Ricos e pobres – cada um na sua – costumam, depois das festas de final de ano, celebrar, em data única, o enterro dos ossos! Sempre sobra alguma coisa. Verdade. No Ceará dos anos 1960, a carcaça do peru desfiado na véspera, enriquecia a canja das almas, e as sobras, a farofa de ovo. Farofa vitaminada, dizíamos. Na virada do Ano Novo, era a vez dos ossos do pernil de porco. Farra gastronômica! Todo ano a mesma promessa: muita comida! Desperdício. E as sobremesas: pudim de leite, pavê, manjar branco com calda de ameixa, doce de leite com queijo e sorvete de chocolate. “Enterro dos ossos”, no Dicionário Houaiss significa “banquete, aproveitando o que sobrou”. O amigo Antônio Houaiss era um “crânio”, brilhante. Gostava de contar causos gastronômicos e, quando o fazia, usava toda a maestria de um filólogo gourmet. No final dos anos 1980, eu, Houaiss e o escritor e artista plástico Enio Squeff, depois de uma reunião na UBE – União Brasileira de Escritores, fomos comer uma “pasta” no restaurante Gigetto, na capital paulista. O Mestre Houaiss adorava pratos exóticos, impróprios, explosivos, diferentes. Perguntei-lhe: “Qual de todos lhe foi mais difícil comer?”. Houaiss, na lata, respondeu: “Cérebro de macaquinho vivo!”. Depois, sem pressa, fatiou-nos com sabedoria e inteligência sua cerebral aventura, num pequeno país do leste europeu. O estômago virou, confesso. O povo do restaurante, vizinhos de mesa e até os garçons fecharam o cerco para saborear a sua preciosa contação. Privilégio escutá-lo. Desisti da “pasta”. Houaiss, não. Comeu com gosto. Raspou o prato. Tarde da noite, o restaurante se esvaziou e tivemos – infelizmente – que ir embora. “Sobremesa?” “Não”, respondi. Talvez tenha sido a única vez na vida confesso – em que recusei um pudim de leite, um petit gateau ou um Romeu e Julieta. Lá fora – na paulicéia desvairada – acontecia uma prévia alvorada. Mestre Houaiss nunca mais se repetiu na minha vida. Houaiss faleceu no dia 7 de março de 1999, aos 83 anos de idade. Lembro-me de um assunto daquela noite. Disse-nos: “Quero viver para o enterro dos ossos da virada do século!”. Não deu tempo. Bateu na trave. Bateu saudade. Bateu no tempo dos ossos e ainda dói.
João Scortecci