Pesquisar

SARAMAGO E A CEGUEIRA DA ARTE DE ESCREVER / JOÃO SCORTECCI

Lendo a biografia de escritor português Saramago (José de Sousa Saramago, 1922 - 2010), Prêmio Nobel de Literatura (1998), autor do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995) e outros, encontrei no seu endereço na Internet (josesaramago.org), algo, que até então, desconhecia, o significado da expressão fulano tem “habilitações literárias”: sabe ler, escrever e contar! Interessante. Sobre a obra “Ensaio sobre a Cegueira”, história da epidemia de cegueira branca numa cidade, declarou: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São mais de 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso." Saramago - planta herbácea, cujas folhas, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres – sobrenome incluído ao “José de Sousa”, por própria iniciativa do funcionário do Registro Civil, de como a família era conhecida na aldeia, escreveu, sobre a arte de escrever: “Dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores. (…) Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias (…)”. Conhecido por não gostar de pontos, parágrafos, travessões e capítulos, declarou: “Gostaria de não interromper nunca a minha escrita, nem com sinais de pontuação nem com capítulos, que tudo fosse simultâneo, o mesmo que ocorre com a realidade: o carro que passa, o fotógrafo que faz uma foto, o vento que mexe os galhos.” José de Sousa Saramago faleceu em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade, em Tías, Província de Las Palmas, Canárias, Espanha. Através da escrita, tentamos dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso. Algo assim. 

João Scortecci

Ler Mais

NÃO TRAGO NADA, NADA MAIS QUE A MINHA POESIA / JOÃO SCORTECCI

Já pratiquei heteronímia. Aqui confesso, sem medo ou vergonha. Deixei de ser réu primário ainda na adolescência e já tenho – quase – 70 anos. Eu o matei sem dó. Foi no braço. O moço – bem mais jovem do que eu – andava chato, fazendo muitas perguntas, tirando o meu sono, querendo atenção além da conta. Um literato intruso. Eu então – numa manhã de sol escaldante – esfolei-o vivo. Bati sem dó. Heterônimos nunca mais! Ele se chamava Ricardo Porto. Era popular nas redes sociais, tinha perfil, e-mails e até biografia. Os heterônimos literários constituem uma personalidade: conjunto complexo e único de características psicológicas que definem como uma pessoa pensa, sente e age, influenciando sua individualidade e as interações com o mundo. Antes de matá-lo – indeciso, talvez – escrevi para o Fernando Pessoa e perguntei sobre sua relação íntima com o Álvaro de Campos. Não deveria: eu sei. Depois que enviei a missiva, arrependi-me, profundamente. Feito estava! Ando lendo o livro “Deixa pra lá - A teoria 'Let Them' ” (Robbins, Mel e Robbins, Sawyer, Best Seller, 2025) e lá aprendi como parar de desperdiçar energia com o que está fora do meu controle e redirecionar o foco para o que realmente importa: Eu! Matei-o, então. A resposta de Pessoa – improvável – chegou. Um bilhete: “Fui como ervas, e não me arrancaram.”. Assinado A.C. Levei o bilhete – e o envelope junto – para uma amiga que conhece profundamente a obra de Fernando Pessoa. Ela olhou, cheirou a carta, o envelope, consultou a caligrafia, o remetente e sentenciou: “Quem escreveu o bilhete não foi o Pessoa, foi o Álvaro de Campos!”. “Isso é possível?”, quis saber. Minha amiga – que pediu para não ser identificada – respondeu: “Sim”. A heteronímia é uma doença cruel, perversa, maligna. Foi até a estante e trouxe o poema abandonado em viagem: “Venho dos lados de Beja. / Vou para o meio de Lisboa. / Não trago nada e não acharei nada. / Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, / E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro. / Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: / Fui como ervas, e não me arrancaram.” Viu e disse: “No momento de responder a sua carta, Pessoa estava possuído, tomado, abduzido. Foi o Álvaro de Campos que assinou a carta!”. Sorte a minha: matei Ricardo Porto sem dó, no melhor do sol escaldante. Digo sempre: venho dos lados do Ceará. Não trago nada, nada mais que a minha poesia. E chega!

