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BALZAC, A COSTUREIRINHA CHINESA E OS LIVROS PROIBIDOS / MARIA MORTATTI

O filme Balzac e a costureirinha chinesa (Balzac et la petite tailleuse chinoise) (França/China, 2002) foi dirigido e roteirizado por Dai Sijie (1954 – ), escritor e cineasta chinês que vive na França. Ele é também autor do romance homônimo, com características autobiográficas, publicado em francês no ano 2000 e traduzido em mais de 30 idiomas, incluindo o português, pela editora Alfaguara. O filme é belíssimo, no enredo, na fotografia, na trilha sonora – com Mozart e Beethoven –, na interpretação dos jovens atores. Assisti várias vezes sozinha e durante aulas sobre ensino de literatura em que o projetei e suscitou nos jovens estudantes tantas emoções e reflexões sobre a descoberta do amor e da literatura. Sempre encantador. 

A história se passa na China, no início dos anos 1970, no auge da Revolução Cultural, comandada por Mao Tse-Tung. Entre um conjunto de medidas drásticas, o governo chinês promoveu o expurgo de livros considerados "burgueses" e símbolos da "decadência ocidental", as universidades foram fechadas e jovens intelectuais de famílias “burguesas” e "reacionárias" foram encaminhados para “reeducação no campo”. No filme, Ma e Luo são dois jovens de 17 anos universitários de Pequim, que, por serem filhos de médico e dentista "burgueses", são enviados para a reeducação entre camponeses pobres de um lugarejo isolado no Tibete. Lá, são submetidos a uma dura e bruta rotina, que suportam com certa dose de bom humor e de leveza. Os livros que Luo levara foram queimados, mas Ma conseguiu preservar seu violino, quando, ao tocar uma peça de Mozart, alegou que fora composta para o Presidente Mao. Ambos se apaixonam pela costureirinha, neta de um alfaiate e a mais bela moça da região, e Luo promete salvá-la da ignorância. A oportunidade para cumprir essa promessa se apresenta quando a costureirinha informa que outro jovem em "reeducação" na montanha, o "Quatro-olhos", guardava em segredo uma mala com livros proibidos. Os três conseguem roubá-la e descobrem um tesouro precioso: Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Gustave Flaubert, Charles Baudelaire, Jean-Jacques Rousseau, Fiódor Dostoiévski, Charles Dickens, entre outros clássicos da literatura. Deslumbrados, escondem a mala em uma gruta distante e vão retirando os livros um de cada vez, para que não perdessem todos, se fossem denunciados. Inicia-se, assim, uma revolução na vida dos três jovens. Ma e Luo descobrem livros aos quais até então não tinham acesso, porque foram banidos justamente no período em que aprenderam a ler e escrever; e a costureirinha descobre o mundo da leitura e escrita do qual até então estava excluída. 

O primeiro que despertou a atenção do trio foi Úrsula Mirouët (1842), do escritor francês Honoré de Balzac (1799 – 1850). A protagonista é uma órfã, educada pelo tutor idoso que se preocupa em lhe proporcionar educação primorosa e boas condições financeiras, provocando inveja e assédio de parentes ambiciosos. Ao final, ela se salva com revelações em sonhos misteriosos e o amor de Savinien. A costureirinha se detém admirando uma gravura, cuja legenda Luo lê para ela: "A beleza de uma mulher é seu maior tesouro". Depois de passar uma noite inteira em leitura clandestina, Ma sai de sua choupana, abre os braços e solta um grito deslumbrado: "Úrsula Mirouët!".  A percepção do mundo ao seu redor fora transformada por aquela leitura, e somente a espera da próxima leitura noturna poderia fazê-los suportar a rotina diurna. Com medo de perder o livro, Ma chega a copiar trechos no forro de pele de animal de seu casaco. Os jovens passam, então, a ler o livro todas as noites para a costureirinha, que aprende a ler e escrever, ao mesmo tempo em que se vai explicitando a relação amorosa entre ela e Luo. Uma das mais tocantes cenas do filme sintetiza imageticamente o processo de aprendizado da costureirinha: sentada atrás de Luo, com um pequeno caderno apoiado nas pernas e um lápis na mão, ela escreve, oralizando, de forma silabada e hesitante, o que Luo dita: "Eu-te-a-mo". Ele lhe pede que leia, sem escrever, e, por fim, o que parecia treino se transforma na declaração de amor, que, de fato, era o que Luo queria ouvir: "Eu te amo, eu te amo, eu te amo!". 

Por meio da leitura dos clássicos da literatura, até então proibidos, eles descobrem um mundo novo e a liberdade para sonhar com uma nova condição como seres humanos. Depois de intensa relação amorosa com Luo, de um aborto clandestino – feito pelo médico também leitor de clássicos – e a não menos intensa relação de amizade com Ma, a costureirinha decide partir, deixando para trás o lugarejo e os dois jovens. Quando lhe perguntam o motivo, responde que Balzac lhe ensinara que "a beleza de uma mulher é seu maior tesouro". 

Se é uma esperança vã ou factível que livros possam conter inimagináveis tesouros a ser descobertos na leitura solitária ou compartilhada? Que o amor salva e a literatura também? Deixo com Balzac uma possibilidade de resposta, nas últimas palavras da dedicatória do livro Ursula Mirouët a sua sobrinha: "Quem no-lo dirá? O futuro, que verás, espero, e no qual talvez eu já não exista mais (...) ".

Maria Mortatti