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EMILIA FERREIRO E A REVOLUÇÃO CONCEITUAL NA ALFABETIZAÇÃO / MARIA MORTATTI

Emilia Ferreiro (Buenos Aires, 05.05.1937 – Cidade do México, 26.08.2023) marcou decisivamente a história da alfabetização no Brasil, na América Latina e em países europeus. Desde os anos 1980, não se pode mais pensar sobre alfabetização, de modo rigoroso, sem considerar as contribuições dessa psicóloga e psicolinguista, cujas opções políticas e teóricas a obrigaram a vários deslocamentos, até sua vinculação, a partir de 1979, como pesquisadora e professora, ao Centro de Investigações e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México. 

Em 1962, licenciou-se em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e, em 1970, obteve o título de Doutor (PhD) pela Universidade de Genebra, na Suíça, sob a orientação do epistemólogo suíço Jean Piaget (1896 – 1980), com quem depois trabalhou como pesquisadora-assistente. Retornando a Buenos Aires, em 1971, publicou o livro Les relations temporelles dans le langage de l'enfant, com prefácio de Piaget, resultante da tese de doutorado, e iniciou pesquisas experimentais com crianças sobre aquisição da linguagem escrita, com a colaboração de Ana Teberosky ( – 2023) e muitos outros pesquisadores, como Ana Maria Kaufman, Delia Lerner, Alicia Lenzi. Depois de um período afastada da UBA e intercalando períodos de trabalho na Universidade de Montevidéu, Uruguai, com seu marido, o físico e epistemólogo Rolando García, após o golpe de Estado na Argentina de 1976, exilaram-se na Suíça. Ferreiro chegou a trabalhar na Universidade de Genebra, mas por dificuldades de permanência, em 1979 se mudaram para o México, onde passaram a morar e trabalhar. Ferreiro continuou desenvolvendo suas pesquisas sobre as dificuldades das crianças na aprendizagem da linguagem escrita e ampliando o grupo de pesquisadores envolvidos na Argentina, no Brasil, no México, na Venezuela e em países europeus, passando a publicar os resultados dessas pesquisas, em livros, capítulos e artigos. Em 1979, foi publicado no México o livro Los Sistemas de Escritura em el Desarrollo del Ninõ, com Ana Teberosky, que marca o início de publicações regulares de Ferreiro em vários idiomas, além do espanhol: português, inglês, italiano, francês. Entre suas principais publicações, estão: Nuevas Perspectivas Sobre los Procesos de Lectura y Escritura (1982), com Margarida Gómez Palácio, La alfabetización em proceso (1985), Los hijos del analfabetismo (Propuestas para la alfabetizacíon escolar em América Latina) (1989), Reflexões sobre alfabetização (1985), entre muitos outros. Recebeu vários títulos e homenagens na Argentina, Grécia e no Brasil, com destaque para a Ordem Nacional do Mérito Educativo, do governo brasileiro, em 2003.  

Los sistemas de escritura em el desarrollo del ninõ foi traduzido no Brasil, em 1985, com o título Psicogênese da língua escrita, pela Artmed, com várias edições até os dias atuais, como ocorreu com outros textos seus. Além da participação de Ferreiro em eventos ao vivo – chegando a lotar estádio de futebol – e por teleconferência, de colaboração com grupos de pesquisa e pesquisadores brasileiros, esse livro contribuiu para a proposição, divulgação e popularização entre nós do nome da pesquisadora – chamada por muitos de Emilia, apenas – dos resultados de suas pesquisas e da teoria que ficou conhecida como “construtivismo”. Movida pela necessidade de buscar as causas do fracasso das crianças (pobres, especialmente) em aprender a ler e escrever e se opondo ao que se pensava e se praticava até então a respeito da alfabetização, Ferreiro propôs o deslocamento do eixo das reflexões “adultocêntricas” sobre "como se ensina a ler e escrever" para o "como se aprende a lecto-escrita", centrando na criança, como sujeito ativo, o processo de construção do conhecimento sobre a leitura e a escrita, que "segue uma linha de evolução surpreendentemente regular, através de diversos meios culturais, de diversas situações educativas e de diversas línguas", numa relação direta entre ontogênese e filogênese”, caracterizando o que denominou "revolução conceitual". 

Em contexto histórico de reorganização da educação brasileira, decorrente da abertura política pós-ditadura militar (1964 – 1985), além de muitas outras iniciativas importantes, como programas de leitura e do livro didático, sua teoria e suas reflexões pioneiras impactaram positiva e definitivamente discursos, estudos, pesquisas, práticas e políticas públicas de alfabetização, no que denomino de "quarto momento crucial" na história da alfabetização no Brasil, ainda em curso. Embora não tenha sido a única proposição teórica relativamente à alfabetização apresentada nas últimas décadas, o "construtivismo" se tornou hegemônico e permanece atuante até os dias de hoje, incorporado a modos de pensar e fazer a alfabetização, é objeto de inúmeras pesquisas acadêmicas, fundamento de políticas públicas e programas governamentais, e, mesmo para os de novas gerações de educadores e estudantes que possivelmente nunca tenham lido seus livros e artigos, diretamente, mas têm acesso a alguns de seus textos e vídeos na Internet, conhecem bem palavras de Ferreiro, como estas: “Em alguns momentos da história faz falta uma revolução conceitual. Acreditamos ter chegado o momento de fazê-la a respeito da alfabetização.” “A minha contribuição foi encontrar uma explicação segundo a qual, por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa”.

Maria Mortatti – 26.08.2023