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A POESIA ENCARNADA DE MARINA TSVETÁIEVA / MARIA MORTATTI

Há poetas que, como faíscas que se desprendem de uma alma em brasa, iluminam cantos silenciados, encarnando-se em nós na mistura gasosa e incandescente da língua de fogo da poesia viva. Assim me pus a refletir, quando mergulhei em (re)leituras de e sobre a poeta, escritora – de ensaios literários e biográficos, peças de teatro, cartas, diários – e tradutora Marina Tsvetáieva (Moscou, 26.09.1892 – Yelabuga, 31.08.1941), uma das mais influentes poetas russas do século XX. Essa mulher insubmissa, que viveu da poesia e para a poesia, escreveu – diariamente – para se manter viva, realizando a autoprofecia da jovem que, em 1913, “quando nem sabia que era poeta”, escreveu: “para meus versos chegará seu tempo”. Assim foi durante sua breve vida: durante a Rússia czarista, as turbulentas condições políticas e econômicas da União Soviética, as duras tragédias pessoais e os célebres amores de inspiração poética mútua, como Sophia Parnok, Anna Akhmatova, Ossip Mandelstam, Rainer Maria Rilke, Boris Pasternak e Arseny Tarkovski. Em sua obra poética, tematizou, entre outros, a vida, a natureza e a morte, com influência de canções folclóricas e mitologia clássica. É reconhecida pelo despojamento formal, rimas inesperadas, sintaxe fragmentária, uso do travessão – uma de suas principais marcas estilísticas –, sensibilidade aguçada e passional, lirismo efusivo, incandescente e intenso, quase sempre “possessa”, com “gravidade elegante e ponderada”, nas palavras da professora e crítica literária Aurora Bernardini. Quando admirava um poeta e escrevia sobre ele, personificava seu estilo, como nos poemas a Maiakóvski e a outros poetas que influenciaram sua obra. 

Era filha de Ivan Vladimirovich, professor da Universidade de Moscou, filólogo, colecionador e crítico de arte e fundador do Museu de Belas Artes, e de Maria Mein, alemã de nascimento e pianista talentosa, que morreu de tuberculose quando Tsvetáieva tinha 14 anos de idade. Aprendeu música aos quatro anos de idade, leitura e escrita, aos cinco anos, e, além de russo, aprendeu alemão e francês. Em 1910, com 18 anos de idade, publicou, com recursos próprios, o primeiro livro de poemas, Album da tarde – incluindo redações escolares –, elogiado por grandes escritores e pelo crítico Maximilian Voloshin, que se tornou seu amigo e mentor. Participou de círculos literários e publicou seu primeiro trabalho de crítica literária dedicado à obra do poeta Valeri Bryusov. Em 1912, casou-se com Sergei Efron, estudante de filosofia na Universidade de Moscou, tiveram a primeira filha, Ariadna, e a poeta lançou seu segundo livro Lanterna mágica. Em 1914, já tendo nascido Irina, a segunda filha do casal, durante a Guerra Civil russa Efron se alistou no contrarrevolucionário “exército branco”, com que a poeta também simpatizava e que ele, mais tarde, abandonou para servir à polícia secreta soviética. Embora escrevesse sempre, Tsvetáieva nada mais publicou até 1922. Nesse período, manteve relações amorosas com os poetas Ossip Mandesltam e Sofia Parnok e, devido à fome da população moscovita, viu-se obrigada a deixar suas filhas em um orfanato estatal, onde Irina morreu de desnutrição, em 1919. Para se unir ao marido que estava em Praga, concluindo estudos em filosofia, em 1922 Marina emigrou com a família, passando por Berlim, onde encontrou o poeta e romancista russo Boris Pasternak, que estava comprando o segundo livro dela, editado por uma editora moscovita sem que ela soubesse. Como relata Aurora Bernardini, o poeta russo foi conquistado pela “potência lírica da forma, uma forma vivida intimamente, que nada tinha de frágil, mas um vigor conciso e condensado.” Teve vontade de conhecê-la e escreveu uma carta entusiasmada, iniciando-se entre eles a correspondência que durou mais de uma década e foi marcada por momentos de paixão, ao ponto de, em 1926, Pasternak ter pensado em deixar a Rússia e se unir à poeta. A ele Tsvetáieva dedicou um ciclo de poemas, e se encontraram apenas uma vez, pouco antes de ela morrer. 