João Scortecci
 

Ler Mais

CHARLES BAUDELAIRE E O CATIVEIRO DO POETA / JOÃO SCORTECCI

Maldito cativeiro inacabado! Disse-me: "Faltou-me o tempo que não tinha!". O poeta francês Baudelaire (Charles-Pierre Baudelaire, 1821 – 1867) morreu no dia 31 de agosto de 1867. É considerado um dos precursores do simbolismo, movimento literário da poesia e das outras artes que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao realismo, ao naturalismo e ao positivismo da época. O seu livro "Les fleurs du mal" ("As flores do mal", 1857) é considerado um marco da poesia moderna. A obra, considerada na época imoral, foi atacada violentamente pela imprensa, censurada pela justiça, multada – cabendo ao escritor, 300 francos, e à editora, 100 francos – e foi recolhida sob acusação de insulto aos bons costumes. E mais, seis poemas de "As Flores do Mal" tiveram de ser suprimidos da publicação, condição sem a qual a obra não poderia voltar a circular. Foram eles: "O ideal", "Hino à beleza", "O perfume exótico", "O cabelo", "Um fantasma" e "O gato". Na solitude do espírito, resfolegou: "Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão!". Uma nova edição, acrescida de 35 poemas, foi publicada em 1861. E somente em 1924, ganhou edição completa, com os seis poemas censurados. Baudelaire, pôde, então, deixar o maldito cativeiro. Em 31 de maio de 1949, 92 anos após sua morte, a Sociedade dos Homens de Letras, num processo diante da Corte de Cassação – tribunal de alta instância – reabilitou Charles Baudelaire e seus editores. Baudelaire morreu de sífilis, em Paris, aos 46 anos de idade, sem a realização em vida do projeto de uma edição final de "As flores do Mal", como era o seu desejo. Escreveu: “Ah! pobre! O veneno e o punhal disseram-me de ar zombeteiro: Ninguém te livrará afinal de teu maldito cativeiro.". E nele, espírito maldito, voou livre, no rabo do gato, descabelado, perfumado, imortal fantasma, no Jardim das Flores do Mal. E lá está. 

João Scortecci

Ler Mais

AS ROSAS DO JARDIM DE CARLITO MAIA / JOÃO SCORTECCI

O publicitário Carlito Maia (Carlos Maia de Souza, 1924 – 2002) nasceu na cidade de Lavras, região do Campo das Vertentes, estado de Minas Gerais. Dizia sempre: “Vim ao mundo a passeio, não em viagem de negócios”. Mudou-se para a cidade de São Paulo, no início dos anos 1930, e se tornou um dos mais conhecidos publicitários do País. Carlito Maia foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e autor dos slogans "Lula-lá", "OPTei" e “Sem medo de ser feliz”. Segundo seu depoimento, foi: moleque, lavador de xícaras de café, rebelde, office-boy, contestador, reservista de 2ª categoria do Exército Brasileiro, antifascista, sargento da Força Aérea Brasileira, boêmio, despachante policial, picareta, corretor de seguros, "clochard" – pessoa que vive em meio urbano sem trabalho nem domicílio –, ajudante de despachante aduaneiro, "bon-vivant", tradutor público juramentado... Em 1954, ingressou na Escola de Propaganda do Museu de Arte Moderna. Trabalhou nas agências McCann-Erickson, Atlas, Norton, Alcântara Machado, Magaldi, Maia & Prosperi, P. A. Nascimento, Estúdio 13, Esquire e, finalmente, na Rede Globo, onde permaneceu por mais de 20 anos. Em 1978, foi eleito Publicitário do Ano. Entre suas máximas, figuram: “Uma vida não é nada. Com coragem, pode ser muito.”; “Brasil? Fraude explica”; e “Nós não precisamos de muitas coisas, só uns dos outros”. São dele também as expressões “Tremendão”, “Ternurinha”, “Jovem Guarda” e “É uma brasa, mora!”, esta usada pela primeira vez como título de um show do cantor e compositor Roberto Carlos. Carlito Maia se notabilizou por enviar flores para uma infinidade de estreias de espetáculos teatrais, lançamentos de livros e vernissages. Recebi o meu primeiro buquê de flores, belíssimo e inesquecível, no ano de 1987, quando do lançamento do livro de poesias "A morte e o corpo", e o segundo e último, em 1989, no evento de lançamento da "Antologia Poética de Pinheiros", volume I, na Scortecci Editora na Galeria Pinheiros, 1704, loja 13. Em sua homenagem, foi criado, em 2000, o Troféu Carlito Maia de Cidadania, que premia pessoas que desenvolvem ações sociais em prol da cidadania e na luta pelos direitos humanos. Carlito Maia faleceu no dia 22 de junho de 2002, aos 78 anos de idade. Na minha vida de livros, no poema sem-fim, reescrevo, sempre, a sua melhor “deixa”: “Evite acidentes, faça tudo de propósito!” Assim seja!

João Scortecci


Ler Mais

MENOTTI DEL PICCHIA E A BATALHA PELO LIVRO / JOÃO SCORTECCI

Menotti Del Picchia (1892 – 1988), na Revista PAN – Semanário de Leitura Mundial – Ano II – número 4 – 16 de janeiro de 1936 – página 15, coluna: “O Imperativo da Hora – Modernizar-se ou Perecer”: “O maior inimigo do livro brasileiro é o próprio governo federal. A ele se deve a falta de difusão do único elemento de progresso e de cultura: o livro. Talvez o governo federal não seja um culpado consciente. Talvez não passe de um sono que dormiu e foi embrulhado pelos espertalhões negocistas que superabundam no país. A razão de justificarmos o governo reside no fato de não podermos compreender que o poder público de uma nação possa contribuir para embaraçar a expansão do livro. Seria julgá-lo criminoso demais ou inepto demais. O fato é que, mercê da legislação federal criando o truste do papel brasileiro, milhões de crianças nossas são prejudicadas em benefício da ganância de um grupinho de negociantes sem entranhas. O papel nacional – o pior papel do mundo – é relativamente ao nosso padrão de vida – o mais caro do mundo. Tivesse o governo derrubado a barreira alfandegária que torna impossível a importação de papel estrangeiro e então o problema da cultura nacional estaria automaticamente resolvido (...)”. Menotti Del Picchia foi colunista colaborador da Revista PAN (1935 – 1945), Semanário de Leitura Mundial, do editor e gráfico José Scortecci (1902 – 1988), avô materno do editor e gráfico João Scortecci.

