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CÉCILE SAUVAGE, A "POETISA DA MATERNIDADE" E DO EROTISMO MÍSTICO / MARIA MORTATTI

Recentemente conheci a poetisa francesa Cécile Sauvage (20.07.1883 –16.08.1927), por meio do comentário de um amigo sobre meus livros de poemas, que o fizeram evocar o erotismo místico da “poetisa da maternidade”, epíteto com que ela ficou conhecida em seu país, conforme retratada pelo escritor Henri Pourrat (1887 – 1959), no romance La Veillée de Novembre (A vígília de novembro), a ela dedicado. Relativamente pouco conhecida nas décadas inicias do século XX e muitas vezes lembrada apenas como mãe do renomado compositor Olivier Messiaen, Cécile Sauvage deixou um importante legado poético, que vem sendo redescoberto com o crescente interesse pela literatura de autoria feminina do século XX. Foi elogiada pela escritora e filósofa feminista Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1949). Mais recentemente, a poeta e pesquisadora francesa Béatrice Marchal recuperou e transcreveu os manuscritos perdidos de poemas de amor de Sauvage, sua poesia foi traduzida na Inglaterra por Emily Vogel e Daria Chernysheva, e, na Itália, por Elena Bugin. Em sites da Internet, estão disponíveis alguns poemas em francês e traduções em inglês, além de algumas informações sobre sua vida e obra, que reúno neste texto. 

Nascida na cidade de La Roche-sur-Yon (Vendée), Cécile Sauvage se mudou com a família, em 1888, para a cidade de Digne-les-Bains, região da Provença, onde cursou o Liceu e, com 20 anos de idade, escreveu o longo poema Les Trois Muses (As três musas). Seu pai, Prosper Sauvage, professor de História, que a encorajava nas atividades literárias, enviou o manuscrito ao poeta francês de língua occitana, Frédéric Mistral (1830 – 1914), que, por sua vez, incentivou a poetisa a enviá-lo para a Revue forézienne, de Saint-Étienne, cujo editor era Pierre Messiaen, professor de língua inglesa e conhecido por sua tradução crítica da obra de Shakespeare. O editor ficou impressionado com o poema, iniciou-se correspondência amorosa entre eles, casaram-se em 1907 e tiveram dois filhos Olivier Messiaen (1908 – 1992), que se tornou compositor, e Alain Messiaen (1912 – 1990), que se tornou poeta. Em 1909, Cécile Sauvage se apaixonou por Jean de Gourmont, irmão de Rémy de Gourmont, editor e fundador da revista Mercure de France, de Paris, em que também foram publicados poemas de Sauvage. Em 1910, Pierre Messiaen foi transferido para uma escola em Ambert, na Auvergne, onde moraram até 1913. Ela viveu por muito tempo na cidade de Saint-Étienne, onde escrevia diariamente e conheceu a obra de poetas ingleses. Quando Pierre foi para o front durante a Primeira Guerra mundial, a poetisa morou com os filhos no apartamento de seu irmão, na cidade de Grenoble, onde havia um piano e Olivier Messiaen se descobriu músico. Depois, a família se instalou em Paris e lá a poetisa morreu de tuberculose com 44 anos de idade. 

Cécile Sauvage publicou, em vida, apenas dois volumes de poemas, ambos pela editora Mercure de France: Tandis que la terre tourne (Enquanto a terra gira), de 1910 – em que se encontra L’Âme en bourgeon (Alma em botão), seu mais conhecido conjunto de poemas que tratam da maternidade e foram escritos durante a gravidez do primeiro filho, Olivier Messiaen; e Le Vallon (O Vale), de 1913 – em que se encontra outro conjunto de poemas sobre a maternidade, mas em tom mais melancólico e evocando a paisagem de Auvergne e a fauna e flora da Provença. Postumamente, sua obra foi reunida por Pierre Messiaen e publicada no volume Les Œuvres de Cécile Sauvage (Obras completas de Cécile Sauvage), de 1929, no qual constam: poemas sobre outros assuntos, como os primeiros com um tom pastoral – que, para alguns estudiosos, lembram os do poeta francês Francis Jammes (1868 – 1938) –; o conjunto de poemas Primevère (Prímula); trechos de poema dramático, de cartas e de escritos pessoais. Também foram publicadas postumamente, com edição e apresentação de Pierre Messiaen, a coletânea de ensaios sobre ela, Cécile Sauvage: Études et souvenirs (Cécile Sauvage: estudos e lembranças), de 1929, e uma coletânea com trechos de Lettres à Pierre Messiaen (Cartas a Pierre Messiaen), de 1930. Há, ainda, outros documentos nos arquivos de Olivier Messiaen e Yvonne Loriod-Messiaen preservados na Bibliothéque Nationale de France. Em 2009, Béatrice Marchal publicou o livro Écrits d’amour (Escritos de amor) (Paris: Éditions du Cerf), com manuscritos inéditos, entre os quais os poemas de amor dedicados a Jean de Gourmont, como "L’Étreinte mystique" ("O abraço místico"), "Prière" ("Prece"), and "L’Aile et la rose" ('A asa e a rosa"). 

