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HENRIQUETA & MÁRIO: FACES ÍNTIMAS DE UMA AMIZADE / MARIA MORTATTI

“Procuro daqui/procuro de lá” e vou reencontrando a poetisa, tradutora, ensaísta e professora Henriqueta Lisboa (Lambari/MG, 15.07.1901 – Belo Horizonte/MG, 09.10.1985). Normalista pelo Colégio Sion de Campanha/MG, acompanhou a família, quando o pai exerceu mandatos legislativos no Rio de Janeiro/DF e, em 1935, na capital mineira, onde Henriqueta exerceu atividades profissionais, como inspetora federal de educação superior, professora de Literatura na Escola de Biblioteconomia de Minas Gerias e de Literatura Hispano-Americana na atual Universidade Católica de Belo Horizonte. Estreou na poesia em 1925, com o livro Fogo fátuo e, nas décadas seguintes, publicou duas dezenas de livros de poesia, além de ensaios literários, de textos em jornais e revistas cariocas e mineiros, de traduções de poemas de Dante Alighieri, Gabriela Mistral, entre outros, e de organização de antologias de poemas e literatura oral para a infância e a juventude. Teve poemas traduzidos em várias línguas, como o francês, inglês, italiano, espanhol, alemão, foi a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras, em 1963, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Comissão Regional do Folclore e manteve diálogo com escritores e intelectuais, como, entre muitos outros, Cecilia Meireles, Gabriela Mistral (que traduziu O menino poeta para o espanhol), Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Recebeu vários títulos e prêmios, entre os quais: Prêmio de Poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, em 1931, pelo livro Enternecimento; Prêmio da Câmara Brasileira do Livro, em 1952, pelo livro infantil Madrinha lua; e, em 1984, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Sobre sua vida e sua obra há diversos estudos em livros, teses, revistas, e sua obra completa, com mais de 2 mil páginas, está reunida em livro organizado por Wander de Melo Miranda e Reinaldo Marques (Peirópolis, 2020).

Procurando daqui e de lá, vou encontrando rastros da amizade entre Henriqueta Lisboa e o poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo Mário de Andrade (09.10.1893 – 25.02.1945) figura central do Modernismo brasileiro. A "amizade amorosa" – nas palavras dela – ou "comunhão feliz" – nas dele – nasceu do encontro em Belo Horizonte em 1939 e se estendeu, entre 1940 e 1945, na intensa correspondência reunida em livro organizado por Eneida Maria Souza (Edusp; Peirópolis, 2010). As 42 cartas, três bilhetes e dois telegramas recebidos por Henriqueta, que ela guardou em uma caixinha de madeira, estão preservadas no Acervo de Escritores Mineiros na Universidade de Minas Gerais. As 40 cartas guardadas por Mário se encontram no Instituto de Estudos Brasileiros na Universidade de São Paulo. A correspondência revela trocas afetivas, com confidências e reflexões sobre assuntos pessoais e poéticos, dando a conhecer faces íntimas vividas intensamente por ambos, que, com personalidades e projetos literários diferentes entre si, deixaram lições sobre essa amizade e sobre a literatura brasileira da primeira metade do século XX. 