João Scortecci


Ler Mais

ALBALAT E A ARTE DE ESCREVER / MARIA MORTATTI

 No final do século XIX, o escritor, jornalista e crítico literário francês Pierre Marie Antoine Albalat (04.02.1856 – 21.09.1935) resolveu iniciar a publicação “do que tinha aprendido por si só”. Era já autor de livros de poesia, contos, romances e ensaios de crítica literária, secretário da direção do Journal des Débats e amigo de grandes escritores franceses de seu tempo. Entre 1899 e 1905, teve publicados pela editora francesa Armand Colin, quatro “manuais práticos e técnicos” de escrita literária que se tornaram clássicos do gênero: L’art d’écrire enseigné en vingt leçons  (A arte de escrever ensinada em vinte lições) (Armand Colin, 1899); La formation du style par l’assimilation des auteurs (A formação do estilo pela assimilação dos autores) (1901); Le travail du style enseigné par les corrections manuscrites des grands écrivains (O trabalho do estilo ensinado pelas correções manuscritas dos grandes escritores) (1903); Les ennemis de l'art d'écrire. Réponse aux objections de MM. F. Brunetlère, Emile Fagaet, Adolphe Brisson, Rémy de Gourmont, Ernest Charles, O. Lanson, Pélissîer, Octave Uzanne) (Os inimigos da arte de escrever. Resposta às objeções de ...) (1905). Recebeu por duas vezes o Prix Saintour: em 1904, por Le Travail du style ...; e, em 1914, por Comment il faut lire les auteurs classiques français

Criticando os manuais de escrita de sua época, que, por não fazerem demonstrações de estilo, não ensinavam a técnica da escrita, o autor se propunha a “ser guia, para aqueles que não podem ter outros”. Seu projeto consistia em ensinar a escrever “quem quer que não o saiba, mas que tenha o que é preciso para saber”. Por meio de comentários, exemplos e exercícios, trata dos princípios essenciais da arte do estilo, como, entre outros: dom e talento para escrever, importância de leitura de bons autores para a assimilação do estilo por imitação, amplificação ou pastiche. processos de escrita.
 
Os manuais geraram controvérsias e objeções de seus contemporâneos, às quais o autor respondeu em Les ennemis de l'art d'écrire..., mas tiveram ampla circulação na França e continuam sendo editados até os dias atuais. Os dois primeiros volumes foram traduzidos em Portugal pelo filólogo, gramático, lexicógrafo, tradutor e escritor português António Pereira Cândido de Figueiredo (19.09.1846 – 26.09.1925), cuja obra mais conhecida é o Novo dicionário da língua portuguesa, publicado em 1899 e reeditado até 1996.  A primeira edição portuguesa de A arte de escrever... foi publicada em 1913, pela Livraria Clássica Editora (Lisboa) e reeditada em 1921 e 1944; e a de A formação do estilo..., em 1912(?), também com reedições. Não localizei informações sobre traduções dos outros volumes, mas os dois primeiros circularam no Brasil especialmente na primeira metade do século XX. Foram usados para o ensino de literatura em cursos ginasiais e também se tornaram leitura de referência para autores de manuais de literatura e escritores. A arte de escrever..., por exemplo, é citado pelo Padre Antonio da Cruz, professor do colégio do Caraça (Mariana/MG), em seu manual Arte da composição e do estilo (1949), e por escritores, como Monteiro Lobato, que ora critica os “moldes de estilo”, ora explicita, em seus conselhos sobre a escrita e a leitura, a influência das lições do estudioso francês, e também numa carta da personagem Célia, de Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, em que ela pede ao marido que lhe traga de Paris um exemplar do livro. 

No Brasil, durante a segunda metade do século XX, com as mudanças no ensino de literatura, esses manuais (em francês ou em português) ficaram praticamente esquecidos para sua finalidade original. Alguns exemplares podiam ser encontrados em sebos – onde comprei alguns deles, por preços irrisórios, para minhas pesquisas nos anos 1990 –, ou em acervos históricos, para uso por pesquisadores e estudantes em trabalhos acadêmicos e artigos sobre história da educação e dos manuais escolares. Mais de 120 anos depois das primeiras edições francesas, esses manuais continuam atuais. Recentemente, foi lançada nova edição brasileira de A arte de escrever ensinada em vinte lições, pela editora Kírion, com tradução de Rodrigo Gurgel. Tem sido divulgado e usado principalmente como suporte para “oficinas de escrita criativa”, evidenciando o interesse de tantas pessoas de se tornarem escritores e publicarem livros em formatos físicos ou digitais. Se, por um lado, esse fenômeno contribui para a democratização e dessacralização da atividade literária, por outro, chama a atenção quando comparado com o decréscimo de número de leitores e relacionado com os avanços da inteligência artificial generativa, com robôs treinados, não para criações originais, mas para a geração automática – por meio de assimilação/imitação/repetição – de textos, imagens, músicas já existentes, com os quais são treinados por humanos. 
 
