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OS TRÊS DE ABRIL DE 1616: SHAKESPEARE, CERVANTES, INCA / MARIA MORTATTI

Apesar das diferenças de calendários (juliano e gregoriano), de costumes e práticas de registro de nascimentos e mortes, uma coincidência simbólica, sobretudo, une três escritores renascentistas – Shakespeare, Cervantes, Inca – falecidos em 23 de abril de 1616 e cujas obras se tornaram marcos na literatura mundial. 

O poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (23.04.1564 – 23.04.1616), “O Bardo de Avon”, considerado o mais importante poeta da Inglaterra e o mais influente do mundo, por meio de sua notável obra literária – com suas mais de 30 peças de teatro e mais de 150 sonetos e outros poemas – contribuiu ainda, por meio da criação de mais de 2 mil palavras, para a fixação do inglês moderno, a partir de 1550. Traduzida para vários idiomas e com encenações e adaptações de suas peças, no teatro, na TV, no cinema e na literatura, sua obra e os célebres temas humanos que aborda continuam atuais, influenciando e provocando admiração em novas gerações. O escritor, poeta e dramaturgo espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (29.09.1547 – 23.04.1616), com sua engenhosa obra-prima, Don Quixote de La Mancha (1605 – 1615), fundadora do romance moderno no Ocidente, além dos poemas e peças de teatro que escreveu, contribuiu para a fixação da língua castelhana, que, em reconhecimento à importância do mais famoso escritor da Espanha, é também chamada de “língua de Cervantes”. Seu Quixote, traduzido para vários idiomas e com adaptações para teatro, cinema e literatura, continua atual, influenciando escritores e sendo admirado pelas novas gerações de leitores. Em sua homenagem, em 1976 foi instituído o Prêmio Literário Miguel de Cervantes. O escritor e historiador Inca Garcilaso de La Vega (Gómez Suárez de Figueroa) (12.04.1539 – 23.04.1616), autodenominado Inca, natural de Cusco, Peru, de pai espanhol e mãe inca, foi o primeiro mestiço letrado da América, que conciliou suas duas heranças culturais e conquistou reconhecimento mundial. Entre os quatro livros de seu projeto historiográfico original centrado no passado americano, especialmente no de sua terra natal, destaca-se a obra-prima, Comentarios reales, publicada em Lisboa, em 1609; a segunda parte, História do Peru, foi publicada postumamente, em Córdoba, em 1617. Nessa obra, o autor apresenta a história, a cultura e os costumes dos incas e outros povos do antigo Peru. Tanto pela representação do dilema cultural da condição de mestiço no início da colonização espanhola quanto pela expressão renascentista da língua castelhana na América, em prosa da mais alta qualidade, sua obra é fundadora da literatura latino-americana, rendendo ao escritor o epíteto de "príncipe dos escritores do Novo Mundo".

Não localizei informações sobre terem se conhecido pessoalmente, mas os três escritores partilharam, cada um a seu modo, do ambiente intelectual e cultural do período renascentista na Europa. Participaram de mudanças que deram início à substituição dos dogmas religiosos pela valorização da ciência e da racionalidade humana e ao desenvolvimento cultural, artístico, científico, social e tecnológico inspirado no Humanismo/Antropocentrismo. Associadas a essas mudanças, a valorização das artes e a gradual utilização das línguas vernáculas propiciadas pela invenção da prensa de tipos móveis e a difusão do livro impresso propiciaram também mudanças importantes para as artes e a literatura, como a questão da autoria e do direito do autor, que se consolidaram no Século das Luzes na Europa. Embora haja dúvidas sobre fontes e autoria de algumas obras atribuídas a Shakespeare, foi seu nome que inquestionavelmente conferiu autoridade e fama às peças que assinou e ele foi considerado criador e original, admirado por grandes escritores desde sua época. Também sobre autoria e originalidade da obra historiográfica de Inca, não parece haver dúvidas, exceto possíveis imprecisões de alguns fatos e datas. Em Cervantes, essa questão é explícita, como se vê no capítulo em que Quixote visita a gráfica em Barcelona e se informa, com um tradutor que trabalha ali, sobre detalhes da atividade da tipografia e da tradução, tais como se o “privilégio” era do autor ou vendido a algum livreiro. E ali toma conhecimento da revisão do livro Segunda parte do engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha, composto por um cidadão vizinho de Tordesilhas, que seria a continuidade apócrifa do seu Quixote. Para proteger seu direito de autor, Cervantes, então, apressa-se a publicar a segunda parte do romance.

A notoriedade desses escritores, a admiração e a influência que exerceram nos contemporâneos e pósteros contribuíram, sem dúvida, para o momento histórico de individualização e emergência da noção de autor e de obra, que se estabeleceu no século XVIII, com o Copyright Act, lei inglesa de 1710, considerada a primeira a estabelecer a garantia do direito individual sobre uma obra impressa. Na França, o marco é a Carta do comércio do livro, de 1763, escrita por Denis Diderot, por encomenda de editores-livreiros, na qual o filósofo defende o argumento que o autor é dono de sua obra e a considera um bem alienável. O livreiro-editor tem, portanto, o direito de adquiri-la e se torna também ele proprietário da obra. Assim, Diderot contribuiu decisivamente para a definição de uma política literária, na qual se ressaltava a figura do autor-proprietário fundada na teoria do direito natural e na estética da originalidade, iluminando debates posteriores sobre a relação entre escritores, editores e livreiros e ainda muito atual, especialmente com a expansão da Inteligência Artificial, com robôs treinados para "criar" textos, músicas, imagens etc., por meio de cópia-compilação de conteúdos disponíveis na "biblioteca sem muros", legitimando a apropriação indébita, disponibilizando-a gratuitamente para a geração de infinidades de outras apropriações e de obras sem autor, provocando uma série de perplexidades, questionamentos, críticas e reações de proteção ao direito do autor.

Tento imaginar – inutilmente, por certo  o que diriam os três escritores falecidos em 23 de abril de 1616, se soubessem do lugar proeminente que conquistaram na literatura mundial; que, mais de três séculos depois, a Conferência Geral da UNESCO, realizada em Paris em 1995, instituiu o Dia Mundial do Livro e do Direito do Autorpara homenageá-los e para “encorajar todos a terem contato com livros – a mais bela invenção para compartilhar ideias além das limitações humanas de espaço e tempo, bem como a força mais poderosas para a erradicação da pobreza e para a construção da paz”; e que, no século XXI, suas obras continuam a ser celebradas pela originalidade e pela contribuição autoral para a compreensão das grandezas, limitações e fragilidades da condição humana. 


Maria Mortatti 

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Como citar este texto: MORTATTI, Maria. Os três de abril de 1616: Shakespeare, Cervantes, Inca. 2023. Disponível em: https://www.livroseautores.com.br/2023/04/os-tres-de-abril-de-1616-shakespeare.html