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PARA GOSTAR DE LER, É SÓ COMEÇAR / MARIA MORTATTI

Quem nunca? Ao menos entre os que frequentaram escola a partir dos anos 1970, quem nunca leu um, alguns ou todos os volumes da coleção Para Gostar de Ler e se encantou com a descoberta ou releitura de tantos grandes escritores brasileiros? Essa coleção, lançada pela editora Ática em 1977 e encerrada em 2013, era destinada aos anos finais do ensino de 1o. grau e ensino de 2o. grau, e nela foram publicados crônicas, contos, poemas. Com as séries Bom Livro – de clássicos da literatura brasileira e portuguesa – e Vaga-Lume – livros de literatura para jovens –, a coleção Para Gostar de Ler compôs exitosa estratégia editorial da Ática, originada da impressão em mimeógrafo de apostilas didáticas para o Curso de Madureza Santa Inês, da cidade de São Paulo. Sob a direção do editor e professor Jiro Takahashi (22.11.1947 –  ), que se tornou uma “lenda” no mercado editorial, essas iniciativas arrojadas e pioneiras contribuíram para consolidação das expressões “paradidático” e “leitura extraclasse”, em referência ao produto editorial e o correspondente modo e espaço escolar de circulação de textos literários. Contribuíram, ainda, para a divulgação da produção literária brasileira e para programas de incentivo à leitura e à formação de leitores, no contexto das políticas educacionais e culturais decorrentes das mudanças estabelecidas pela lei n. 5.692/1971, que tornou obrigatório o ensino de oito anos.

Como conta Jiro Takahashi em entrevistas já antológicas, a história da coleção Para Gostar de Ler começou em 1976, com uma conversa telefônica entre ele e o poeta, escritor e professor Affonso Romano de Sant’Anna, que mencionou um comentário do escritor Rubem Braga sobre o fato de suas crônicas estarem presentes em livros didáticos, serem lidas por estudantes, mas seus livros venderem pouco. Tentando entender o motivo, “começamos a pensar em reunir as crônicas mais lidas pelos estudantes em livros concebidos para que eles gostassem de ler. Além da qualidade dos autores, um ponto que foi fundamental, a meu ver, para a grande aceitação da coleção foram as leituras experimentais que fizemos com três mil estudantes. Para cada volume, editávamos uma edição experimental com o dobro de crônicas que fariam parte do volume, e os estudantes escolhiam as que davam mais prazer em ler. Foi uma coleção feita em colaboração com o público a que se destinava. Isso pode explicar a sua grande aceitação.” Os professores de 1o. e 2o. graus recebiam exemplares gratuitos – ainda tenho os meus – e cada volume era acompanhado de um suplemento de trabalho, informações sobre a coleção e sua finalidade – “levar o aluno a incorporar o gosto e o hábito de ler” –, comentários e questões abertas sobre assuntos dos textos, sugestões didáticas e resumos biográficos dos autores. Na carta-apresentação do volume 1, dirigida ao “amigo estudante” e assinada pelos quatro cronistas que inauguram a coleção – Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga –, reitera-se a finalidade de não “ensinar coisa alguma a você. Nem gramática nem redação nem qualquer matéria incluída no programa de sua série.” A tiragem desse volume foi de 100 mil exemplares, seguidos de reimpressão de mais 150 mil.

Entre 1977 e 2013, foram publicados 47 volumes, com inclusão de outros gêneros, subgêneros e assuntos e com atualizações nos projetos gráficos. Nos cinco volumes iniciais, permaneceram os mesmos cronistas. No volume 6, foram publicados poemas de José Paulo Paes, Henriqueta Lisboa, Mario Quintana e Vinícius de Moraes. Seguiram-se volumes de crônicas e contos, com outros grandes escritores brasileiros e universais. Para se ter uma ideia da importância e alcance do projeto, constavam autores, tais como: Luís Fernando Veríssimo, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Mario de Andrade, Marcos Rey, Machado de Assis, Affonso Romano de Sant’Anna, Rachel de Queiroz, Murilo Rubião, Marina Colasanti, Domingos Pellegrini, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Ferreira Gullar, Cacaso, Paulo Leminski, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes, Mark Twain, Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Miguel de Cervantes, Conan Doyle, William Shakespeare, Voltaire. É ainda nessa coleção, no volume 5, que está publicado o também antológico ensaio-prefácio “A vida ao rés-do-chão”, do crítico e professor Antonio Candido, com um estudo analítico sobre o gênero crônica. A coleção era um "luxo", como comentávamos entre professores.

Enquanto escrevia este texto, lembrei-me das tantas vezes em que, no início das aulas e por pura diversão, lia para meus alunos crônicas, poemas e contos dos livros que eu recebia da editora. De um dos mais hilariantes momentos, lembrei-me agora: a leitura da crônica “Emergência”, de Luís Fernando Veríssimo, sobre o medo de avião de um passageiro de primeira viagem. Tantas vezes a li, tantas vezes choramos de tanto rir. Eu, com o livro aberto de frente para os alunos. esforçando-me para não interromper a leitura com repetidos engasgos nos risos lacrimejantes e mal disfarçados; eles, ouvindo curiosos e também tentando esconder o riso. Ao final, todos libertando as gargalhadas, aplaudíamos o também antológico pouso-desfecho de Veríssimo: “– Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita, podemos ver a cidade de... [O passageiro] pula outra vez da cadeira e grita para a cabina do piloto: – Olha para a frente, Araújo! Olha para a frente!”. 

Para Gostar de Ler representou irrecusável convite: conhecer autores e textos aos quais a maioria dos estudantes e provavelmente também dos professores tiveram acesso pela primeira vez. De forma direta ou indireta, os textos e os autores se tornaram conhecidos por leitores de primeira viagem ou veteranos e continuam vivos em sua memória e na história da educação e da cultura brasileiras. Formar leitores, dentro e fora da escola, continua sendo emergência nacional. Mas essa coleção cumpriu sua finalidade e deixa uma antológica lição: para gostar de ler, é só começar. E com textos de qualidade, que sejam acessíveis e enredem o leitor. Quem nunca leu ou desejou ler livros como esses? 

Maria Mortatti – 12.11.2023