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NÃO TRAGO NADA, NADA MAIS QUE A MINHA POESIA / JOÃO SCORTECCI

Já pratiquei heteronímia. Aqui confesso, sem medo ou vergonha. Deixei de ser réu primário ainda na adolescência e já tenho – quase – 70 anos. Eu o matei sem dó. Foi no braço. O moço – bem mais jovem do que eu – andava chato, fazendo muitas perguntas, tirando o meu sono, querendo atenção além da conta. Um literato intruso. Eu então – numa manhã de sol escaldante – esfolei-o vivo. Bati sem dó. Heterônimos nunca mais! Ele se chamava Ricardo Porto. Era popular nas redes sociais, tinha perfil, e-mails e até biografia. Os heterônimos literários constituem uma personalidade: conjunto complexo e único de características psicológicas que definem como uma pessoa pensa, sente e age, influenciando sua individualidade e as interações com o mundo. Antes de matá-lo – indeciso, talvez – escrevi para o Fernando Pessoa e perguntei sobre sua relação íntima com o Álvaro de Campos. Não deveria: eu sei. Depois que enviei a missiva, arrependi-me, profundamente. Feito estava! Ando lendo o livro “Deixa pra lá - A teoria 'Let Them' ” (Robbins, Mel e Robbins, Sawyer, Best Seller, 2025) e lá aprendi como parar de desperdiçar energia com o que está fora do meu controle e redirecionar o foco para o que realmente importa: Eu! Matei-o, então. A resposta de Pessoa – improvável – chegou. Um bilhete: “Fui como ervas, e não me arrancaram.”. Assinado A.C. Levei o bilhete – e o envelope junto – para uma amiga que conhece profundamente a obra de Fernando Pessoa. Ela olhou, cheirou a carta, o envelope, consultou a caligrafia, o remetente e sentenciou: “Quem escreveu o bilhete não foi o Pessoa, foi o Álvaro de Campos!”. “Isso é possível?”, quis saber. Minha amiga – que pediu para não ser identificada – respondeu: “Sim”. A heteronímia é uma doença cruel, perversa, maligna. Foi até a estante e trouxe o poema abandonado em viagem: “Venho dos lados de Beja. / Vou para o meio de Lisboa. / Não trago nada e não acharei nada. / Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, / E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro. / Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: / Fui como ervas, e não me arrancaram.” Viu e disse: “No momento de responder a sua carta, Pessoa estava possuído, tomado, abduzido. Foi o Álvaro de Campos que assinou a carta!”. Sorte a minha: matei Ricardo Porto sem dó, no melhor do sol escaldante. Digo sempre: venho dos lados do Ceará. Não trago nada, nada mais que a minha poesia. E chega!

João Scortecci