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O COYOTE, DE J. MALLORQUÍ, E A LITERATURA PULP NO BRASIL / MARIA MORTATTI

Com A chegada do Coyote, iniciou-se a publicação no Brasil da série de livros de bolso/literatura pulp, protagonizada pelo herói mascarado Coyote e criada, em 1944, pelo escritor espanhol José Mallorquí Figuerola (12.02.1913 – 07.11.1972). Foi também o início das atividades da editora Monterrey, fundada em 1956 pelos espanhóis Luis de Benito e Juan Fernandes Salmeron, com sede na cidade do Rio de Janeiro, e que se especializou nesse tipo de publicação.

Pulp ou pulp fiction ou revista pulp é a denominação de revistas de entretenimento ligeiro, ou “de emoções”, com histórias de enredo simples e conteúdo variado – histórias de suspense, policial, terror, fantasia, ficção científica, faroeste – feitas com papel barato e grosseiro, fabricado a partir de polpa (pulp) de celulose pouco prensada e de baixa durabilidade. Originadas no final do século XIX, nos Estados Unidos da América do Norte, tornaram-se populares nos anos 1920/1930. Publicadas em fascículos e vendidas com preço baixo em bancas de jornal ou tabacarias, algumas das publicações mais famosas chegavam a imprimir 1 milhão de cópias por edição. O formato de livro de bolso – formatinho – em brochura foi criado para a revista norte-americana Reader’s Digest, conhecida no Brasil como Seleções e lançada aqui em 1942. No final do século XIX, a Livraria Quaresma, situada na cidade do Rio de Janeiro, fundada pelo livreiro e editor Pedro Quaresma, lançou coleções de livros populares sobre assuntos variados em formato de bolso, que alcançaram muito sucesso. No século XX, fora do eixo Rio-São Paulo, a Livraria do Globo, de Porto Alegre/RS, foi a primeira editora brasileira a publicar livros desse tipo, os da Coleção Globo lançados em 1933, com formato 11 x 16 cm. Os livros de bolso, como os da série O Coyote, foram os primeiros a juntar o formatinho e o gênero pulp, caracterizando a literatura pulp/pulp fiction.

Desde o lançamento do primeiro título em 1944 na Espanha, pela Edições Cliper, de Barcelona, com esse novo formato, a série El Coyote foi um sucesso de vendas e público, presumivelmente masculino, na maioria. Seu criador, José Mallorquí, um dos mais prolíficos escritores espanhóis, nascido em Barcelona, trabalhou como tradutor para a Editorial Molino, junto à qual permaneceu como tradutor, com publicações autorais e outras atividades. Em 1936, casou-se com Leonor del Corral, contra a vontade da família dela, e tiveram um filho. Nos anos 1960, mudaram-se para Madri, e, em 1967, Leonor adoeceu de leucemia, vindo a falecer em 1971. Mallorquí nunca superou essa perda e cometeu suicídio no ano seguinte, deixando uma nota em que pedia perdão ao filho. Embora também tenha escrito biografias de conquistadores espanhóis, história de detetives, de horror, de ficção e de divulgação, seu personagem mais popular é o Coyote, que, até 1953, protagonizou 192 histórias, embora Mallorquí tivesse planejado inicialmente apenas uma. Os livros da série foram traduzidos para mais de 14 idiomas, incluindo o Brasil, adaptados para cinema e história em quadrinhos e fizeram de seu autor um dos escritores espanhóis mais lidos.

