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A ESPERA: DE HOMERO A LYGIA / MARIA MORTATTI

A espera é tema presente em grandes obras literárias ocidentais, desde o poema épico Odisseia, de Homero (928 a.C. – 898 a.C.), em que Penélope esperou por dez anos que seu marido, Ulisses, rei de Ítaca, retornasse da guerra de Troia. Enquanto esperava, fiel à esperança de seu retorno, ela adiou a imposição de se casar novamente, tecendo de dia e desmanchando à noite a mortalha que prometera a Laerte, seu sogro, como condição de, somente depois de concluí-la, desistir da espera. 

“Quatro esperas” é o título de um dos ensaios do livro O discurso e a cidade (Duas Cidades, 1993), de Antonio Candido, em que são analisados quatro clássicos literários cujo tema é a espera: o poema “À espera dos bárbaros”, do grego Konstantínos Kaváfis (1863 – 1933); o conto "A grande muralha da China", do boêmio/checo Franz Kafka (1883 – 1924); o romance O deserto dos tártaros, do italiano Dino Buzzati (1906 – 1972); e o romance O litoral das Sirtes, do francês Julien Gracq (1910 – 2007). Também clássicos são os do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1984), que explorou o tema na icônica peça Esperando Godot, e o do sul-africano J. M. Coetzee (1940 –  ), que, inspirado nos que o antecederam, escreveu o romance À espera dos bárbaros. Cada um a seu modo, esses seis escritores representam a espera como premonição de uma catástrofe. Os bárbaros, os nômades do Norte, a invasão estrangeira, as conspirações no mundo externo à fortaleza, a incerteza de um compromisso misterioso e improvável, um suposto movimento de sedição entre os bárbaros são as ameaças imaginárias presentes como vigilância constante a entreter e torturar com o absurdo nada a existência dos que esperam, por anos sem fim, uma razão de viver até a chegada da morte.

Também a brasileira Lygia Fagundes Telles (19.4.1918 – 3.4.2022) escreveu sobre a espera e do ponto de vista feminino. Poucos meses antes de sua morte, foi lançado em publicação digital (FLIMA; e-galaxia) seu conto “A espera” – até então inédito em livro –, escrito em 1981 e publicado em edição especial sobre a Grécia, na revista MS, que circulou por cerca de um ano. O conto é uma versão reescrita de outro conto seu, “Uma história de amor”, de 1965. Em “A espera”, a história se inicia com o retorno de Nikos à cidade grega de onde partira dez anos antes, sem coragem de se despedir da namorada, Margarida. Tinham vivido momentos de amor, fizeram planos para viajarem juntos, prepararam a ceia de véspera de Natal, ele saiu prometendo voltar dentro de minutos para irem juntos à Missa do Galo... Mas, somente depois de uma década de viagens pelo mar, aventuras e amores, ele retornou, hesitante e com remorso por tê-la deixado sem nenhum bilhete ao menos – “Acho que não presto, sou um desfibrado...”. Encontrou Margarida que o esperava, como se o tempo não tivesse passado: a mesa, a toalha, a ceia preparada para depois da Missa do Galo... Ao pedido dela para recomeçarem onde pararam – “aquela noite é esta. (...) é fácil enrolar o fio do tempo, como num novelo” –, Nikos respondeu que voltara apenas para dizer que não podia ficar, embora dissesse que a amava. Ele partiu novamente, e ela foi novamente sozinha à Missa do Galo... com a esperança que ele a estivesse esperando na igreja... 

Quando li o conto que esperara quatro décadas para ser resgatado e republicado, lembrei-me da espera de Penélope por Ulisses, que, na versão de Lygia, resulta numa triste história de amor entre Nikos, o homem “desfibrado”, que foge do amor com medo de perder a liberdade – mas não a alcança exatamente –, e Margarida, a mulher solitária que continua e continuará esperando por ele, como se o tempo não passasse. Duas protagonistas femininas separadas por quase 3.000 anos e unidas na espera como razão de viver: contra a ameaça da perda, fielmente tecem a esperança enquanto esperam. Penélope é recompensada com o retorno de Ulisses. Para Margarida, resta a solidão prenunciada na epígrafe do conto, extraída da Odisseia: "Irei, pois, deitar-me nesse meu leito ao qual tenho confiado tantos suspiros e que continuamente umedeço de lágrimas desde que Ulisses se foi."

Maria Mortatti