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UMA CAIXA DE JOIAS LITERÁRIAS CHINESAS / MARIA MORTATTI

Bibliotecas pessoais, mais do que coleção de livros, guardam caixas de joias literárias garimpadas, escolhidas a dedo. Assim penso cada vez que alguma delas – sem motivo aparente – brilha na estante, entre centenas de outras, oferecendo-se à releitura. Assim aconteceu com a lombada verde-jade e o título branco-pérola de A caixa de joias da cortesã – volume II, coletânea de contos das dinastias chinesas Song (960-1279) e Ming (1368-1644), editado e impresso em Pequim, por Edições em Línguas Estrangeiras, em 1987, e distribuído por Corporação Chinesa para o Comércio Internacional de Livros. 

O volume, com seis ilustrações em bico de pena, contém cinco contos – “O chapéu de feltra esfarrapado”; “A caixa de joias da cortesã”; “O vendedor de óleo e a cortesã”; “O velho jardineiro”; “A vingança de um homem justo” –, selecionados entre mais de duzentas histórias populares chinesas do século X ao XVII, inicialmente manuscritos de contadores de histórias, em linguagem popular, que se desenvolveram como gênero literário e foram publicados em coleções no começo do século XVII. Não há indicação do nome do tradutor para o português, mas pode-se presumir que seja ou uma tradução brasileira “anônima” ou mais provavelmente tradução direta de algum entre os que, como Gladys Yang, Yang Xianyi e Sidney Shapiro, traduziram para o inglês muitas obras da literatura chinesa clássica e moderna, integrando as publicações da Edições em Línguas Estrangeiras, fundada em 1952 e com milhares de publicações, em dezenas de idiomas, sobre assuntos diversos e também material didático para estudantes estrangeiros na China. 

No conto que dá título ao volume se encontra uma narrativa entremeada de alguns versos em tom de comentário, na qual é contada a história de amor protagonizada por Décima, a mais linda cortesã da casa da velha senhora e a mais cobiçada pelos homens. Li, filho de alto funcionário imperial e estudante do Colégio Imperial de Pequim, para usufruir da companhia de Décima, gastou todo o dinheiro que o pai lhe dava. Tornaram-se amantes, juraram amor eterno e, apesar das suspensão dos pagamentos e ordens do pai para que ele retornasse, decidiram libertá-la da casa e da condição de cortesã para se casarem. Depois de muitas dificuldades para Li conseguir o dinheiro e as duras condições impostas pela velha senhora para libertá-la, Décima ganhou de uma cortesã uma caixa com a recomendação de somente abri-la em caso de necessidade e o casal partiu em viagem, sem saber ao certo aonde ir sem dinheiro, temendo voltar à casa do pai dele, depois de ter gastado e com uma cortesã o dinheiro que o pai lhe dera e ainda querer se casar com ela. Durante a viagem, Li encontrou o astuto jovem Sun, aceitou seu convite para beber, contou a ele sua história, ouviu seus conselhos e se convenceu a vender Décima para Sun, pois, assim, Li poderia voltar para a casa do pai com dinheiro e sem ofender a família com uma esposa cortesã. Quando Li conta a Décima sua decisão, sentindo-se traída e abandonada pelo homem que lhe jurara amor eterno, aparentemente aceitou ser vendida, enfeitou-se, perfumou-se e abriu a caixa que havia ganhado na partida. Foi abrindo gavetas de dentro da caixa, cada uma com muitas pedras preciosas, flautas de jade e peças de ouro, jogando-as no rio. Chorando de remorso, Li tentava impedi-la, sem sucesso. Depois de contar, em voz alta para as pessoas que se juntaram ao redor do barco, sua história e a traição de Li que a abandonou no meio do caminho, Décima agarrou o cofre, saltou no rio e nunca mais foi encontrada. Li enlouqueceu e Sun, sentindo-se perseguido pelo fantasma de Décima, adoeceu e definhou até morrer. A narrativa termina com estes versos: “Aqueles que nunca amaram devem ficar silenciosos;/ Não é fácil saber quanto vale o amor;/ E ninguém a não ser os que dão valor à constância/ Merece o nome de amante nesta terra”.

O enredo se passa em 1592, no contexto da invasão da Coreia pelo general japonês Hideoshy, no período Wan Li, quando o imperador concordou com o novo sistema de vantagens para os que tinham dinheiro, como facilidades nos estudos dos filhos de funcionários para adquirirem lugar no Colégio Imperial. Passados mais de quatro séculos e em contexto social e geográfico bastante diverso, essa história ainda encanta de diferentes pontos de vista; a mim, pelo realismo lírico com que são representadas as relações de poder e amorosas, especialmente a condição das mulheres. E o reencontro e a releitura dessa caixa de joias chinesas – que garimpei, escolhi a dedo e comprei por US$ 2,50, no dia 16 de maio de 1990, não lembro onde... –  fez-me pensar que a leitura é também um espécie de amor; não é fácil saber quanto valem joias literárias e somente os que lhes dão valor merecem o nome de amantes da literatura...

Maria Mortatti