. Aos cinco anos de idade, ficou órfã e se mudou para a Vila de São José de Guimarães, no interior do Maranhão, para viver na casa da tia materna, que tinha melhores condições financeiras. Interessou-se pela educação e pelas letras e aprimorou sua formação como autodidata, contando também com o incentivo de seu primo, o jornalista, professor e escritor Sotero dos Reis. Em 1847, com 25 anos de idade, concorreu a uma cadeira de instrução primária feminina, tornou-se a primeira mulher aprovada em um concurso público no Maranhão e exerceu a função de professora de primeiras letras até sua aposentadoria, em 1881. Um ano antes, fundou, no povoado maranhense de Maçaricó, uma escola primária gratuita para crianças de ambos os sexos, escandalizando a sociedade local, o que a obrigou a suspender as atividades dois anos depois. Em 1880, após aprovação em concurso, obteve o título de “Mestra régia”, e, mesmo depois da aposentadoria, continuou ensinando filhos de lavradores e de fazendeiros. Não se casou e adotou dois filhos, que tinham sido seus alunos: Nhazinha Goulart e Leude Guimarães. Em 11 de novembro de 1917, com 95 anos de idade, pobre e cega, Maria Firmina dos Reis faleceu na cidade de Guimarães, na casa de uma ex-escrava, Mariazinha, mãe de um dos seus filhos de criação. 

Doze anos depois de seu ingresso no magistério e com alguns escritos publicados em jornais, já respeitada entre intelectuais maranhenses, foi publicada sua primeira e principal obra: Úrsula: romance original brasileiro (199 p.), Typographia do Progresso (MA), 1859. Com características do literatura folhetinesca do Romantismo oitocentista, o enredo se desenvolve em torno da história de amor idealizado e impossível entre os protagonistas, Úrsula, uma jovem simples, e o bacharel Tancredo, ameaçados pela ambição do tio de Úrsula em desposá-la contra a vontade, mas se amplia em diferentes perspectivas narrativas, trazendo à cena a situação dramática dos escravos negros e dando-lhes voz por meio das memórias e sonhos de liberdade de dois personagens escravizados. Consciente dos riscos que corria como mulher e negra, ao publicar um romance em que, pela primeira vez na literatura, dava voz a personagens negros escravizados e com críticas à escravidão, ela assinou com o pseudônimo “Uma maranhense”. No prólogo, adverte se tratar de “mesquinho e humilde livro”. E também expõe as fragilidades e os limites de sua condição de mulher escritora naquele mundo masculino da sociedade patriarcal: “Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.” 

A recepção foi favorável, e ela continuou escrevendo, publicando livros e poemas e compondo letras e músicas. Além de Úrsula e poemas em jornais maranhenses, entre suas publicações estão: Gupeva. romance brasiliense (1861/1862) – narrativa épica de caráter indianista, publicado inicialmente em folhetim, no semanário O Jardim dos Maranhenses; “Poemas”, em Parnaso maranhense (1861); “A escrava” – conto (1887), em A Revista Maranhense, n. 3 – narrativa centrada no debate entre abolicionistas e escravocratas; Cantos à beira-mar – poesia (1871). Entre suas composições musicais, estão: Auto de bumba-meu-boi (letra e música); Valsa (letra de Gonçalves Dias e música de Maria Firmina dos Reis); Hino da libertação dos escravos (1888) (letra e música).

Embora Maria Firmina e sua obra tenham obtido reconhecimento em sua época, ficaram esquecidas por mais de um século e ausentes na história da educação e da literatura brasileiras. Grande parte de seus manuscritos pessoais e obras inéditas foi perdida quando o material, que ficou sob a guarda de seu filho adotivo, foi roubado em um hotel, junto a outros pertences. Em 1962, o romance Úrsula foi descoberto em um sebo carioca, por Horácio de Almeida, que, depois de pesquisar, identificou o pseudônimo da romancista maranhense e preparou a segunda edição fac-similar, publicada em 1975, pela Gráfica Olímpia (RJ). No prólogo dessa edição – comemorativa do sesquicentenário do nascimento da autora – Horácio de Almeida destaca a ausência de Maria Firmina nos estudos críticos dedicados à literatura maranhense. A partir de então, ela recebeu outras homenagens, como a proclamação do Dia da Mulher Maranhense, em 11 de outubro, dia de seu nascimento, e a inauguração, na Praça do Pantheon Maranhense, na capital São Luís, de um busto criado pelo artista plástico Flory Gama, com base em um retrato falado – não há nenhuma foto da escritora. Na cidade de Guimarães, uma escola e uma rua levam o seu nome. Em 2022, recebeu o titulo de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Maranhão. A partir da comemoração do centenário de seu falecimento em 2017, seus livros vêm sendo relançados: Úrsula – com cerca de trinta reedições, algumas trazendo em apêndice o conto "A Escrava"; Gupeva – com seis edições; e Cantos à beira-mar, volume de poemas disponível em publicação da Academia Ludovicence de Letras, organizada por Dilercy Aragão Adler, autora da biografia: Maria Firmina dos Reis: uma missão de amor (2017). 

A pioneira e revolucionária mulher, negra, escritora e educadora até o fim da vida tinha a consciência possível de estar desbravando um campo inimaginável para as mulheres  – e negras – de seu tempo e da importância da educação na luta por voz e liberdade. No final do prólogo de Úrsula, Maria Firmina dos Reis registrou a profecia que no século XXI ainda ecoa e, em passos lentos, caminha em busca de realização: se o livro fosse amparado pela crítica e pelos leitores, a autora poderia escrever outros e melhores ou o acolhimento poderia servir ao menos “de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós”. “Deixai pois que a minha Úrsula (...) caminhe entre vós.”

Maria Mortatti – 11.03.2023