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SOBRE MAIAKÓVSKI, O POETA-OPERÁRIO E ISTO / MARIA MORTATTI

Em 2020, escolhi para ler para meus alunos “O poeta-operário” (1918) e “Sobre isto” (1923), dois poemas do russo Vladimir Maiakóvski, poeta, artista plástico, dramaturgo, ator,  nascido em 19.07.1893 e suicidado, com 39 anos de idade, em 14.04.1930, noventa anos antes daquela aula. Foi tudo o que informei – como de costume – para que os alunos pudessem ouvir e sentir a poesia, apenas. Li e reli o primeiro poema, enfatizando os versos de que mais gosto sobre a defesa do trabalho dos poetas: “Talvez/ninguém como nós/ponha tanto coração/no trabalho/Eu sou uma fábrica.”; “Pescamos gente viva”; “Nós polimos as almas/com a lixa do verso.”; “Quem vale mais:/o poeta ou o técnico/que produz comodidades?/Ambos.” Mal terminei, uma aluna que ouvira atentamente, não se conteve: "Fiquei emocionada com as palavras do poeta. Também sou ‘chão de fábrica’, e consegui visualizar exatamente o que ele quis dizer em sua poesia (...) às vezes se torna tão chocante o encontro da imaginação com a realidade." Também emocionada, comentei que ela tinha sentido, pela poesia, muito sobre a obra de Maiakóvski e do contexto político e social em que ele viveu, militou e escreveu. 

É um dos maiores poetas do século XX, conhecido como “Poeta da Revolução”. Desde os 15 anos de idade, engajou-se no movimento bolchevique, foi preso algumas vezes, ingressou na Escola de Artes de Moscou, foi cofundador do cubofuturismo, movimento artístico de vanguarda, aliando o cubismo e o futurismo ocidentais com as formas de arte populares da Rússia. Depois da Revolução Russa de 1917 – que derrubou a monarquia, instituiu o regime socialista, levando ao poder o Partido Bolchevique, com a liderança de Vladimir Lênin, e originando a União Soviética (extinta em 1991) –, Maiakóvski colaborou com a construção do novo regime: criou poemas e cartazes de propaganda, escreveu peças de teatro, fundou, em 1923, a revista LEF (Liévi Front), que reuniu escritores e artistas que pretendiam aliar a forma revolucionária a um conteúdo de renovação social. Fez viagens dentro e para fora de seu país, lendo seus poemas, apresentando suas peças e divulgando a arte do novo regime, conforme seu lema: “Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”. Na vida, na militância e na arte, era obcecado pelo futuro, cuja chegada os poetas deviam acelerar, e tinha “um incêndio no coração”: “Comigo a anatomia ficou louca, sou todo coração”. Suas posições apaixonadas e vanguardistas causaram embates entre sentimentos pessoais e fórmulas artísticas e literárias simplistas e realistas impostas pelo Partido, que o acusava de fazer arte "incompreensível para as massas". Para não se submeter à censura oficial, alguns meses após lançar o poema "A plenos pulmões", cometeu suicídio, com um tiro no coração, ou foi suicidado, conforme “piada” bolchevique. Deixou um bilhete: “(...) De minha morte não acusem ninguém, por favor, não façam fofocas. O defunto odiava isso. (...), o barco do amor partiu-se na rotina./Acertei as contas com a vida (...) Felicidade para quem fica.”

Poeta de várias faces, conseguiu conciliar poesia engajada e espírito criativo. Além da poesia mais militante, como “O poeta-operário” (1918), de devoção ao Partido, escreveu poemas líricos, críticos e satíricos, peças de teatro, ensaios sobre a arte poética, artigos para imprensa, roteiros de cinema. O poema “Sobre isto”, que ele considerava sua obra-prima, é um dos mais conhecidos e também um de meus preferidos. Dedicado a sua amada e musa, Lilia Brik (1891 – 1978), seus 1.813 versos foram escritos entre dezembro de 1922 e fevereiro de 1923, quando estiveram separados. Como informa a tradutora Letícia Mei, "Sobre isto" ("Pro Eto", no original russo) quer dizer “Sobre amor”. A substituição de “amor” por “isto” era uma crítica do poeta à censura bolchevique aos “temas de cunho pessoal”. Alguns trechos do poema são hoje bem conhecidos, como estes: “Século XX?/Quem ressuscitar?/– Tem o Maiakóvski aqui.../Procuremos alguém mais brilhante –/O poeta não é belo o bastante–/Eu gritarei/daqui mesmo/da página atual:/ Não vires a página!/Ressuscita-me//(...) O século trinta/superará o bando/de bagatelas que dilaceram o coração/(...) Ressuscita-me/nem que seja/porque/sou poeta/e te esperava,/recusando o absurdo usual.// (...) Para que/a família/seja,/após essa era que se encerra,/o pai,/no mínimo o Mundo,/a mãe,/no mínimo a Terra.”

Maiakóvski influenciou a poesia russa e movimentos de vanguardas artísticas no início do século XX, na Europa e também no Brasil, onde – além de uma menção de Mário de Andrade em 1924 e uma conferência de Carlos Burlamaqui Kopke, de 1946 – pouco se divulgou e se escreveu sobre ele até os anos 1960, com traduções de antologia de poemas por Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos, seguidas da de Emilio Guerra. Em 1981, sua peça O percevejo foi traduzida e encenada por Luís Antônio Martinez Correa, e Caetano Veloso e Ney Costa Santos compuseram a canção O amor, com versos de “Sobre isto”; em 1992, trecho do poema foi incluído em gravação do cantor e compositor João Bosco.

“Não vira a página!”, exclamaram os alunos, quando terminei a leitura naquele dia. Ouviram e sentiram, emocionados, o chamado de Maiakóvski. O contexto revolucionário soviético passou. Mas o poeta e seus poemas continuam atuais, assim como o amor, sentimento universal que ressuscita em cada página da história de cada um e de todos nós, humanos. Como faço neste texto, relembrando os 130 anos de seu nascimento e o centenário de “Sobre isto”: “Ressuscita-me! (...) porque sou poeta/e te esperava.” 

Maria Mortatti