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A COMISSÃO NACIONAL DE LITERATURA INFANTIL DO MINISTÉRIO CAPANEMA / MARIA MORTATTI

Pouco conhecida entre as iniciativas do governo constitucional (1934 – 1937) do Presidente da República Getúlio Vargas, a Comissão Nacional de Literatura Infantil (CNLI) foi criada pelo então Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, por meio de Portaria de 29 de abril de 1936. Composta inicialmente por renomados escritores e educadores, essa Comissão organizou e institucionalizou, em âmbito nacional, o debate sobre literatura infantil. Por meio de ações inovadoras no período inicial de funcionamento (1936 – 1938), contribuiu para a definição e consolidação desse gênero literário, em consonância com debates sobre educação, formação de leitores, criação de bibliotecas, expansão da indústria editorial no Brasil e o papel de intelectuais na proposição de políticas para cultura e educação do "Ministério Capanema", durante a Era Vargas, com importantes repercussões até hoje.

A CNLI tinha como atribuições: "a) organizar, periodicamente, relações, com apreciação crítica, das obras de literatura infantil, existentes em língua portuguesa, originais e traduzidas; b) escolher, dentre as obras de literatura infantil existentes em língua estrangeiras, aquelas cuja tradução ou adaptação seja conveniente fazer; c) indicar ao governo as providências que devam ser tomadas para a eliminação das obras de Literatura Infantil, perniciosas ou sem valor; d) indicar ao governo as providências tenentes a promover em todo país o desenvolvimento da boa literatura infantil, bem como a instituição de bibliografia para crianças." Para sua composição, Capanema nomeou a educadora Maria Junqueira Schmidt, que participou apenas da primeira reunião; a poeta e educadora Cecília Meireles, que participou apenas por três meses; a educadora Elvira Nizinska da Silva; a poetisa e jornalista Maria Eugênia Celso; os poetas Jorge de Lima, Murilo Mendes, Manuel Bandeira; o escritor José Lins do Rego; e, depois, o educador Manoel Bergström Lourenço Filho. As reuniões semanais eram realizadas no prédio do Ministério de Educação e Saúde (MES), no gabinete de Capanema, presidente da Comissão. Em sua ausência, Murilo Mendes atuava como presidente e coordenador dos trabalhos. 

Segundo a pesquisadora Ângela de Castro Gomes, a questão fundamental e inicial nos debates da Comissão era a definição de literatura infantil e das obras que poderiam ser assim classificadas, para nortear suas ações e a do governo. Compreendendo a complexidade do problema, pois  quase todos os gêneros literários para adultos em prosa e verso podiam se enquadrar ou se adaptar à literatura infantil, a Comissão optou por definir, com certo consenso, o que não é literatura infantil: textos com explícitos objetivos didáticos e programáticos, técnicos e científicos. Colocavam, assim, no centro dos debates o antigo problema da relação entre útil e agradável na literatura para crianças e sua relação com a instrução e a escola, que marcam a origem do gênero no contexto europeu do século XVIII bem como as traduções/adaptações brasileiras e a produção de livros de leitura para crianças no século XIX brasileiro, pelos "precursores" do gênero que se consolidou com Monteiro Lobato a partir dos anos 1920. Os integrantes da Comissão optaram, então, pela proeminência do caráter estético e recreativo e da forma literária e da “fantasia” sobre o conteúdo instrutivo e, ainda, por incluir livros escritos por crianças. 