O erotismo místico pode ser observado neste trecho de poema de Écrits d’amour: “Oh! où es-tu mon amour, j'ai soif de ta caresse, / Je te cherche dans l'air autour de moi, je presse / Ton fantôme en mes bras, tu tombes sur mon coeur, / J'ai dans mes bras le poids de ton corps, sa chaleur, / Je sens fléchir ta taille et ta tête s'incline. / La chaleur de ta bouche enfièvre mon visage, / Je vais te respirer, te boire... et tout s'efface. /Hélas! n'es-tu pas là? Mes pauvres bras sont vides...” ("Oh! onde está você meu amor, tenho sede de seu carinho, / Procuro você no ar ao meu redor, pressiono / Seu fantasma em meus braços, você cai no meu coração, / Tenho em meus braços o peso do seu corpo, seu calor, / Sinto sua cintura flexionar e sua cabeça inclinar. / O calor da sua boca deixa meu rosto febril, / Vou respirar você, beber você... e tudo desaparecerá. / Infelizmente! você não está aí? Meus pobres braços estão vazios...”) (Tradução minha) 

Alguns dos poemas de L’Âme en bourgeon, foram musicados por Claude Debos e Olivier Messiaen, que destacava a importância, para sua carreira musical, da “profecia” da mãe e do “ambiente feérico” em que ela criou seus filhos. Eis um trecho do poema “La Tête” (“A cabeça”), de “L’Âme de bourgeon”: "Ô mon fils, je tiendrai ta tête dans ma main, /Je dirai : j’ai pétri ce petit monde humain ; / tous ce front dont la courbe est une aurore étroite / J’ai logé l’univers rajeuni qui miroite /Et qui lave d’azur les chagrins pluvieux. /Je dirai : j’ai donné cette flamme à ces yeux, / J’ai tiré du sourire ambigu de la lune,” ("Ó meu filho, vou segurar sua cabeça em minhas mãos, /Direi: fui eu quem moldou este pequeno mundo humano; / Sob esta frente cuja curva é uma estreita madrugada / Eu abriguei o universo rejuvenescido que brilha / E que lava as tristezas chuvosas com o azul. /Direi: dei essa chama a esses olhos, / Tirei do sorriso ambíguo da lua,”) (Tradução minha)

Estudiosos da obra de Sauvage destacam como principais características as alegrias da maternidade e a simplicidade da natureza – para alguns inspirada na poesia da cantora e poeta francesa Marceline Desbordes-Valmore (1786 –1859), a única mulher entre os “poetas malditos” do Romantismo francês, como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Lautréamont. Mais recentemente, com a descoberta de seus poemas de erotismo místico dedicados ao amante,  foi também considerada “poetisa do amor”, evocando a obra de dois religiosos espanhóis: a freira e poeta Santa Teresa d' Ávila (28.03.1515 – 04.10.1582) e o sacerdote, místico e poeta San Juan de la Cruz (1542 – 14.12.1591). Para outros, ainda, e também para Olivier Messiaen, confidente da mãe, a coletânea póstuma organizada por Pierre Messiaen contém alterações nas dedicatórias e nomes, por exemplo, para ocultar o amor adúltero de sua esposa. Há ainda os que afirmam não haver evidências suficientes de inspirações de outros poetas em sua obra, até porque Sauvage preferiu “escrever em silêncio” em sua “mesinha branca manchada de tinta”, distanciada do mundo literário, apesar da insistência da família para que ela participasse de prêmios literários.

Conhecendo um pouco mais sobre a vida de Cécile Sauvage e a surpreendente contemporaneidade e universalidade da obra que produziu no início do século XX, especialmente os escritos de amor marcados pelo erotismo místico – transgressor para os padrões morais de comportamento feminino de sua época –, é possível entender por que ficou silenciada por muitas décadas e somente passou a ser novamente apreciada quando condições objetivas propiciaram avanços nas lutas em defesa dos direitos das mulheres, também à voz na literatura. À sua gradativa redescoberta cabe a analogia/profecia de seus versos na coletânea Melancolie: "Souvent le cœur qu’on croyait mort / N’est qu’un animal endormi ; / Un air qui souffle un peu plus fort  / Va le réveiller à demi ; /Un rameau tombant de sa branche / Le fait bondir sur ses jarrets / Et, brillante, il voit sur les prés / Lui sourire la lune blanche." ("Muitas vezes o coração que pensávamos estar morto / É apenas um animal adormecido; / Um ar que sopra um pouco mais forte / Vai meio que acordá-lo; / Um ramo caindo do galho / Fazendo-o pular de joelhos / E, brilhante, ele vê sobre os prados / A lua branca a lhe sorrir.") (Tradução minha)

Maria Mortatti – 13.03.2024