Em 1899, Albalat alertava em A arte de escrever: “Estamos inundados de livros. Que será a literatura , quando toda a gente a praticar?"; “essa doença de escrever, que nos invade e que fez desanimar o público”; “Toda a gente pode escrever?”; “Poderemos ensinar a escrever?”; “Devemos escrever?”; “Não haverá já bastante escritores?”. Em defesa de seus manuais de escrita e tentando conciliar possíveis contradições, ele mesmo responde: a literatura é uma vocação, um talento, um dom “que se possui por natureza, mas que se desenvolve depois pelo estudo daqueles que foram e serão sempre os mestres da literatura”. “A admiração conduz à imitação, e a imitação é um meio de assimilar as belezas alheias.” 
 
O que diria, então, Albalat, se estivesse vivo e tomasse conhecimento da "inundação" de livros e autores neste início do terceiro milênio? Ou de suas lições de escrita e estilo – ou as de seus imitadores – servindo de guia no treinamento dos robôs que geram textos, talvez até mais “perfeitos” do que os de humanos, mas muitas vezes meros plágios ou pastiches? Para a sorte dos mestres da literatura e dos leitores argutos e sensíveis, porém, Albalat também advertia sobre os perigos do pastiche, uma das técnicas que ele mesmo ensinava: “a imitação artificial e servil das expressões e dos processos de estilo de um autor” “não pode ser senão um exercício de ginástica literária”; “os escritores mais originais são os mais fáceis de pastichar”, mas “não se pode copiar a alma de um autor”, nem, por certo, nos casos de terceirização por robôs, nem, talvez, de textos psicografados por médiuns. 
 
No contexto atual, certas afirmações teóricas de Albalat – como a de a escrita ser mera transcrição da fala – estão superadas, e suas lições técnicas – como a assimilação/imitação – se tornaram questionáveis. Mas permanece a atualidade da questão de fundo: a arte de escrever literatura e a formação do estilo continuam sendo atividades específicas e profundamente humanas de criação, fruto de talento, inspiração e árduo trabalho intelectual e técnico de e sobre a linguagem... humana. 
 
Maria Mortatti – 24.08.2025
Ler Mais

O LEITOR DE LIVROS E O LEITO DE MORTE / JOÃO SCORTECCI

O leitor de livros é um sujeito estranho. Diferente? Talvez. Esquisito. Fora do padrão. Algo assim. No dicionário, a palavra “padrão” significa “modelo a ser seguido”. Confesso: não gosto do seu significado. Acho maçante, tedioso e enfadonho. Meu avô paterno dizia, sempre: “’Quem balança o rabo é cachorro!”. Desconfio de tudo que é padrão, definitivo, fechado no quadrado. Mas a palavra padrão serve – na falta de outra melhor – para definir tudo que um leitor não é. Ponto. Salvei o arquivo na área de trabalho e lá ficou. Hoje, preparando uma apresentação para uma palestra na Associação Comercial de São Paulo (ACSP), sobre o leitor de livros e o hábito de leitura, resgatei o texto. Quem guarda tem! Salvei-o do lixo! Resmunguei. Na verdade, foi ele – pacientemente – que me salvou. Estranho. Ou melhor: esquisito! Conheço leitores. Muitos. Minha profissão de editor e gráfico ajuda. Faz parte! Minha mãe Nilce foi a primeira leitora voraz que conheci. Minha avó materna, Maria Aparecida, um dia, contou-me o segredo: “Apagávamos as luzes do quarto e ela, escondida, acendia uma vela!”. Risos. Li e reli o que já havia escrito. Dá para aproveitar! Foi o que fiz e aqui estou. Nas duas últimas bienais do livro de São Paulo (2024) e do Rio de Janeiro (2025), o público compareceu, prestigiou e entrou, literalmente, na fila de autógrafos. Ambas foram um tremendo sucesso! Um amigo livreiro, no pé do ouvido, confessou: “Já imaginou esse público todo visitando as livrarias?”. Risos. Seria o máximo, sussurrei pensativo, algo fora do padrão! Aqui com os meus encadernados: por que esse público todo de leitores, compradores de livros, não frequenta as livrarias? Mistério. Juro que não sei. Já escutei mil explicações, mas, até agora, nenhuma razão fora do padrão. Fechei, então, o arquivo e o abri novamente. Releitura. Corrigi um erro de espaço, apaguei um trema que não existe mais e me perdi, no silêncio das razões, refletindo sobre o que o amigo livreiro havia me dito ao pé do ogro das palavras. O leitor de livros é um sujeito feliz e estranho. Acende velas, conversa com o imaginário e – vez por outra – dorme amasiado com um livro no leito de morte. 

