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"O ESPÍRITO VITORIOSO", DE CECÍLIA MEIRELES / MARIA MORTATTI

Por tudo que já se sabe e se escreveu sobre a poeta, professora, educadora, cronista, folclorista, dramaturga, jornalista, crítica literária, tradutora, pintora brasileira Cecília Meireles (07.11. 1901 –10.11.1964), é sempre uma temeridade tentar acrescentar algo que tenha escapado ao olhar atento de tantos estudiosos e admiradores de sua obra. Mesmo correndo o risco da redundância, nunca será demais, porém, ressaltar aspectos, mesmo os que são conhecidos por muitos, que revelam sempre novas possibilidades de interpretação, conforme o momento de cada leitor e o contexto de leitura da obra monumental da que assim se apresenta no eu lírico do poema “Compromisso”: “Esta sou eu – a inúmera.”

Considerando apenas sua obra escrita, entre as centenas de textos que publicou em vida, encontra-se O espirito victorioso – These apresentada ao concurso da cadeira de Literatura da Escola Normal do Districto Federal em 1929, e publicada no mesmo ano, pela Typographia do Annuario do Brasil. Cecília tinha então 28 anos de idade, era professora primária, estava  casada com o artista plástico Fernando Correa Dias, tinha três filhas, cinco livros publicados, já vinha realizando inquéritos sobre leituras infantis e pedagogia, relacionava-se com proeminentes intelectuais, escritores e educadores, participava de debates sobre educação renovada que vinham se realizando desde os anos 1920 e do grupo de escritores espiritualistas da revista Festa e iniciara atividade de tradutora com As mil e uma noites, ilustrada por seu marido, que faleceu em 1935. 

“Que podemos nós oferecer [às crianças] que não lhes venha a ser um estorvo? Que passado queremos ser nós, para esses que ainda neste momento são apenas uma probabilidade futura?” Com essa questão de fundo, Cecilia inicia a tese, defendendo os princípios da escola moderna, “ativa, prática, viva”, com “a magia transfiguradora do movimento da vida”, destacando os princípios de liberdade, inteligência, estímulo à observação e à experimentação e enfatizando a formação de professores: “um mestre que tenha provado o gosto da vida, intensamente (...) que transmita aos discípulos não o sabor que os seus lábios sentiram, mas o desejo comovido de tocar também com sua boca essa estranha bebida  e distinguir-lhe o duplo ressabio de eternidade e impermanência”. Mas “Instruir para educar, educar para viver e viver para quê?". Ressalta, então, a importância da literatura para a educação, pois as palavras escritas que nos deixaram aqueles que nos precederam são “o corpo de seu pensamento e resumiram uma vida diferente”; a literatura “é o próprio homem, é a sua talvez única realidade, a realidade espiritual, interrogando a sua mesma razão de ser. Uma constatação e um desconhecimento. E uma necessidade angustiosa de uma reconciliação entre os dois”. No capítulo mais extenso, “O ciclo de tentativas”, iniciando com a poesia ocidental da Renascença, comenta a obra de poetas portugueses e brasileiros, tais como: Bocage, Thomaz Antonio Gonzaga, Gregório de Mattos,  Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varella, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Machado de Assis, Alberto de Oliveira, Raimundo Correa, Olavo Bilac, Eugênio de Castro, Guerra Junqueiro, Cruz e Souza. E é neste, o "poeta negro", que Cecília encontra “a serenidade diante dos mistérios”, o “Espírito Vitorioso. Instante de glória da tristeza humana, que vinha tentando encontrar uma definição para si mesma, tropeçando em pensamentos e sentimentos, através de caminhos demorados.” 

