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SÃO JOÃO E VINICIUS DE MORAES NO TEMPO DO QUANDO / MARIA MORTATTI

O dia é de João (“graça divina”), o Batista (sec. I a.C. – c.28-30 d.C.), que batizava os pagãos, pregava no deserto, anunciando a vinda de Jesus, denunciava o rei Herodes Antipas e a vida adúltera de sua cunhada Herodíades, que, por vingança, instruiu a filha, Salomé, a pedir ao rei a cabeça de João numa bandeja de prata, tornando-se ele, assim, o primeiro mártir da Igreja e o último dos profetas. Mas quem acendeu a fogueira de meu coração hoje foi Vinicius (“aquele que vem”) o de Moraes (19.10.1913 – 09.07.1980), poeta, dramaturgo, jornalista, diplomata, cantor e compositor brasileiro, que não era santo e amava as mulheres. 

Arrumando os livros nas estantes, todos rigorosamente organizados em ordem alfabética de sobrenome de autor, dentro de cada seção do acervo – por gênero, os de literatura; por assunto, os demais – lembrei-me do impasse biblioteconômico que me aflige, há décadas. Na seção mais preciosa, a de poesia, reencontro, ao lado de outros de Vinicius, o exemplar da quarta edição de Para uma menina com uma flor (Editora Sabiá, 1966), reunião de 55 crônicas publicadas em jornais, entre 1941 e 1966. Foi o presente que pedi a um namorado, no Natal de 1972. Veio acompanhado de uma rosa vermelha e, na folha de rosto, completando o título, sua dedicatória manuscrita: “E para você com muito amor. K.”. Essa declaração foi o melhor do presente. Confesso que, exceto o poema de abertura “A brusca poesia da mulher amada”, dedicado a Nelita, uma das sete mulheres do poeta, e a crônica que dá título ao livro, as demais não me empolgaram. O Vinicius que me emocionava era o poeta e letrista de tantas canções de amor e dor que eu ouvia e gostava de cantar e tocar ao violão. Até em meu caderninho de recordações daquela época, entre os de meus poetas preferidos, estão vários de seus sonetos e,na página de abertura, a letra de “Minha namorada” e de "Garota de Ipanema". Foi, então, por inconformada teimosia que deixei o livro por tanto tempo naquela seção de minha biblioteca?

Aquele amor, embora fosse muito, terminou-me depois de alguns anos. A dedicatória que ganhei persiste, fiel, no rosto da folha. Dentro do livro estão três pétalas desidratadas daquela rosa vermelha e suas marcas misteriosas em forma de coração decalcadas na página com a declaração de amor manuscrita, na de abertura com a dedicatória do poeta para a amada e na crônica “Aprendiz de poesia”. Sem mais impasses, portanto. O livro permanece na seção de poesia. Vinicius, o poeta, continua acendendo a fogueira de meu coração. São João, o profeta, continua anunciando a chegada da poesia para a mulher amada. De poeta e de santo todos têm um tanto. Eu, de tudo ao meu – último e eterno – amor continuo atenta, antes, sempre e com todo o zelo. “Outros que contem/passo a passo.//Eu morro ontem//Nasço amanhã/Ando onde há espaço:/–Meu tempo é quando.” 

 Maria Mortatti – 24.06.2023