João Scortecci


Ler Mais

O TRAVESSÃO E O SINAL DA BESTA / JOÃO SCORTECCI

O travessão é um sinal de pontuação. Uma ponte! Representa conexão, superação de obstáculos, encontros. Simbolismo de desejos, sonhos, possibilidades. Segundo o mestre Evanildo Bechara (1928–2025), autor da "Moderna Gramática Portuguesa" ele serve para substituir vírgulas, parênteses, colchetes, assinalar uma expressão intercalada, indicar uma mudança de interlocutor num diálogo — ou denotar uma pausa forte. Mil e uma utilidades! Eu uso e abuso — exageradamente — dos travessões. Gosto deles! Andei conferindo as minhas poesias e os meus últimos textos — de 2022 pra cá — e notei que eles — os travessões — fazem parte da minha escrita diária. Minhas crônicas, na maioria, publicadas nos volumes da coleção “Menino tipográfico e outras histórias” estão repletas de travessões, de dois pontos, interrogações e exclamações. Uso, cada vez menos, parênteses — mais em datas de nascimento e morte —, nada de divisão em parágrafos, nada de ponto e vírgula e nada de reticências. Lendo sobre Inteligência Artificial — sobre a marca da besta — dos rastros deixados pelos robôs, o travessão — ele mesmo — está na berlinda. Diz a matéria: “Usuários experientes, estudiosos, que conhecem e usam a ferramenta, afirmam que o travessão seria um sinal claro de que um texto foi escrito por um ‘chatbot’“. Afirma, ainda, que as ferramentas tendem a usar frases de transição como “além disso”, “por outro lado” e “em conclusão” de forma sistemática e padronizada. Listou, por fim, 13 itens — dicas relevantes, talvez — a serem observados. São elas: “Ausência de opiniões ou ponto de vista, formalidade excessiva, tom consistente e impessoal, excesso de polidez, estrutura previsível, frases muitos longas, poucas variações e repetições de palavras, falta de erros gramaticais naturais, ideias repetidas, falta de profundidade em tópicos mais complexos, uso de exemplos genéricos e desconexão cultural e contextual.” Ponto. Aqui com os meus travessões, com as minhas travessias, as minhas ilhas, que povoam o meu universo de estrelas: assim fica difícil navegar! Pergunta: “É preciso?” No rádio, o jornalista esportivo Dirceu Marchioli — o Dirceu Maravilha — resfolega: “Eu quero é mais!”. Gosto dele: mesmo sendo um corintiano — sem H. Volto, então, para o travessão, para o sinal da besta. Além disso, por outro lado, em conclusão, respondo-me: viver não é preciso? 

João Scortecci  

Ler Mais

ERA UMA VEZ… OS CONTOS DE FADAS / MARIA MORTATTI

A expressão “era uma vez…” convida leitores e ouvintes – crianças, jovens, adultos e idosos – a adentrar o mundo da imaginação. Conhecida e utilizada para introduzir histórias orais e escritas, hoje mais frequentemente as destinadas a crianças, a expressão indica tempo propositalmente vago e impreciso, como forma de marcar o caráter ficcional da narrativa, convidando o leitor/ouvinte a soltar a imaginação.

Em língua francesa, registra-se o uso da expressão, pela primeira vez, pelo escritor e poeta Charles Perrault (1628–1703), no conto “Les souhaits ridicules” (“Os desejos ridículos”), de 1694, incluído na edição de 1871 de sua obra mais famosa, Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités (Histórias ou contos do tempo passado com moralidades), conhecidos como Les contes de la mêre l'Oye (Contos da mamãe Gansa).

A expressão “era uma vez” e suas variantes, como “houve um tempo”, tornaram-se fórmula e chave mágica também utilizada por outros escritores daquela época, como Madame d'Aulnoy, na França, e do século seguinte, como Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, na França, Dorothea Viehmann (1755–1815), na Alemanha – a contadora de histórias que se tornou fonte de referência para os famosos contos dos irmãos Jacob Ludwing Carl Grimm e Wilhelm Carl Grimm – e Hans Christian Andersen, na Dinamarca.

Em língua inglesa, a expressão correspondente “once upon a time” e variantes têm origem no século XIV, com o poema “Sir Ferumbras”, da canção de gesta – poema épico medieval francês, celebrando os feitos de heróis e escrito para ser declamado – sobre a época do rei Carlos Magno, e com The Canterbury Tales do escritor e filósofo inglês Geoffrey Chaucer. Indicam, ainda, que a expressão como a conhecemos existia desde cerca do ano de 1600, tendo sido consolidada pelas narrativas de Perrault, seguido dos irmãos Grimm e de Andersen, alcançando rápida popularidade e tradução em outros países. E há também os que indicam a existência de histórias similares há mais de 6 mil anos.

Assim nasceram os contos de fadas…

Ao reunir e dar forma literária a narrativas orais na primeira edição, de 1697, de Contos da mamãe Gansa, Perrault inaugurou também um novo gênero literário e sua denominação, “contos de fadas” – histórias fantásticas contendo fadas (do latim “fatum”, que significa destino, fatalidade, fado), seres imaginários, geralmente mulheres com poderes sobrenaturais e mágicos –, expandindo seu alcance para outros públicos, além dos salões parisienses onde eram contadas para entretenimento de adultos. Posteriormente se tornaram, junto da expressão “era uma vez”, características de narrativas para crianças.

Por precedência cronológica, porém, outros estudiosos atribuem à poetisa e tradutora francesa Marie de France as primeiras histórias com fadas, em sua obra Lais, coletânea de 12 poemas narrativos, escritos entre 1160 e 1215. Outros, ainda, atribuem a origem da expressão “contos de fadas” à escritora Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, Baronesa d'Aulnoy, que, em 1690, inaugurou esse gênero literário na França, usando a expressão “Contes de fée”, no conto “L’Île de la Félicité” (“Ilha da felicidade”) contido no romance Histoire d’Hypolite, Comte de Duglas.