Buscando repetir o sucesso obtido pela série em seus país de origem, os proprietários da Monterrey compraram os direitos de publicação e, no início dos anos 1960, lançaram, no Brasil, O Coyote em formatinho – 10 cm x 15cm – e poucas páginas. O sucesso imediato também aqui – foram publicados no total 200 números, com 4 milhões de exemplares vendidos –, contribuiu para popularizar entre nós o gênero pulp por meio de séries, diferentemente do modelo norte-americano de publicações avulsas. Apesar de os volumes terem numeração nas capas indicando uma sequência do tipo publicação seriada, eles podiam ser lidos separadamente, o que, além do formato econômico e da ampla distribuição, contribuiu para popularizar essa fórmula editorial. Depois de O Coyote, a editora Monterrey publicou, em 1961, FBI, série de histórias policiais, e, em 1963, Memórias de Giselle – A espiã nua que abalou Paris. A Monterrey foi comprada pela editora Cedibra (Companhia Editora Brasileira), criada no rio de Janeiro, no final dos anos 1960, inicialmente chamada de Bruguera, filial da homônima espanhola, de Francisco Bruguera, com sede em Barcelona.  Em 1963, o jornalista José Alberto Gueiros comprou a parte de Benito, ganhou o controle da Monterrey e, utilizando estratégias de marketing, distribuição e venda inspiradas em técnicas norte-americanas até então inéditas no Brasil, imprimiu nova dinâmica à editora, que logo atingiu a marca de 12 coleções simultâneas.  

O personagem Coyote foi inspirado no personagem Zorro, criado pelo escritor estadunidense Johnston McCulley (1883 – 1958). Coyote é a identidade secreta de Don César de Echagüe, que durante o dia se apresenta como o refinado e educado, mas considerado covarde, filho de um rico fazendeiro da Califórnia – incorporada aos Estados Unidos em 1850 – e à noite se transforma no Coyote, o justiceiro mascarado, defensor dos fracos e da liberdade, que tem como principal inimigo o general Clarke, tirano conquistador da Califórnia que procura se apropriar das propriedades dos hispânicos e dos índios nativos da Califórnia. Assim como o Zorro, que deixa sua marca com um “Z”, o Coyote marca seus inimigos com um tiro na orelha. A obra de Mallorquí serviu de inspiração para cinco filmes entre cinema e TV, que, curiosamente, não repetiram o grande sucesso dos livros de bolso.

As capas de O Coyote e de romances de espionagem e policiais da Monterrey foram ilustradas por Benício (José Luiz Benício da Fonseca, 1936 – 2021), premiado ilustrador e desenhista gaúcho, conhecido como “mestre das pin-ups brasileiro”, que se instalou na cidade do Rio de Janeiro e trabalhava como freelancer, tendo ilustrado ainda cerca de outras três mil capas de livros de bolso durante quatro décadas e centenas de cartazes para filmes brasileiros, como Zé do Caixão e Dona Flor e seus dois maridos. Sobre os tradutores das edições brasileiras de O Coyote, não há informações disponíveis, exceto em um ou outro número vendido em sebos, em que se dá o crédito da tradução a Maria Helena Terra.

Hoje raridade e conhecido apenas por colecionadores ou interessados na história da literatura pulp e seus inúmeros desdobramentos, o pai do livro de bolso no Brasil foi também o livro de bolso de meu pai, que dizia ser um homem de “pouco estudo”. Durante minha infância e juventude, nos anos 1960/1970, muitas vezes o vi lendo com avidez essas pequenas brochuras de folhas amareladas e capas coloridas, sempre com a icônica imagem do cavaleiro mascarado, de bigode, com um sombrero e duas pistolas. Nunca lhe perguntei, na época, o motivo de tanto interesse. Mas guardei um exemplar que não consegui localizar, quando me lembrei dele, em meio a uma pesquisa sobre história do livro no Brasil. Procurando, então, em livros, como o de Laurence Hallewell, e em sites da Internet, como o da editora Monterrey, a Wikipedia e outros de admiradores e colecionadores de O Coyote e da pulp fiction, localizei algumas informações que utilizo neste texto. Foi, assim, tateando e tentando conhecer um capítulo da história de leitura de meu pai que talvez agora eu tenha entendido um pouco mais também sobre um capítulo pouco conhecido da história do livro e da literatura pulp no Brasil, em especial o sucesso dos romances protagonizados pelo Coyote, o herói justiceiro que proporcionou ao meu pai e aos homens de sua geração momentos de entretenimento e de fruição da fantasia. Estudados ou não, eram leitores. 

Maria Mortatti