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ELIAS CANETTI, A LÍNGUA ABSOLVIDA E A PÁTRIA LITERÁRIA / MARIA MORTATTI

Em A língua absolvida, de Elias Canetti, o menino é ameaçado todas as manhãs por um homem sorridente – o namorado de sua babá de 14 anos – que lhe pede para mostrar a língua, abre um canivete e com a lâmina bem perto diz: “Agora lhe cortaremos a língua”. No último momento, o homem recolhe o canivete e diz “Hoje ainda não, amanhã”. “(...) A ameaça com a faca produzira seu efeito, a criança silenciara sobre isso durante dez anos”. Inicia-se, assim, o primeiro volume da trilogia autobiográfica de Elias Canetti (25.07.1905 – 14.08.1994), romancista e ensaísta búlgaro naturalizado britânico, cosmopolita e poliglota que adotou a língua alemã como pátria literária e foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1981.

De família sefardita – descendentes de judeus da Península Ibérica – estabelecida na cidade de Ruse, Bulgária, Canetti se mudou para a Inglaterra, em 1911; após a morte do pai em 1913, a família se mudou para Viena. Canetti frequentou escolas na Suíça e na Alemanha; em Viena estudou Ciências, doutorou-se em Química e passou a se dedicar exclusivamente à escrita. Em 1938, mudou-se para a França e, depois, para Londres, onde morou por muitos anos. Nos anos 1980, retornou a Zurique, onde faleceu com 89 anos de idade. Além do seu idioma materno, o ladino, aprendeu o búlgaro, sua segunda língua, e depois, entre outros, o inglês e o alemão – idioma de sua expressão literária –, participou de círculos literários com grandes escritores, teve vida amorosa movimentada e manteve contato com diferentes culturas em seus deslocamentos pela Europa, devido aos principais conflitos sombrios da história alemã e europeia da primeira metade do século XX: a Guerra dos Bálcãs, entre 1912 e 1913; a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918; a Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939; e a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945. Sua obra é composta por gêneros variados: romance, peças de teatro, ensaios, aforismos, narrativa de viagem, autobiografia. Além de mil páginas publicadas, há extenso volume de textos inéditos – correspondendo a dez vezes sua obra conhecida –, com anotações de suas leituras, que o escritor entregou à Biblioteca de Zurique e cuja publicação autorizou somente para 30 anos após sua morte.

Notabilizou-se com sua primeira obra literária, considerada sua obra-prima, o romance Die Blendung (Auto-de-fé) (1935) – história de Peter Kien, um sinólogo cuja paixão obsessiva pelos livros o impede de ver e viver o mundo real – e com o ensaio filosófico etno-sociológico Masse und Macht (Massa e poder) (1960). A trilogia autobiográfica Die gerettete Zunge (A lingua absolvida) (1977); Die Fackel im Ohr (Uma luz em meu ouvido) (1980); Das Augenspiel (O jogo dos olhos) (1985) – com traduções brasileiras pela Companhia das Letras – representa uma espécie de síntese do conjunto de sua obra, por meio da interpretação de sua vida pessoal singular e ao mesmo tempo de uma época e da condição humana. 

Em A língua absolvida – história de uma juventude, Canetti relata suas recordações do nascimento, em Ruse, ao fim da adolescência, em Zurique, com a “expulsão do paraíso”. Relatando acontecimentos pessoais, compõe também uma narrativa de formação de sua consciência literária, em que se destaca o fascínio pela língua e pela literatura por parte desse escritor cosmopolita de ascendência judaica, que adotou a língua alemã como pátria literária, expondo e problematizando com sua obra a complexa relação entre língua, identidade e pátria. Passados mais de cem anos do nascimento do escritor, aquele episódio real da ameaça de silenciamento representa uma metáfora-chave para a compreensão de sua obra. A absolvição da e pela língua, como possibilidade de falar por meio da literatura, realizando e compartilhando sua capacidade de humanização, representou também para mim, desde a primeira vez em que o li, no ano de 1990, uma renovada convocação para a responsabilidade das palavras que devem servir para a transformação de cada um de nós. A literatura salva.

Maria Mortatti