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ISAK DINESEN, A BARONESA CONTADORA DE HISTÓRIAS / MARIA MORTATTI

Em 1987, assisti ao filme A festa de Babette, premiada adaptação do conto homônimo de Isak Dinesen. Foi um banquete-aperitivo cuja degustação se estende até hoje, com a leitura das histórias contadas e da história vivida pela escritora dinamarquesa, que se tornou conhecida, reconhecida, traduzida e lida em muitos países, foi homenageada com seu nome em um asteroide, o 3318 Blixen, descoberto em 1985, e com o Karen Blixen Museum, na cidade de Copenhagen, Dinamarca.  

Isak (do hebraico Isaac, “aquele que ri”) é o nome masculino que, precedendo o sobrenome de solteira, Karen Christentze Dinesen adotou para compor seu principal e famoso pseudônimo literário. Nascida em 17.04.1885, de família abastada, mãe ativista política pelos direitos da mulher e pai militar que tinha sífilis e cometeu suicídio quando Karen tinha 10 anos de idade, chamada de Tanne pelos familiares, depois de Tania pelo amante, tornou-se a Baronesa Karen Blixen-Finecke, quando, em 1914, para fugir do ambiente de convenções familiares que a desagradavam, casou-se com o Barão Bror Frederik von Blixen-Finecke (1886 – 1946) – seu primo e irmão gêmeo do homem que ela amava, mas não era correspondida – e o casal emigrou para a África (atual Quênia), onde passaram a administrar uma fazenda de café. Esse acontecimento foi decisivo na vida da baronesa. Na fazenda, onde viveu por 17 anos, contraiu sífilis do marido que passava muito tempo fora em safáris e aventuras com mulheres e de quem ela se divorciou em 1925 – mas conservou o título de baronesa; lá viveu intensa relação amorosa com a grande paixão de sua vida, o piloto do Exército britânico, Denys Finch-Hatton, que conheceu em 1916 – de quem engravidou duas vezes e sofreu abortos espontâneos – e o qual morreu, em 1931, em acidente aéreo – seu avião caiu no mesmo local onde o casal tinha decidido que seus corpos seriam enterrados; e lá viu a falência da plantação de café, o que a obrigou a vendê-la e retornar à Dinamarca, em 1931.

Antes de se casar, Blixen tinha escrito poemas, peças e contos, como exercícios de adolescente. Com 22 anos de idade, decidiu publicar alguns de seus contos em revistas literárias, adotando o pseudônimo Osceola. Foi com o esforço para se recuperar das perdas e da doença, que começou a escrever profissionalmente, mas não se considerava autora/escritora: era contadora de histórias, atividade que iniciou nas longas noites na fazenda africana. O amante, que não queria se prender pelo casamento, ia e vinha quando queria e, depois de longo tempo fora, ao voltar para casa, perguntava que história ela tinha para contar. Blixen, então, contava histórias como forma de manter acesa a paixão e se salvar. Aquelas histórias foram publicadas no livro A vingança da verdade, em 1926. Quando retornou à Dinamarca, com 39 anos de idade, publicou em inglês e depois em dinamarquês – após recusa de muitos editores norte-americanos – seu primeiro livro como escritora profissional: Seven gothic tales (Sete contos góticos) (1934), com o pseudônimo Isak Dinesen. Em 1937, publicou Out of África (A fazenda africana), com memórias dos 17 anos na África, que se tornou seu livro mais conhecido e foi adaptado para o cinema, em 1985, com o título Entre dois amores (no Brasil). Em 1939, recebeu uma anuidade vitalícia da Fundação Cultural do Estado Dinamarquês e o prêmio Tagea Brandt Travel Grant. Seguiram-se Winter's Tales (Contos de inverno) (1942) – resultado de viagem para Berlim por quatro semanas em março de 1940 como correspondente de três jornais escandinavos e publicado na Inglaterra e nos EUA, onde vendeu 280.000 cópias; The angelic avengers (Vingadores angélicos) (1946), com pseudônimo Pierre Andrézel. Ficou 13 anos sem publicar, pois, em 1955, uma parte de seu estômago teve que ser removida, por causa de uma úlcera decorrente da ingestão de altas doses de arsênico para tratamento da sífilis. Em 1957, publicou Last tales (últimos contos) – lançado simultaneamente em dez idiomas, totalizando quase meio milhão de cópias, mas não recebeu a aclamação de Contos de inverno; Anecdotes of destiny (Anedotas do destino) (1958), que inclui o conto “A festa de Babette”, adaptado para o cinema em 1987; Shadows on the grass (Sombras na pradaria) (1960), além de outros títulos publicados postumamente, como Ehrengard (1963).

Sua fama cresceu durante e após a Segunda Guerra Mundial. Em 1948, conheceu Thorkild Bjornvig, um dos poetas dinamarqueses mais talentosos de sua geração, que se tornou editor da revista Heretica, criada por Blixen. Ele se ofereceu para ficar totalmente à disposição dela e, em troca, ela prometeu ser sua protetora. Esse “Pacto” deu certo por um tempo, mas Bjornvig acabou pedindo sua liberdade. Em 1959, Blixen participou de uma turnê nos EUA, onde conheceu os escritores Arthur Miller, E. E. Cummings e Pearl Buck. Na Dinamarca, deu palestras na rádio e defendeu causas dos animais. Devido à dificuldade de se alimentar depois daquela cirurgia no estômago, morreu de desnutrição, aos 77 anos de idade, no dia 07.09.1962, em sua terra natal. Atendendo ao pedido da escritora, em seu túmulo consta apenas seu nome: Karen Blixen.

Sobre sua atividade de contadora de histórias – “nada além disso”, como dizia –, Blixen afirmou: “É a própria história que me interessa, e a maneira de contá-las.” Apesar da maneira sintética como contei aqui, a história de Blixen é, ela mesma, um história que interessa conhecer e degustar. Curiosamente, ela não escreveu uma autobiografia. Há apenas uma biografia, publicada em 1965 e pouco competente, pelos comentários que li. Tão ou mais fascinante do que as que contou e salvaram seu amor e sua vida depois das perdas sofridas nos anos na África, é a história que viveu, confirmando que as dores podem ser suportadas se postas numa história ou se for contada uma história sobre elas. Assim também fiz em minha tese de doutorado, intitulada  Em sobressaltos (1991), em que conto a história de formação de uma professora, tendo como referências, entre outras, "A festa de Babette", de Dinesen, e ensaio da filósofa Hannah Arendt, que assim sintetiza sua análise da obra da escritora dinamarquesa: “Seguramente, ela sentia tanta ansiedade em [entreter o amante] quanto Sherazade, com a mesma consciência de que o fracasso em agradá-lo seria sua morte” e “foi o contar histórias que ao final a fez sábia (...) A sabedoria é uma virtude da velhice, e parece vir apenas para os que, quando jovens, não eram nem sábios nem prudentes.”

Maria Mortatti