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O DIREITO À PREGUIÇA, SEGUNDO LAFARGUE / MARIA MORTATTI

No manifesto Le droit à la paresse: réfutation du droit au travail de 1848 (O direito à preguiça: refutação ao direito do trabalho de 1848), o socialista cubano-francês Paul Lafargue (15.01.1842 – 25.11.1911) apresenta um breve, mas incisivo histórico de diferentes visões sobre o trabalho até sua época, com o advento da revolução industrial e da concepção capitalista de trabalho, inspirando-se no pensamento de Karl Marx. O manifesto foi publicado em 1880, no jornal L'Égalité, e publicado em livro, em 1883, com ampliações feitas pelo autor. Tornou-se – depois do Manifesto Comunista (1848) – o texto marxista mais popular do século XIX, com traduções também no Brasil, a primeira em 1980, pela Kairós, que li e releio sempre. E continua influente, seja como documento de uma época, seja como um clássico e referência sobretudo entre estudiosos das relações de trabalho na sociedade capitalista, como o sociólogo italiano contemporâneo Domenico De Masi (1938 – 2023), que discute a "economia do ócio", propõe o “ócio criativo” e atualmente aborda também relações entre trabalho e inteligência artificial.

Sem desconsiderar a necessidade do trabalho como fator de desenvolvimento da história e de constituição do ser humano, Lafargue entende que o tempo livre de preguiça é também necessário para o lazer e o prazer. Com eloquente ironia e larga erudição, refuta o que considera “dogma desastroso” da santificação do trabalho e propõe jornada de trabalho de 3 horas – na época, em Paris, as jornadas superavam 12 horas, incluindo mulheres e crianças. Criticando o “amor ao trabalho”, “estranha loucura que se apossou das classes operárias”, defende que “o proletariado deve voltar a seus instintos naturais e proclamar o 'direito à preguiça'”, um dos sete pecados capitais, na visão cristã. Argumentando provocativamente, entre vários exemplos de poetas e filósofos, lembra que “Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha”: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”. 

Autor de várias obras sobre a história do marxismo e médico de formação, Lafargue era casado com Jenny Laura Marx (26.09.1945 – 25.11.1911), segunda filha de Karl Marx. O casal cometeu suicídio com “uma injeção hipodérmica com ácido cianídrico”. Na noite do dia 24 de novembro de 1911 foram à ópera e, na manhã do dia seguinte, quando Lafargue completava 70 anos de idade, foram encontrados mortos, serenamente sentados em sua sala de visitas. No testamento, ele explica os motivos: “Estando são de corpo e espírito, deixo a vida antes que a velhice imperdoável me arrebate, um após outro, os prazeres e as alegrias da existência e que me despoje também das forças físicas e intelectuais; antes que paralise a minha energia, que quebre a minha vontade e que me converta numa carga para mim e para os demais. Há anos que prometi a mim mesmo não ultrapassar os setenta; por isso, escolho este momento para me despedir da vida, preparando para a execução da minha decisão uma injeção hipodérmica com ácido cianídrico. Morro com a alegria suprema de ter a certeza que, num futuro próximo, triunfará a causa pela qual lutei, durante 45 anos.”

O vocábulo latino otium e o correspondente grego scholê designam o tempo e o lugar de liberdade ocupados por atividades de formação do espírito, o tempo lento de pensar e contemplar, concentrando longamente a vista e a atenção em algo, o tempo do lazer e do prazer, que, para alguns, inclui o trabalho prazeroso. Com esse sentido original, "ócio" se relaciona com "preguiça", termo provocativamente usado por Lafargue. Mais do que documento de época ou referência ainda atual para estudiosos, seu manifesto é uma  defesa contundente de direitos humanos fundamentais: “alegria, saúde, liberdade”, tudo o que faz “a vida bela e digna de ser vivida.” 

Maria Mortatti – 16.06.2023