Nos anos posteriores, aproximadamente 90 contos de fadas foram publicados por escritores e escritoras, como Gabrielle-Suzanne Barbot, na França. Nas décadas finais do século XVII, diminuiu consideravelmente a publicação desse gênero literário. Perrault passou a escrever para crianças, amenizando passagens de terror e incluindo mais elementos maravilhosos, como fizeram depois os irmãos Grimm e, de certo modo, Andersen, cujas histórias nem sempre têm entrecho ou final feliz.

A história é antiga e nem sempre são consensuais as reivindicações de paternidades e maternidades, denominações e desdobramentos. No entanto, “era uma vez” e “contos de fadas” se tornaram, mais do que fórmulas/clichês, chaves mágicas de matrizes literárias clássicas, com inumeráveis versões escritas, orais, cinematográficas e em mídias contemporâneas, além de inumeráveis estudos e interpretações, como em The uses of enchantment: The meaning and importance of fairy tales (1976) (Psicanálise dos contos de fadas), do austríaco Bruno Bettelheim, e Морфология сказки, (1928) (Morfologia do conto maravilhoso), do russo Vladimir Propp.

E continuam convidando leitores e ouvintes a se deixarem encantar pelo mundo da imaginação, para deleite e satisfação da necessidade humana de fantasia, direito humano básico, nas palavras do crítico literário Antonio Candido.

Maria Mortatti 

---------------

Publicação original: ‘Era uma vez… os contos de fadas’: a origem ancestral das expressões que despertam a imaginação das crianças. The Conversation Brasil, 13 de junho de 2024. Disponível em: https://theconversation.com/era-uma-vez-os-contos-de-fadas-a-origem-ancestral-das-expressoes-que-despertam-a-imaginacao-das-criancas-231121 

Ler Mais

ROLAND BARTHES E O PRAZER DO TEXTO: É ISSO! / MARIA MORTATTI

"(...) as leituras da infância deixam nós a imagem dos lugares e dias em que as fizemos", escreve o francês Marcel Proust (10.07.1871-18.11.1922), no opúsculo Sobre a leitura (Sur la lecture), originalmente prefácio para sua tradução, em 1906, de Sesame and lilies (1865), um dos livros mais conhecidos do esteta inglês John Ruskin. 

Não só as da infância. Uma das experiências recentes de leitura me fez lembrar dessa constatação, de quando e por que li os primeiros volumes de À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), de Proust, e dos lugares e dias de tantas outras leituras de que me lembrei quando o li. Uma, em especial, veio-me involuntariamente à memória, a do livro O prazer do texto (Le plaisir du texte), do escritor e crítico literário francês Roland Barthes (12.11.1915- 26.03.1980), com tradução brasileira de J. Guinsburg (Perspectiva, 198?). Li-o um ou dois anos antes do opúsculo de Proust. Foi indicado por um professor que eu admirava. O exemplar era emprestado da biblioteca da faculdade. 

Em um sábado à noite, talvez do ano de 1987, enquanto esperava o horário para um prazeroso passeio com os amigos, sentei-me na poltrona da sala, com lápis e papel ao lado, e comecei a ler como quem apenas se ocupa de uma distração. Aos poucos, porém, fui penetrando no texto. Levantei-me. Fui para cadeira da mesa de jantar. Aprumei-me. Comecei a anotar. Tudo era descoberta. Desisti do passeio, apesar da insistência dos amigos. Retomei a leitura e assim fui até a madrugada. Na memória ficou uma imagem: o prazer do texto, o prazer de desabotoar o primeiro botão da blusa... Não sei se as palavras de Barthes eram exatamente essas, mas assim gravei na memória. 

Anos depois, comprei um exemplar da tradução brasileira. Localizei o trecho. As palavras eram parecidas, mas o sentido se renovou prazerosamente. E assim foi numa outra noite de sábado, quase quatro décadas depois, quando escrevia o prefácio para o livro Cahier de poésie 3 / Caderno de poesia 3, de Michel Thiollent (Scortecci Editora). Reli o livro de Barthes e lá encontrei minhas anotações de antigos momentos de leitura e dos pequenos pormenores que fizeram renascer conexões intertextuais infinitas e angustiantes com outros autores, com “a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior”, como as macieiras normandas de Gustave Flaubert que Barthes lê a partir de Proust. 

Aquele primeiro botão de sentido cintilou novamente. O prazer do texto é a intermitência. O que seduz é a cintilação da pele entre duas bordas. Assim é a descoberta da relação erótica com os livros que nos escolhem ou escolhemos. Assim foi também com esse livro de Barthes, que despertou em mim o desejo de conhecer sua vasta e sedutora obra. O que faz de um escrito um texto é sua vontade de fruição, seu brio, o ponto onde ultrapassa a tagalerice e arranca do leitor, não um juízo de valor – é bom ou ruim –, mas um juízo de fruição estética: “É isso!”. “O texto de prazer é Babel feliz”.