Nas cartas, Mário analisa e comenta poemas de Henriqueta, com sinceridade por vezes severa, indicando alterações no estilo simbolista dos primeiros livros dela, outras vezes elogiando seu amadurecimento poético: “você sabe que é sem a menor condescendência que gosto imenso da sua poesia”. No período da correspondência entre ambos, a poesia de Henriqueta foi adquirindo características do Modernismo, como nos livros: Prisioneira da noite (1941), O menino poeta (1943) e A face lívida (1945). Em carta de 24 de março de 1941, Henriqueta revela a Mário a “vontade de fazer um livro de poemas sobre motivos folclóricos para crianças. Examino, por enquanto, as possibilidades, estudo você e outros mestres. Já tenho setenta motivos viáveis, a escolher. Mas não sei. Diga-me o que acha. Nesse período que precede o trabalho estritamente pessoal fico numa preguiça, num pessimismo, num absurdo desânimo. Você sabe o que significa de iluminação para mim uma palavra sua”. Vários poemas do livro foram submetidos à apreciação de Mário, que também indicou a alteração do título inicial Caixinha de música para O menino poeta. Quando o livro foi publicado, ele comentou: “são simplesmente um encanto pros ouvidos, pros olhos, pro corpo todo. O menino poeta, isso achei maravilha integral”. “Esse lirismo que a excetua, uma carícia simples, dor recôndita em sorriso leve e a frase contida – coisas raras na poesia nacional”. E ironizou o silêncio da crítica: “Mas Henriqueta, eu tenho a certeza que esse silêncio indica muito, estão perplexos, e com mal estar. Na verdade carece ter uma alma muito, não digo pura, mas doida, solta, indefesa pra gostar, não só de você que é doida, solta e indefesa, mas especialmente do Menino Poeta. Eu mesmo que adoro o livro, fico 'criticamente' atrapalhado pra falar, não consigo exatamente saber, nessa revoada tão tênue e sutil de lirismo, qual foi sua intenção. (...) Na verdade você não pertence às linhas gerais da crítica de poesia nossa (...) você é um atalho, uma clareira, coisa assim, no caminho. Pra uns fica como pedra no sapato, mas a maioria passa sem pôr reparo. Você clareira minha, terá decerto que se contentar toda a vida, com os que sabem aproveitar a graça divina das clareiras pra descansar e sabem que é nos atalhos que os passarinhos cantam mais." 

A aparentemente improvável amizade entre ambos foi objeto também de especulações sobre ter sido Mário o amor platônico de Henriqueta, já que ambos viveram sós até o fim da vida. Ele, como se sabe, optou pela intransitividade do amor. Ela, tímida e católica, acreditava no matrimônio como compromisso para a vida toda e não se casou “por falta de compromisso mútuo à hora certa e na medida exata” – como afirmou em entrevista de 1969 –, tendo optado por dedicar sua vida à poesia. Muitos poemas de Henriqueta em seu livro Enternecimento, de 1929, foram dedicados a um professor de Educação Física argentino, Tripudio Lomanto, que ela conheceu no Rio de Janeiro e cujo nome permaneceu em segredo, exceto entre alguns familiares mais próximos. Apesar da promessa, sobretudo em cartas apaixonadas, ele foi se "esquivando", e o casamento não se realizou. Esse foi o “desengano do coração” que ela comenta, com certas ironia e mágoa, em resposta à carta em que Mário diz que ela simboliza a amiga a quem ele, antes de conhecê-la, escreveu “Poemas da amiga”, e complementa: “hoje eu sinto que eles são exclusivamente seus e eles foram escritos para você (...) Eu sei que nesta comunhão feliz em que nós dois vivemos, nós nos preferiríamos um pouco mais de mãos, não dadas, mas atadas, você se deixando brutalizar pela vida como eu, ou eu me elevando com mais frequência para as ‘Adivinhas’. Nada impede, Henriqueta, nada impedirá mais aquela atração divinatória, aquela escolha muito pouco livre com que nós nos encontramos. E você me perdoou e eu adorei você – e hoje nós nos amamos com a maior densidade e a maior gratuidade do favor de amigos.” 

A face lívida, livro escrito no período da Segunda Guerra Mundial, Henriqueta o dedicou à memória de Mário. Após o falecimento do amigo, a poetisa continuou sua obra, o elo daquela amizade. Procurando daqui, procurando de lá, dei-me conta da coincidência de datas em que ambos se atam também nas efemérides literárias: Henriqueta faleceu no dia 9 de outubro de 1985, com 84 anos de idade, no dia em que Mário de Andrade estaria completando 92 anos de idade. Encontrei, ainda, a crônica que escrevi em 2021[1], quando dei de presente O menino poeta para um menino então com nove meses de vida, que se encantou com aquela “maravilha integral”. E, nesta data, em que se completam 38 anos da morte de Henriqueta e 130 anos do nascimento de Mário, reencontro, atados na intimidade da estante, "O menino poeta" – "para me ensinar/as bonitas cousas/do céu e do mar" – e “A face lívida”: "Não a face dos mortos./Nem a face/dos que coram/aos açoites/da vida./Porém, a face/lívida/dos que resistem/pelo espanto.//(...) Não a face da estátua/fria de lua e zéfiro./Mas a face do círio/que se consome/lívida/no ardor." 

Maria Mortatti – 09.10.2023

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[1] "Ao menino poeta" é o título da crônica publicada em O primeiro livro de Arthur, de Maria Mortatti (Scortecci Editora, 2022).