“Carochinha”, diminutivo de “carocha” – designação de várias espécies de besouros e baratas em Portugal – é o nome da personagem que cantava na janela para atrair pretendentes e se casou com João Ratão, no famoso “Conto da carochinha” da tradição oral portuguesa, que passou a designar outras histórias populares e para crianças. A palavra passou para o folclore brasileiro com o sentido de “baratinha” e foi associada à imagem de uma velha bondosa distraindo as crianças com histórias fantásticas. Também é utilizada na expressão “conto ou história da carochinha”, com sentido pejorativo de mentira contada de forma tão detalhada que chega a enganar muita gente. Mas foi como nome daquela personagem que a palavra se difundiu entre nós a partir da publicação, em 1894, de Contos da Carochinha, de Figueiredo Pimentel, pela Livraria Quaresma, marcando o início de empreendimentos precursores e revolucionários nos campos literário e editorial brasileiros.
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PEDRO QUARESMA & FIGUEIREDO PIMENTEL: OS CONTOS DA CAROCHINHA / MARIA MORTATTI
O editor e livreiro Pedro da Silva Quaresma (1863 – 1921) fundou, em 1879, a Livraria Quaresma – anteriormente Livraria do Povo –, na cidade do Rio de Janeiro, com o sonho de “abrasileirar o comércio de livros, entre nós”, dando início à “tradição da literatura verdadeiramente popular”, como relata Leonardo Arroyo, para alcançar novo segmento da crescente população carioca pouco letrada e não habituada a ler, ignorada pelos concorrentes estrangeiros que dominavam o comércio de livros, como o francês Jean-Baptiste Garnier, o português Francisco Alves e os irmãos alemães Laemmert. Foi o primeiro editor brasileiro (ou português, como informam alguns historiadores) a criar coleções de livros populares, sobre assuntos diversos, de leitura fácil e prática, em brochuras com formato pequeno e muito baratas, além de folhetos de música popular, como os de modinhas e canções de Catulo da Paixão Cearense, na Biblioteca dos Trovadores, criando, ainda, novas e ousadas estratégicas de publicidade impressa e divulgação em jornais e cartazes, além de ampla distribuição para todas as regiões do País. As atividades da livraria foram encerradas em 1951.
Em 1894, Quaresma convidou o prolífico escritor, jornalista, poeta e funcionário público Alberto Figueiredo Pimentel (11.10.1869 – 05.02.1914) para organizar e dirigir uma coleção de livros de literatura para crianças – posteriormente denominada “Bibliotheca Infantil” –, segmento editorial até então inexplorado no Brasil. Figueiredo Pimentel já era um cronista popular do jornal Diário de Notícias e tinha publicado com Quaresma o “pornográfico” romance naturalista O aborto, de 1893, com sucesso imediato e que lhe rendeu a fama de “autor imoral”, credenciando-o, aos olhos do editor, para organização do projeto inovador de literatura infantil, cujos livros assinava como Figueiredo Pimentel. O projeto do escritor – que, segundo Câmara Cascudo, “não fez pesquisa direta, mas foi buscá-los em livros portugueses e franceses, traduzindo-os e adaptando-os em linguagem brasileira” – consistia de traduções portuguesas ou adaptações de histórias e contos de fadas europeias, como as dos irmãos Grimm, de Charles Perrault e de Hans Christian Andersen, ou histórias populares e cantigas de berço contadas pelas amas de crianças brasileiras. A coleção foi iniciada com Contos da Carochinha, seguindo-se outros títulos de Figueiredo Pimentel: Histórias da avozinha, Histórias da baratinha, Contos de fadas, Álbum das crianças, Os meus brinquedos, Histórias do arco da velha, Teatrinho infantil, Contos do Tio Alberto, Castigo de um anjo, O livro das crianças.
Em Contos da carochinha, foram reunidos 61 contos populares, morais e divertidos de diferentes países, escritos e traduzidos uns e outros colhidos da tradição oral. Entre os clássicos da literatura universal, constavam João e Maria, A gata borralheira, O pequeno polegar, João e o pé de feijão, Branca como a neve e A bela e a fera. O projeto contou também com capa litografada em cores e com vinhetas e gravuras do ilustrador, caricaturista, dramaturgo e cenógrafo Julião Machado (1863 – 1930), de destacada atuação na imprensa, como colaborador e fundador de revistas da época. O livro teve sucesso imediato. A primeira edição, com 5 mil exemplares, esgotou-se em menos de um mês. E, conforme anúncio do editor no Jornal do Brasil, em 1896 o volume já estava em 12ª. edição, contava com 400 páginas, 3000 gravuras e vinhetas e era vendido a 4$000. As tiragens variavam de 5.000 a 10.000 exemplares. Conforme relato de Arroyo, "pela falta de boas tipografias no Rio de Janeiro do começo do século XX, os volumes Contos da Carochinha e Histórias do arco da velha foram impressos em Paris." Entre 1894 e 1931, os títulos da coleção alcançaram o número de cem mil exemplares e continuaram sendo publicados até, pelo menos, 1967, em livros de bolso, pela Edições de Ouro, indicando muitas décadas de sucesso e circulação em todo o Brasil.
Essa coleção proporcionou fama e sucesso ao editor e ao autor, tendo revolucionado o comércio dos livros, das edições para crianças, possibilitando a gradativa substituição de obras de literatura infantil importadas ou traduzidas, pela nacionalização de conteúdos, linguagem, edição e comercialização de livros para grande público infantil, além do escolar, e subvertendo o modelo de leitura daquela época. Figueiredo Pimentel foi considerado, em 1897, o segundo escritor brasileiro que mais produziu, em quantidade e qualidade. Alcançou reconhecimento internacional como correspondente de revista parisiense, popularizou a figura da carochinha e foi precursor da literatura infantil brasileira, cujo processo de consolidação se iniciou nos anos 1920 com a obra do escritor e editor Monteiro Lobato – que, em Reinações de Narizinho, retratou a carochinha como “uma velha baratinha de mantilha” e popularizou também a Dona Baratinha no folclore brasileiro. Pedro Quaresma, o arrojado editor, foi precursor da literatura popular, da edição de livros em território brasileiro, de ostensivas estratégias de publicidade e distribuição de livros e foi o pioneiro na publicação de literatura infantil. Talvez tenha também conseguido realizar seu sonho de abrasileiramento do comércio de livros, o que, pelo que indicam relatos, dados e fatos documentados, não é "história de carochinha". Mas é também fato que Figueiredo Pimentel não foi unanimidade entre escritores de sua época – como Júlia Lopes de Almeida que o criticou publicamente –, nem entre estudiosos e críticos literários, que ignoram sua obra, por considerá-la um tipo de literatura de entretenimento, de apelo popular e pouca qualidade estética, merecendo apenas atenção de pesquisadores interessados na história do livro e da literatura infantil no Brasil.
Maria Mortatti