Em 1925, a poeta se estabeleceu em Paris, onde, durante 14 anos, vivendo na pobreza e isolada da comunidade russa de expatriados, dedicou-se à família, à poesia, ao trabalho literário, colaborando com revistas e jornal, manteve correspondência com Pasternak e com Rilke e dedicou poemas a Akhmatova. Em 1939, retornou com o filho Georgi para a Rússia, onde já estavam o marido, que foi executado em 1939, por ter se  contraposto a Stalin e defendido Lenin, e sua filha Ariadna, que foi enviada a um campo de trabalhos forçados, onde permaneceu até ser “reabilitada” em 1955. Por ser parente de “inimigos do povo", Tvestáieva não conseguia emprego nem moradia permanente, vivendo da ajuda de algumas mulheres, e se ocupava com traduções e o organização de coletânea de poemas. Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial e se iniciou a invasão alemã na União Soviética, a poeta foi evacuada com o filho para o lugarejo de Labuga, na república Tártara, onde também não conseguiu emprego, nem de lavadora de pratos, como pedira, em carta de 26.08.1941, a um órgão da União dos Escritores Soviéticos. Sem mínimos recursos nem papel para escrever, acusada pelo filho das dificuldades financeiras em que viviam, sem notícias da filha, desesperada e em situação de fome extrema, em 31.08.1941 Marina Tsvetáieva cometeu suicídio – ou foi suicidada –, por enforcamento, com a corda que Bóris Pasternak lhe dera para fechar sua velha e surrada mala – “Forte, vai aguentar tudo, até se enforcar”, dissera ele –, quando se despediram, após o primeiro e último encontro, na partida de Tsvetáieva para Yelabuga. Ela deixou três cartas de adeus e um bilhete: “Não me enterrem viva: verifiquem bem!”.  O último poema que escreveu foi dedicado ao seu último amor, o poeta Arseny Tarkovski, que ela conheceu em 1939, quando retornou a Moscou. A relação amorosa durou pouco. Ao poema de Tarkovski, “A mesa, coloquei-a para seis”, referindo-se a ele mesmo, à esposa e familiares, Tsvetáieva respondeu, “possessa”, em março de 1941: “Refaço tudo o que me fez,/Tudo em um só verso poético:/– “Eu pus a mesa para seis”.../Tu esqueceste um – o sétimo.//Seis semblantes de tristeza./Como? Repete-me:/Como pudeste a esta mesa/Esquecer do sétimo – da sétima? (...)// Tu com os teus atrás da mesa –/Nem amigo, nem irmão, nem meu amado –/Que a puseste para seis, para mim mesma/ Não deixaste nem um só metro quadrado.” 

A extensa obra de Tsvetáieva, com dezenas de livros de poemas, peças de teatro e ensaios, além de centenas de cartas e páginas de diário, foi resgatada em grande parte pela filha Ariadna e “reabilitada” e divulgada a partir dos anos 1960, após o período de “degelo”, que se seguiu à morte de Joseph Stalin, em 1953. Como ela vaticinara, tinha chegado o tempo para sua poesia. Tornou-se conhecida e reconhecida como um dos ícones da “Era de Prata” da literatura russa moderna. No Brasil, seus poemas foram traduzidos pela primeira vez na antologia Poesia russa moderna, de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman (Perspectiva, 1968), com outros poetas de sua geração: Blok, Pasternak, Akhmátova, Mandelstam, Iessiênin. Posteriormente, a professora, ensaísta e tradutora brasileira Aurora Bernardini se tornou uma das principais referências no estudo e na tradução de sua obra. Por meio dessas traduções, dos ensaios do filósofo russo Tzvetan Todorov e da correspondência da poeta que ele reuniu, tive a oportunidade de conhecer a língua de fogo de Marina Tsvetáieva: “a vida e a morte são os elementos do meu mundo poético”; “Dou ouvidos a algo que soa dentro de mim de maneira constante, mas não regular, dando-me ora indicações, ora ordens. Quando indica – discuto; quando ordena – obedeço”. E me deixei encarnar por sua poesia viva de “fogo que não é feito para o banho-maria”, como se ela, compreendendo-me intensamente, ordenasse-me dizer, com sua voz misturada à minha: “não me compreendam mal: eu não vivo para escrever versos, eu escrevo versos para viver”.

Maria Mortatti – 14.10.2023