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NOS BRAÇOS DE DRUMMOND, EM ESTADO DE POESIA / MARIA MORTATTI

Dizem que a poesia salva e a memória falha. Mas há dias em que a poesia – insensível – me falha e o que me salva é a memória da poesia que me salvou naqueles dias e deles ficou como única prova – tangível – de sua existência. E há outros – tão sentimentais – em que até as escamas da sopa esfriando no prato são encobertas pelo cartaz amarelo na consciência: “neste país é proibido sonhar”. Assim aprendi com Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902 – 17.08.1987), quando o vi pela primeira vez e nele toquei na estante da Biblioteca Pública Municipal "Mário de Andrade" de Araraquara. Desde então, quando, enclausurada nos sombrios enigmas da quadrilha, procuro a palavra que falta num verso que inunda minha vida inteira, mas a pena não quer escrever, lembro-me de nossos primeiros encontros delicadamente registrados no caderninho – secreto – da menina de 17 anos. Foi assim que, tempos atrás, por alguma magia na noite cega – consegui penetrar surdamente por uma fresta no reino das palavras. Lá reencontrei em estado de dicionário cada letra da palavra que nomeia a falta e a esperança, perdi-me entre os infinitos poemas que estão por ser escritos, até que, vencida pela fadiga das retinas, repousei a cabeça sobre a pedra e adormeci no caminho. Outubro chegava ao fim, quando me despertou um anjo torto com outro cartaz amarelo: neste país não é proibido sonhar. Levantei-me apressada. Era aniversário do poeta: 121 anos! Quase tropecei nas palavras, ainda impregnadas de sono. De mãos dadas, seguimos o dia. Sobre o tapete ou duro piso, compusemos com urgência a úmida trama. Um caso pluvioso! Para repousar, fomos à cama. Onde cabe todo o sentimento do mundo e o amor – ah, o amor! –, esse privilégio dos maduros, que começa tarde e se aprende depois de arquivar toda a ciência. A lua e o conhaque nos botaram comovidos como o diabo. Aconchegada em seus braços, em puro estado de poesia, sonhei que cantávamos o medo, respirando papel na noite do quarto. Acordei sozinha no escuro. Por que me abandonaste? E agora, José? Sem rima, a solução: chegara o tempo em que a vida é uma ordem. É preciso terminar o texto. Mesmo sabendo que tenho apenas duas mãos e meus ombros mal conseguem suportar o mundo, ainda que mal me exprima. Se procurar bem, acabo encontrando, não a explicação (duvidosa) da partida inesperada – Por quê? Por quê? Por quê? –, mas a poesia (inexplicável) dos tempos felizes. Mesmo sabendo que amar um passarinho é coisa louca e o canto é sua essência, se não há falta na ausência, se de tudo fica um pouco, por que não ficaria muito de nós em nós? Se amar se aprende amando e, tal uma lâmina, atravessamo-nos, fecundamo-nos e renascemos em cada novo cio, compondo em sete mil cantos as sete mil faces do amor, depois que as coisas tangíveis se tornaram insensíveis à palma da mão, ficamos nós em nós. Em estado de poesia nos habitamos: “Além do amor, não há nada,/amar é o sumo da vida.//São mitos do calendário/tanto o ontem como o agora/e o teu aniversário/é um nascer toda hora.//E nosso amor, que brotou/ do tempo, não tem idade/ pois só quem ama escutou/o apelo da eternidade.”

Maria Mortatti – 31.10.2023 (Dia de Drummond - Dia Nacional da Poesia)

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Obs.: Cito, sem aspas e com licença poética, versos de vários poemas de Drummond.