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SOBRE O PAI DA MINHA LÍNGUA MATERNA E OUTRAS HISTÓRIAS DA FAMÍLIA / MARIA MORTATTI

Línguas são organismos vivos, que nascem, crescem e morrem: esse é um princípio estabelecido pela Linguística Histórica no século XIX. Controvérsias à parte sobre a analogia com o modelo biológico de evolução, essa afirmação pode ser assim entendida: toda língua – sistema de comunicação em uma comunidade linguística – é um organismo social e cultural, com história e família. Assim também é a língua portuguesa, a língua materna – língua nativa ou primeira língua que uma criança aprende – e idioma oficial no Brasil e em outros oito países colonizados pelos portugueses – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe, de acordo com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que, desde 2009, comemora, em 5 de maio, o Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP, proclamado, em 2019, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, como Dia Mundial da Língua Portuguesa e da Cultura Lusófona.

A língua portuguesa integra a família indo-europeia, da qual descende o Latim, idioma falado pelos povos romanos que viviam na região do Lácio, na Península Itálica, atual região da Itália. Desse idioma descendem as língua românicas. No século III a. C, os romanos invadiram a Península Ibérica e iniciaram a romanização da Península, por meio da imposição de sua cultura e sua língua, o Latim vulgar, a língua falada pelos soldados e colonos romanos, e não o Latim clássico escrito utilizado pelos letrados – clero, escritores, poetas – do Império Romano. Além dos romanos, outros povos, como celtas, iberos, fenícios, bárbaros e germânicos, ocuparam a Península, resultando a interpenetração das línguas dos conquistados e dos conquistadores/invasores e originando, a partir do século V, vários dialetos chamados de “romanço” ("falar à maneira dos romanos"), estágio intermediário entre o Latim vulgar e as línguas românicas ou neolatinas – Português, Espanhol, Francês, Italiano e Romeno. Com a influência dos árabes que invadiram a Península no século VIII, intensificou-se o processo de formação de dialetos e línguas como o Catalão, o Castelhano e o Galego-Português. Com a independência de Portugal, em 1139, D. Afonso Henrique, o primeiro rei português, fundou a dinastia de Borgonha, na região onde se usava o Galego-Português, o qual, em 1290, o Rei D. Dinis, também famoso trovador, que compôs cantigas medievais, decretou como língua oficial do reino de Portugal, de uso obrigatório em documentos oficias, em substituição ao Latim vulgar. Com a expansão dos domínios de Portugal, o Português, separando-se do Galego, tornou-se a língua da nacionalidade portuguesa. No Renascimento, adquiriu características modernas, com a publicação do Cancioneiro Geral de Garcia Rezende (1516), consolidando-se com a publicação, em 1536, das primeiras gramáticas da língua portuguesa, as de Fernão de Oliveira e João de Barros, e com a obra de Camões, especialmente Os Lusíadas (1572), considerado o fundador da língua portuguesa, uniformizando-a e fixando as características atuais. A partir do século XVI, com a expansão marítima de Portugal, a língua portuguesa foi levada para outros continentes. No Brasil, no período da colonização, essa língua foi imposta inicialmente por meio da catequização dos índios pelos jesuítas, sobrepondo-a às línguas indígenas aqui faladas, mas também sendo por elas influenciado, processo semelhante ao que ocorreu com as línguas dos povos africanos, após serem trazidos pelos portugueses, como escravos. Com a interpenetração de culturas e línguas, nos séculos XVII e XVIII, a Coroa portuguesa impôs a língua portuguesa como a única língua oficial do Brasil; após a vinda da família real em 1808, tornou-se a língua nacional; com a Independência, em 1822, passou a ser a língua oficial do Estado Brasileiro. No século XIX, a língua portuguesa foi objeto de debates por parte de brasileiros, em especial entre os que defendiam o português “castiço” e os escritores românticos, como José de Alencar, que defendia e utilizava formas linguísticas faladas no País. O debate se acentuou na imprensa na virada para o século XX, culminando com a definição oficial, na Constituição de 1946, da denominação “língua portuguesa”, que, na Constituição de 1988, ficou estabelecida explicitamente como a língua oficial do País. Essa é a língua materna da maioria da população brasileira e o idioma obrigatório em atos oficiais e administrativos, no ensino oficial e nos livros (de brasileiros), entre outras situações da vida pública.

Como organismo social e cultural, a língua portuguesa – de que o Português do Brasil é apenas uma variante – tem história e família, não é estática, nem homogênea, caracterizando-se pela complexidade e diversidade cultural e linguística herdadas do passado, incorporadas no presente e projetadas para o futuro. É o idioma falado por mais de 260 milhões de pessoas (3,7% da população mundial) e o quarto mais usado no mundo. E continua se expandindo, prevendo-se que, até o final do século XXI, serão 500 milhões de falantes dessa língua. Também os estudos linguísticos se desenvolvem, contribuindo para descrever e compreender os fatos e as mudanças da língua, como, entre outros ramos: a Sociolinguística, que estuda a relação entre usos da língua e suas modificações conforme o contexto social e cultural, problematizando a noção de erro e desvio em relação à norma culta escrita; e a Linguística Histórica, que estuda a origem e o desenvolvimento de uma língua. Os avanços nos estudos linguísticos podem também suscitar outras interpretações e, em alguns casos, controvérsias. Contemporaneamente, por exemplo, a escritora moçambicana Paulina Chiziane, no discurso na cerimônia em que recebeu o Prêmio Camões – 2021, pediu a descolonização da língua portuguesa, marcada por preconceitos em relação a populações africanas; e linguistas têm questionado o que consideram ser “mitos de origem e fundação” da língua portuguesa, indicando que dois deles, em especial, devem ser assim corrigidos: é o Galego – não exatamente o Latim – o pai da língua portuguesa; e ela não é a “língua de Camões”, pois esse poeta inovou muito pouco a linguagem escrita, tendo utilizado quase exclusivamente o Português já então conhecido.

Controvérsias à parte sobre a paternidade da "Última flor do Lácio, inculta e bela/ (...) Em que da voz materna ouvi: 'meu filho!' " (Olavo Bilac), ela é um lugar de pertencimento original, uma pátria – palavra latina originada de “pater” (pai) – em sua acepção primeira, como já consagrada pelo poeta português Fernando Pessoa/Bernardo Soares: “a minha pátria é a língua portuguesa”. Também minha pátria é a língua portuguesa, minha língua materna. Com ela foi escrito meu registro de nascimento. Com ela aprendi a ouvir, falar, ler e escrever. Com ela escrevo este texto e todos os meus livros. Com ela teço minha história. E com ela alguém escreverá meu epitáfio. Sem controvérsias – assim espero. 

Maria Mortatti