Das atividades da CNLI resultaram pareceres, relatórios, artigos, enquetes, concursos e projetos de incentivo à leitura e à produção de livros para crianças, que contribuíram para mapear, identificar e classificar a produção existente até então e promover o debate sobre novas formas de produção cultural, em consonância com o projeto de modernização da nação. Elvira Nizinska da Silva ficou responsável pela organização, em maio de 1936, do Catálogo Preliminar de Obras de Literatura Infantil em Língua Portuguesa (Editadas no Brasil e em Portugal), que reuniu 658 títulos, dos quais 576 publicados no Brasil, e pela proposta de organização de bibliotecas infantis – que deveriam funcionar também como Centro de Cultura e Lazer, a exemplo de iniciativas semelhantes, como a Biblioteca do Pavilhão Mourisco, em 1934, no Distrito Federal, e a Biblioteca Monteiro Lobato, em 1925, na capital paulista –, detalhando aspectos relativos, entre outros, à instalação e à apresentação de uma “lista de livros aprovados e recomendados”, que continha 68 títulos, entre os quais de livros de: Monteiro Lobato (em maior número), Viriato Correa, Thales de Andrade, Arnaldo de Oliveira Barreto, Olavo Bilac, José Lins do Rego, Jorge Amado, Matilde Garcia Rosa, Erico Veríssimo e João Ribeiro (com a tradução, de 1886, de Coração, de De Amicis). A Comissão também organizou uma lista de livros que poderiam ser traduzidos para o português, preocupou-se com as então novas formas de produção cultural, como programas de rádio para crianças, histórias em quadrinhos, gibis, suplementos infantis dos jornais. E promoveu e organizou um concurso de livros infantis, realizado em 1937, com objetivo de estimular a produção de textos originais, em três categorias, conforme faixas etárias das crianças, com premiação em dinheiro, um prêmio específico para gravuras e com definição de critérios de avaliação norteados pelo equilíbrio entre fantasia e realidade, recreação e instrução, com linguagem rítmica e simples e gravuras com cores vivas. A Comissão avaliou 80 livros, e foram premiados autores que já eram ou se tornaram reconhecidos quando começaram a escrever para crianças, indicando o interesse de escritores por esse gênero. Entre eles, estavam: Luís Jardim, Lúcia Miguel Pereira, Marques Rebelo, Graciliano Ramos e Erico Veríssimo. 

Após o golpe de 10 de novembro de 1937 que instituiu o Estado Novo, acentuou-se o caráter centralizador também do MES. Na gestão de Capanema, além de iniciativas importantes no campo das artes, foram fundados, no final de 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, responsável por tombamentos, preservação, pesquisas e edições, e o Instituto Nacional do Livro, responsável pela política nacional do livro e das bibliotecas públicas. Em 1938, além da política de nacionalização do ensino, tornando a língua portuguesa obrigatória, foram criadas a Comissão Nacional de Ensino Primário, que estabeleceu normas e procedimentos para a nacionalização do ensino, a Comissão Nacional do Livro Didático, que determinou as condições de produção, importação, utilização e avaliação do livro didático no País, e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), que passou a ser dirigido por Lourenço Filho. A partir de 1939 – ano em que também foi inaugurada a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, com grande influência no ensino médio e superior –, a CNLI passou a ser vinculada ao Inep, com composição apenas de educadores, permanecendo Lourenço Filho e Elvira Nizinska da Silva até o fim das atividades, em 1941. Em 1939, Lourenço Filho enviou carta ao Ministério da Educação e Saúde, solicitando proibição da venda de livros de aventuras policiais para crianças, pois poderiam prejudicar seu bom desenvolvimento intelectual, psicológico e moral. Pelos mesmos motivos, a CNLI enviou carta à Associação Brasileira de Imprensa, publicada em jornais do Rio de Janeiro, solicitando a colaboração para sugerir aos editores que retirassem notícias de crimes das capas dos jornais. Complementando as medidas centralizadoras do "Ministério Capanema", a partir de 1942 foram promulgadas as leis orgânicas do ensino primário, secundário, normal, industrial, comercial, que permaneceram em vigor até a aprovação, em 1961, da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 

Apesar do período de turbulências políticas, a CNLI contribuiu, sobretudo nos primeiros anos de funcionamento e com participação de prestigiados representantes da intelectualidade literária e educacional, para a institucionalização do debate sobre literatura infantil. Se não "resolveu" o complexo problema original do equilíbrio entre útil e agradável, influenciou decisivamente na consolidação do gênero, na implementação de políticas públicas de educação, cultura, leitura, livro e biblioteca, no incentivo a novos escritores e ilustradores, na consolidação da indústria editorial brasileira voltada para o público infantojuvenil e na expansão da produção teórica e crítica sobre o tema. Destacados exemplos desse processo se encontram: no ensaio "Como aperfeiçoar a literatura infantil" (1943), de Lourenço Filho, conferência proferida a convite da Academia Brasileira de Letras, e no livro Problemas da literatura infantil (1951), de Cecília Meireles, resultante de curso para professoras de Belo Horizonte/MG, em 1949; na criação, em 1968 – durante outro período político conturbado por regime ditatorial –, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, seção da International Board on Books for Young People; no "boom", a partir dos anos 1980, de escritores, ilustradores e editoras especializadas no gênero; e na conquista do "reconhecimento" da literatura infantil brasileira também pela Academia Brasileira de Letras, com a eleição, em 2003, da escritora Ana Maria Machado.  

Maria Mortatti – 03.10.2023