Dos oito candidatos inscritos no concurso, após a defesa da tese apenas Cecília e Clovis do Rego Monteiro continuaram participando das provas seguintes: escrita e prática. Embora Cecília tivesse obtido maior pontuação no conjunto das provas, foi classificada em segundo lugar. Conforme os critérios e notas da banca examinadora – Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983), Antenor Nascentes (1886 – 1972), Coelho Netto (1864 –1934) e Nestor Víctor (1868 – 1932) –, o aprovado foi Clovis do Rego Monteiro, advogado, filólogo, poeta e escritor, então professor do Colégio Pedro II, membro do Conselho Nacional de Ensino e defensor de ideias educacionais dos conservadores e católicos. Nesse concurso, Cecília foi preterida, veladamente, por causa das ideias inovadoras que defendia e provavelmente também por ser mulher e jovem, o que se repetiu em outras iniciativas suas naquela década. Em 1934, foi designada para a direção do recém-fundado Centro Infantil no Pavilhão Mourisco do Rio de Janeiro, onde criou a primeira biblioteca infantil do país, cujo acervo ela constituiu com base no seu largo conhecimento sobre livros para crianças e jovens e também nos inquéritos que vinha realizando, como o Inquérito de leituras infantis, publicado em 1931, pela Secretaria de Educação do Distrito Federal. A biblioteca, porém, foi fechada em outubro de 1937, pela polícia do Estado Novo, por ordem do Presidente da República Getúlio Vargas. O motivo alegado foi constarem do acervo livros “de conotações comunistas” e, como prova, indicaram Tom Sawyer, de Mark Twain, o que causou repercussão negativa nos Estados Unidos da América do Norte e também entre intelectuais brasileiros.  Em 1939, com seu livro Viagem, conquistou o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras (ABL) – concedido pela primeira vez a uma mulher –, o que também ocorreu após intensa polêmica entre os membros do júri, além das censuras a seu discurso na cerimônia de premiação.  

Continuou, no entanto, atuando intensivamente também na defesa da renovação educacional e da educação moderna, pública e laica. Assinou colunas jornalísticas combativas, como a “Página de Educação”, no Diário de Notícias, em que escreveu de 1930 a 1933, e depois em outros jornais. E foi uma das três mulheres signatárias do documento A reconstrução educacional no Brasil: Ao povo e ao governo: manifesto dos pioneiros da educação nova, de 1932, redigido por Fernando de Azevedo, e que, além dele e de Cecília, contou com assinaturas de: Armanda Álvaro Alberto, Noemy M. da Silveira, Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Dória, Anísio Spínola Teixeira, M. Bergström Lourenço Filho, Roquette Pinto, J. G. Frota Pessôa, Julio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mario Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Jr., J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Hermes Lima, Attilio Vivacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Edgar Sussekind de Mendonça, Garcia de Rezende, Nóbrega da Cunha, Paschoal Lemme e Raul Gomes. 

Seguiram-se outras inúmeras realizações e conquistas ininterruptas no amplo espectro de atuação de Cecília, até sua morte, em decorrência de câncer de estômago, em 1964. Colaborou como cronista em jornais, publicou livros de poemas, sobre folclore e o clássico Problemas da literatura infantil, participou de antologias estrangeiras, lecionou na Universidade do Distrito Federal, fez viagens e conferências internacionais, traduziu clássicos literários. Entre tantos prêmios e homenagens que recebeu, além do prêmio da ABL, em 1939, pelo livro Viagem, estão: título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Delhi (Índia), por suas traduções da obra de Rabindranath Tagore; Prêmio Jabuti – CBL – 1963,  de Tradução de obra literária pelo livro Poesia de Israel; Prêmio Jabuti de Poesia – CBL – 1964, pelo livro Solombra; e Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra, concedido em 1964 e entregue post mortem, em 1965. Sua obra continua sendo publicada, lida, traduzida em vários países da Europa, da Ásia e da América, com sucessivas reedições, e amplamente estudada, como atesta a extensa fortuna crítica disponível em livros, artigos, trabalhos acadêmicos, sites na Internet, destacando-se o excepcional trabalho de divulgação de sua vida e obra que vem sendo realizado por sua neta, a artista plástica Fernanda Meireles (Fernanda Correia Dias), que me presenteou com uma cópia de O espirito victorioso

O espírito vitorioso é um tratado poético, ele mesmo o melhor exemplo da conciliação de ciência e arte, educação e literatura, como a autora defendia. Profeticamente formulado pela jovem Cecília, esse espírito marcou a vida e a obra da mulher que nos legou uma fonte inesgotável de beleza e conhecimento, por meio de suas palavras escritas, o corpo de seu pensamento e sua arte, que provoca em cada leitor “o desejo comovido de tocar também com sua boca essa estranha bebida  e distinguir-lhe o duplo ressabio de eternidade e impermanência”. E, cada vez que a leio, sentindo o gosto dessa estranha bebida, sinto-me como o "desconhecido" a quem ela enviou esta mensagem: “Teu bom pensamento longínquo me emociona./Tu, que apenas me leste,/acreditaste em mim, e me entendeste/profundamente.//Isso me consola dos que me viram,/a quem mostrei toda a minha alma,/e continuaram ignorantes de tudo que sou,/como se nunca me tivessem encontrado.”

Maria Mortatti