Pesquisar

“CARTAS PORTUGUESAS”, DE SÓROR MARIANA ALCOFORADO / MARIA MORTATTI

Epístola – do grego “epistolê” –, além do sentido comum de carta, é denominação dos escritos dos apóstolos no Novo Testamento e de um gênero literário conhecido na Antiguidade, desde o século II a.C., dirigido a amigo ou mecenas, tratando de assuntos variados, ou como as famosas cartas de Horácio, com conselhos sobre a arte da poesia. Esse gênero literário, endereçado a um destinatário real ou não, voltou a ser cultivado a partir do Renascimento e, com o desenvolvimento dos serviços de correios na Europa, expandiu-se especialmente na França e na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII, de que são modelares obras, como as de: Jean-Jacques Rousseau, Mary Shelley, Lord Byron, Montesquieu, Choderlos de Laclos e Johann Wolfgang von Goethe.

Cartas portuguesas, escritas há 354 anos, compõem também um romance epistolar. São cinco breves cartas de amor, cuja autoria é atribuída a Sóror Mariana Alcoforado (22.04.1640 – 28.07.1723), natural da cidade portuguesa de Beja. Com 11 anos de idade, sem vocação religiosa, foi obrigada pelo pai a ingressar no Convento de Nossa Senhora da Conceição naquela cidade, a fim de ficar protegida dos conflitos da Guerra da Restauração (1640 – 1668) e honrar o testamento materno que a nomeava freira desse convento. Como era comum entre freiras de famílias influentes, seu pai mandou construir dentro do convento uma casa para ela, acompanhada pela criadagem. Lá, permaneceu enclausurada até morrer, com 83 anos de idade. 

Escritas em francês – mas, afirmam estudiosos, com acentuados vestígios de sintaxe portuguesa, o que motivou a especulação de terem sido originalmente escritas nessa língua –, as cinco cartas foram publicadas em Paris, em 4.1.1669, com o título Lettres portugaises traduites en français, pelo então célebre livreiro e impressor Claude Barbin (1628 – 1698), sem que tivesse ficado claro como ele as obtivera. Em 1810, foram vertidas para o português pelo poeta Filinto Elisio, mas misturando as cartas autênticas com as apócrifas publicadas depois do sucesso estrondoso do lançamento da primeira edição nos salões parisienses, com várias edições seguintes. Os nomes do destinatário e do tradutor, Gilleragues, só foram incluídos na edição francesa de 1690. O nome e a existência de Mariana Alcoforado foram descobertos em 1888, provavelmente porque tinha sido de interesse da influente família Alcoforado o apagamento de tudo o que evocasse o escândalo da relação amorosa da jovem freira. As cartas de amor eram endereçadas a Noel-Bouton de Chamilly, conde de Saint-Léger, oficial francês que lutou em Portugal durante a Guerra da Restauração. Quando seu regimento chegou a Beja, estando Mariana à janela de Mértola – voltada para a entrada da cidade –, os olhares de ambos se cruzaram e imediatamente se apaixonaram. Ela, então com 20 anos de idade, deixou-se seduzir pelo oficial, que esteve secretamente em sua cela por várias noites seguidas, até serem descobertos. Com o escândalo, pretextando doença de um irmão, Chamilly partiu para a França, prometendo voltar para buscá-la, o que nunca aconteceu. Ela continuou esperando por ele e, durante a espera, escreveu as cinco cartas, entre 1666 e 1667, quando ela estava com 26 anos e ele, com 30 anos de idade.

Nas cartas, a enclausurada Mariana foi registrando, com ousadia incomum para as mulheres na época, a intimidade e a intensidade do amor e da dor de uma freira, entre esperança e incerteza até a constatação do abandono. “Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar?” “(...) não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor. Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; (...) E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida.” “Que felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida juntos!” “Escrevo mais para mim do que para ti; não procuro senão alívio.” Não tendo encontrado nas respostas dele nenhuma demonstração de amor ou interesse, Mariana se despede na última carta: “Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar.” (...) “Mas nada mais quero de ti. Sou uma doida em repisar sempre as mesmas coisas. É mister que o deixe e que não pense mais em ti. Creio até que já não voltarei a escrever-lhe. Não tenho obrigação de lhe dar contas do que passa em mim.” Mariana acabou superando a dor e a tristeza do amor não correspondido, dedicou-se às atividades do convento, tornou-se sóror e depois abadessa. 

As comoventes cartas de amor tiveram sucessivas edições em francês, foram vertidas para o inglês, além do português, foram precursoras do Romantismo e inspiraram poetas e escritores, como o austríaco Rainer M. Rilke e os franceses La Bruyère, Saint-Simon, Saint-Beuve. Entre as muitas controvérsias acerca da autoria, uma das mais representativas do silenciamento imposto à voz feminina é a apontada por Jean-Jacques Rousseau: por sua beleza, as cartas não poderiam ter sido escritas por uma mulher, senão por renomados escritores franceses ou portugueses. Como expressão da voz feminina na literatura, As cartas portuguesas evocam as cantigas de amor e amigo medievais e inspiraram importantes poetisas e escritoras posteriores, como Florbela Espanca, em Livro de Sóror Saudade (1923), e Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, em Novas Cartas Portuguesas (1972). Foram também inspirações para meu livro Breviário amoroso de Sóror Beatriz (2019). Independentemente das controvérsias sobre a autoria, três séculos depois da morte da freira apaixonada, as cartas continuam comovendo e inspirando leitores e escritores e imortalizando o nome de Sóror Mariana Alcoforado, a mulher que, contra "a honra e a religião”, ousou “amar perdidamente” e, para que “toda a gente o saiba”, criou um clássico da literatura epistolar.

Maria Mortatti – 28.07.2023