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AS INVENÇÕES MÍ(S)TICAS DE JORGE DE LIMA / MARIA MORTATTI

Invenção de Orfeu é o coroamento da obra imensa em extensão, profundidade, simplicidade, complexidade, mutabilidade, multiplicidade de Jorge de Lima (União dos Palmares/AL, 23.04.1893 – Rio de Janeiro/DF, 15.11.1953). Homem de muitas facetas, foi poeta, romancista, ensaísta, biógrafo, médico – cujo consultório na Cinelândia, na cidade do Rio de Janeiro, funcionava como ateliê e local de reunião de artistas e intelectuais –, artista plástico, professor de história natural e literatura brasileira, político. Tornou-se conhecido e popular como escritor: em 1921, foi eleito “Príncipe dos poetas alagoanos”; em 1940, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (ABL); e seus poemas foram traduzidos para outros idiomas, como inglês, espanhol, francês. Foi candidato cinco vezes, sem êxito, a uma cadeira na ABL e indicado pela Academia Sueca para o Nobel de Literatura de 1958, que não pôde receber, pois faleceu cinco anos antes da premiação. Em 2020, foi homenageado com uma estátua exposta na praça em frente à casa onde nasceu e atualmente é sede da Academia Alagoana de Letras.

Sua obra literária é marcada por itinerário multifacetado e capacidade de se renovar, com diferentes temas, formas e estilos literários: parnasiano, desde o primeiro poema, "O acendedor de lampiões", que escreveu com 14 anos de idade, depois modernista, com marcas regionalistas nordestinas e valorização da cultura afro-brasileira, religioso, cristão, bíblico, místico, surrealista. A complexidade desse itinerário está sintetizada em seu projeto literário mais amplo e ambicioso: Invenção de Orfeu – biografia épica, biografia total e não, uma simples descrição de viagem, ou de aventuras. biografia com sondagens; relativo, absoluto e uno, mesmo o maior canto é denominado – biografia, que foi publicado em 1952, pela editora Livros de Portugal (RJ). Nesse poema épico-lírico-dramático, composto de 10 cantos e quase 11 mil versos, com várias formas poéticas e em prosa, reinventando o mito grego de Orfeu como metáfora para a criação do poeta – um visionário – em busca da poesia – a utopia da “ilha” –, Jorge de Lima funde sonho, mito e literatura, dialogando com a tradição poética clássica e moderna, por meio de referências diretas ou indiretas a Homero, Virgílio, John Milton, Dante Alighieri, Camões, Lautréamont, Arthur Rimbaud, T.S. Eliot, Ezra Pound, entre outros. O poema foi elogiado e aclamado por críticos literários e escritores, como Murilo Mendes – amigo dileto do poeta, primeiro leitor de Invenção de Orfeu e a quem é dedicado o livro, além de outros poemas – Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Tristão de Ataíde, Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, e também foi criticado por alguns ou esquecido por outros. Mas Jorge de Lima continua desafiando leitores e estudiosos, como prenunciava o crítico português João Gaspar Simões, no ensaio introdutório da primeira edição do livro, ou o escritor Antonio Olinto, membro da ABL, quando escreveu, em 1998, sobre o “caso Jorge de Lima” e os motivos de ter sido recusado pela Academia, apesar ser “o que mais longe foi em nossa terra na feitura do verso e no uso da poesia como expressão de um povo e de uma nação.” Sua obra é também referência direta ou indireta, principalmente para estudantes, como “integrante da segunda geração do modernismo” ou pelas adaptações de seu poema “O grande circo místico” – do livro Túnica inconsútil (1938) –, no qual o poeta narra a saga da família austríaca do grande circo Knieps, no início do século XX. O poema foi roteirizado para o espetáculo O Grande Circo Místico, do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba/PR, em 1983, com música de Chico Buarque e Edu Lobo, e esteve em turnê durante dois anos, com audiência de mais de 200 mil pessoas, no Brasil e em Lisboa; em 2018, foi lançado o filme inspirado no poema e dirigido pelo brasileiro Cacá Diegues.  

Essas e tantas outras invenções míticas e místicas de Jorge de Lima também fazem parte de minha formação literária. Em 1976, comprei, na Livraria Brasiliense, na cidade de São Paulo, os quatro volumes – em brochura costurada, 12,5 x 20 cm, cada um por Cr$ 15,00 – de suas poesias completas, publicadas em 1974, pela J. Aguilar e Instituto Nacional do Livro/MEC, na coleção Biblioteca Manancial. O papel Buffon está amarelado e algumas páginas mostram as marcas de minhas leituras, mas continuam me convidando a releituras e reflexões, especialmente Invenção de Orfeu, essa túnica inconsútil a envolver o mistério e o enigma da obra do poeta nascido há 130 anos e falecido há 70 anos, que tinha “fome universal”, ansiava pela eternidade e, no livro Anunciação e encontro de Mira-Celi, assim anuncia a dimensão transfiguradora da poesia: 

Nós os poetas, dentro da morte e libertados pela morte,
somos os grandes alquimistas, os únicos achadores da pedra filosofal,
porque nos transformamos a nós próprios
em périplos verdadeiros e imperecíveis.

Maria Mortatti – 22.09.2023