Maria Mortatti 


 

Ler Mais

EDITH WARTHON, PRESENTE DE MR. DURHAM / MARIA MORTATTI

John Mitchell Durham Jr. (02.02.1929-27.11.2008), natural de Dayton/EUA, imigrou em 1957 para a cidade de São Paulo, Brasil, onde faleceu. No início dos anos 1970, foi meu professor de literatura norte-americana no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (encampada pela Unesp em 1976). Ministrava aulas em Inglês, e também nesse idioma tínhamos de ler os textos literários e redigir trabalhos e provas da disciplina. Mas, quando se tratava de marcar a data de prova, falava sempre em Português, para não haver dúvidas. Durante uma aula em setembro de 1974, ele ofereceu alguns livros como doação. Fui uma das primeiras a aceitar um exemplar de Ethan Frome – com introdução da autora, romance de Edith Wharton, publicado pela Charles Scribner’s Sons, Nova York, sem data, em edição especial para estudantes. Foi assim que conheci a autora. 

Li e gostei da história e da estrutura da narrativa, que se passa na cidade imaginária de Starkfield, região rural da Nova Inglaterra, EUA, com predominância de clima de inverno rigoroso. Ethan Frome se casa com Zeena. Com pouca coisa em comum, a vida do casal se torna insuportável, Zeena fica constantemente adoentada e chama sua prima Martie para ajudá-la. Ethan e Martie se apaixonam; Zeena, desconfiada, manda a prima de volta para sua casa e pede para Ethan levá-la à estação. Inconformados com a separação, os amantes decidem cometer suicídio juntos, num trenó em alta velocidade em direção a uma árvore. Na descida, Ethan se distrai por um instante com a imagem de Zeena na mente, não consegue atingir diretamente a árvore. Ambos sobrevivem. Ele fica coxo de uma perna e Martie, paralítica. Passam a morar os três juntos, dividindo um quarto pequeno. Zeena passa a cuidar da prima e Ethan arrasta a perna como se estivesse acorrentado numa trágica relação da qual nenhum dos três consegue se livrar.

Edith Wharton (Nova York, 24.01.1862 – Saint-Brice-sous-Forêt, 11.08.1937), autora de mais de 40 livros, além de centenas de contos e poemas, foi uma mulher excepcional para sua época. Não se adaptava aos padrões, costumes e papel destinado às mulheres da alta sociedade nova-iorquina a que pertencia sua família Jones. Ocupava-se desde a infância com estudos, leituras e escrita de histórias e poemas. Na adolescência foi desaconselhada pela mãe a parar de escrever para não afastar possibilidades de casamento, já que escritores e artistas, principalmente mulheres, eram vistos com desconfiança. Mas continuou escrevendo contos e romances em segredo, além de escrever, ela mesma, duras críticas imaginárias sobre seus livros. Com 15 anos de idade escreveu um romance – Fast and Loose (Rápido e solto), publicado postumamente em 1938. Com 20 anos de idade, pouco antes da data do casamento com um empresário do ramo imobiliário, ele rompeu o noivado alegando uma suposta predominância intelectual de Edith e suas reprováveis ambições como escritora. Ela se casou depois com Teddy Wharton, também de família aristocrática. Os interesses de ambos eram diferentes, não tiveram filhos, Edith cumpria suas obrigações sociais e continuou escrevendo e publicando regularmente contos em revistas. 

Destacou-se literariamente aos 43 anos de idade, com o sucesso do romance The house of mirth (A casa da alegria), publicado em capítulos iniciados em 1905, na Scribner’s Magazine. Com a história da protagonista Lily Bart que comete suicídio por não conseguir se encaixar nos padrões da aristocracia, Edith conquistou reconhecimento, fama e dinheiro, tornou-se escritora profissional e não parou mais de escrever, ainda que secretamente na cama, todas as manhãs, como contam seus biógrafos. O casal passou a morar em Paris, onde Edith conheceu círculos de escritores e artistas, teve um amante secreto, causando problemas para seu casamento, e se divorciou para não passar o resto da vida como se estivesse morta. Com base em sua experiência, escreveu o romance que se tornou um clássico: Ethan Frome (1911), com adaptação cinematográfica em 1993, dirigido por John Madden. 

Durante a Primeira Guerra Mundial, Edith escreveu um romance sobre aqueles acontecimentos. Para tentar persuadir os EUA a aderirem, abriu hospitais, tratou de doentes, escreveu relatórios. Por seus esforços em prol dos refugiados da guerra recebeu em 1916 a Legião de Honra do governo Francês, a maior honra concedida a estrangeiros por serviços prestados ao povo francês. Às vésperas do armistício, começou a escrever uma de seus romances mais famosos The age of innocence (1920), cuja história se passa 50 anos antes, no mundo em que tinha nascido, como contraposição às ruínas do período pós-guerra. Com esse romance, foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Pulitzer de Ficção, em 1921. A história foi adaptada para o cinema em 1994, com direção de Martin Scorsese. 

