Edmondo De Amicis (21.10.1846 – 11.03.1908), jornalista, escritor e militar italiano de Oneglia, é autor de obra com mais 60 títulos – entre romances, relatos de viagens, artigos e outros gêneros –, que ficaram obscurecidos pelo sucesso editorial de Cuore, libro per i ragazzi (Coração, livro para meninos), lançado em 1886, pela editora Treves, de Milão. Em poucos meses, o livro alcançou 40 edições e, três anos depois, 98 edições, seguidas – até os dias atuais – de muitas outras, de traduções para várias línguas e adaptações em em livros, filmes e peças de teatro. Cuore consagrou o autor, que se tornou um dos mais lidos na Itália, e o livro, um dos mais populares clássicos da literatura escolar e infantil mundial. No Brasil, também teve várias traduções e serviu de inspiração para adaptações por autores de livros de leitura escolar e de literatura para crianças.
No prefácio, o autor informa que o livro é dedicado às crianças entre 9 e 13 anos de idade e foi composto com anotações de um aluno do terceiro ano de uma escola pública de Turim, durante um ano letivo (outubro a julho, com férias de dois meses, conforme calendário europeu). Foram, depois, escritas pelo pai “tentando não alterar o pensamento e preservar, tanto quanto possível, as palavras do filho”, o qual, mais tarde, também acrescentou “algo de sua autoria”. A narrativa está dividida em 10 partes – correspondentes a cada mês letivo –, cada uma contendo uma sequência de textos, precedidos de títulos e data, à semelhança de um diário, em que o menino Enrico Bottini relata acontecimentos da rotina escolar, apresenta o professor e os colegas, entremeando com suas reflexões e cartas do pai, da mãe e da irmã, contendo advertências e conselhos, e com o “conto mensal” sobre bondade, coragem, patriotismo, narrado pelo professor. Publicado três anos depois de Le avventure di Pinocchio, de Carlo Collodi – outro clássico a literatura infantil universal – a inovação de Cuore consistiu em "dar voz" ao protagonista criança, embora a voz do adulto se sobreponha, com conselhos educativos e pedagógicos, carregados de comovente sentimentalismo e ideias morais, patrióticas e nacionalistas, conforme as finalidades pedagógicas e o compromisso cívico do autor de fomentar, no contexto do pós-Risorgimento – movimento de unificação da Itália entre 1815 e 1870 – os ideiais de unidade e identidade nacional e cultural da nação.
No Brasil, o livro teve várias traduções, além da provável circulação de edições portuguesas e das muitas adaptações. As primeiras traduções brasileiras foram publicadas em 1891, pela Francisco Alves (RJ), com o título Coração e tradução “autorizada, feita da 101ª edição italiana” pelo jornalista, crítico literário, filólogo, historiador, pintor e tradutor João Ribeiro (1860 – 1934), membro da Academia Brasileira de Letras (ABL); e pela Teixeira e Irmãos (SP), com tradução e prefácio do jornalista, escritor e poeta Valentim Magalhães (1859 – 1903), um dos fundadores da ABL. Seguiram-se outras traduções por outras editoras do País, ao longo do século XX, até a mais recente, de 2011, pela Cosac Naify, com tradução de Nilson Moulin. Principalmente entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, Coração foi aprovado e adotado oficialmente e circulou amplamente como livro de leitura em escolas primárias do País. É rememorado com emoção por alunos e professores da época, como nos depoimentos citados pelo historiador Leonardo Arroyo. para autores brasileiros de livros de leitura para crianças, como Júlia Lopes de Almeida, João Simões Lopes Neto, Romão Puiggari, Arnaldo de Oliveira Barreto, Viriato Correa e Thales de Andrade, como apontam pesquisadores da história da literatura infantil e da educação brasileiras, que se dedicam ao estudo da obra e sua circulação.
Apesar do duradouro sucesso editorial, Cuore/Coração nunca mereceu apreciações positivas da crítica literária. Mas, passados o já longínquo contexto político e geográfico e os propósitos que o originaram, continua vivo na memória dos leitores e nas histórias de leitura que deixaram registradas. Não o li no curso primário, apesar de terem circulado edições da Francisco Alves até os anos 1960 e da Tecnoprint, até os anos 1970. Conheci-o nos anos 1980, em acervos documentais durante minhas pesquisas sobre história da literatura infantil. Em 2010, ganhei de Fernando Oliveira – que o adquiriu em sebo mineiro – um exemplar da 30ª. edição, de 1919, pela Francisco Alves, com capa dura, edição “cuidadosamente corrigida” e sem o prefácio original do autor. Na folha de rosto e na folha de guarda ao final do livro, dois nomes, manuscritos com caneta tinteiro, de alunos que o utilizaram há um século: Genésio Machado Goulart e Eloy Mendes, este seguido pela data “1 de Janeiro de 1921”, na folha de rosto, e pela data “13 de Junho de 1920”, na folha final. Afora a provável confusão na indicação do ano, tudo indica que Eloy leu o livro e se inspirou no tom de diário para indicar seu percurso de seis meses de leitura. E, ao menos para os dias atuais, é curioso que, além de alguns pequenos borrões de tinta, essas sejam as únicas marcas de leitura nas 278 páginas do livro. Ou porque não pertencia a nenhum deles, podendo ser emprestado a outros depois de utilizado nas aulas de leitura, ou porque essa não era uma prática permitida pelos professores, ou, mais provavelmente, porque o efeito comovente da leitura tornasse o livro uma espécie de objeto sagrado a ser preservado na memória dos leitores, como Genésio e Eloy. Aqueles meninos se foram, mas continuam propiciando releituras e reencontros – como estes – com De Amicis e a obra que o consagrou no coração da história da literatura para crianças. As do século XXI também?
Maria Mortatti – 28.11.2023