Assim como eu, outros estudantes tiveram a oportunidade de conhecer, por meio de Mr. Durham, Edith Wharton e tantos outros escritores norte-americanos em textos originais. Soube depois, pelo site Faculdade de Ciências e Letras da Unesp – Araraquara, que Mr. Durham formou e manteve por décadas na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp – Araraquara, o acervo do Reading Center Prof. John Mitchell Durham, Jr., vários exemplares de mesmos títulos, em textos originais, disponibilizados aos alunos, por empréstimo. Ainda tenho guardado em minha biblioteca aquele exemplar de Ethan Frome com as anotações que fiz na época. Entre elas, estão trechos da introdução feita pela autora, justificando a escolha do tema e da forma: todo tema “contém implicitamente sua própria forma e dimensões. [...] deve ser tratado de forma tão crua e resumida como a vida sempre se apresentou aos meus protagonistas; qualquer tentativa de elaborar e complicar seus sentimentos teria necessariamente falsificado o todo; e o mais interessante da história é sua construção, caracterizada pela simplicidade com que o narrador conta a misteriosa história iniciada no passado da narrativa, sem falsificar sentimentos dos personagens, os “afloramentos de granito”. 

Retomando, quatro décadas depois, o livro e minha história de sua leitura, pude compreender melhor as lições de Mr. Durham. Ao me presentear com o relato do misterioso caso de Ethan-Zeena-Martie, ele me proporcionou também relembrar, mais de 110 anos depois da publicação do livro, a explicação de Edith Wharton sobre os objetivos de um autor: “devem ser sentidos e executados quase que instintivamente pelo artista antes que possa passar para sua criação aquele algo mais imponderável que faz com que a vida circule nela e a preserva um pouco da decadência”.

Maria Mortatti 


 

Ler Mais

DERRIDA E A DESCONSTRUÇÃO DO TEXTO / JOÃO SCORTECCI

O filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) acalma os miolos, minhas inquietações e também as dores da alma! Ele e suas “aporias”, que em grego antigo significa contradição, impasse ou dificuldade. Interessante! Em “O livro da Filosofia” (Globo Livros, 2016, p. 310-313), o filósofo explica a sua famosa frase: "Não há nada fora do texto". Quando escrevo ou quando leio – qualquer coisa, não importa – sempre acho e continuo achando que falta algo. Mania chata!  Textos antigos são apagados e sofrem mudanças, sempre. A saga não tem fim! Derrida resolveu o problema, creio. Lendo sobre o seu método de desconstrução do texto, consegui entender o que o autor chama de “différance”/“diferência” (com “i”), para explicar que todos os textos escritos têm hiatos, buracos, contradições e impasses. Já disse: Derrida acalma os miolos. Digo sempre: odeio reticências – omissão de alguma coisa que não se quer revelar, emoção demasiada, insinuação. Na poesia é deplorável. Antes de conhecer o pensamento filosófico de Jacques Derrida tratava o assunto como “dilemas literários”, quando solução alguma parecia satisfatória ou desejável. Um sofrimento! No meu livro de poesia “A morte e o corpo”, publicado nos anos 1980, tive que colocar, na última página, esta nota: “Dilema literário para não julgar, fazer o poema sem-fim!”. Foi a solução na época. A cada edição do livro reescrevo o texto, sempre imperfeito. Uma dor que não tem fim. Sobre a frase "Não há nada fora do texto", eu faria uma sugestão, um acréscimo. Ficaria assim: "Não há nada fora do texto e nem do contexto". Perdão. Não resisti. Fazer o quê? Nasci assim: exagerado e inquieto. Pensei em finalizar este texto com reticências, três pontinhos e depois escrever “fim”. Desisti. Estou tentando desconstruir meus pecados, meus vazios, meus hiatos e impasses. Em diferências e deferências, claro. 


João Scortecci


Ler Mais

UMA CAIXA DE JOIAS LITERÁRIAS CHINESAS / MARIA MORTATTI

Bibliotecas pessoais, mais do que coleção de livros, guardam caixas de joias literárias garimpadas, escolhidas a dedo. Assim penso cada vez que alguma delas – sem motivo aparente – brilha na estante, entre centenas de outras, oferecendo-se à releitura. Assim aconteceu com a lombada verde-jade e o título branco-pérola de A caixa de joias da cortesã – volume II, coletânea de contos das dinastias chinesas Song (960-1279) e Ming (1368-1644), editado e impresso em Pequim, por Edições em Línguas Estrangeiras, em 1987, e distribuído por Corporação Chinesa para o Comércio Internacional de Livros. 

O volume, com seis ilustrações em bico de pena, contém cinco contos – “O chapéu de feltra esfarrapado”; “A caixa de joias da cortesã”; “O vendedor de óleo e a cortesã”; “O velho jardineiro”; “A vingança de um homem justo” –, selecionados entre mais de duzentas histórias populares chinesas do século X ao XVII, inicialmente manuscritos de contadores de histórias, em linguagem popular, que se desenvolveram como gênero literário e foram publicados em coleções no começo do século XVII. Não há indicação do nome do tradutor para o português, mas pode-se presumir que seja ou uma tradução brasileira “anônima” ou mais provavelmente tradução direta de algum entre os que, como Gladys Yang, Yang Xianyi e Sidney Shapiro, traduziram para o inglês muitas obras da literatura chinesa clássica e moderna, integrando as publicações da Edições em Línguas Estrangeiras, fundada em 1952 e com milhares de publicações, em dezenas de idiomas, sobre assuntos diversos e também material didático para estudantes estrangeiros na China. 

No conto que dá título ao volume se encontra uma narrativa entremeada de alguns versos em tom de comentário, na qual é contada a história de amor protagonizada por Décima, a mais linda cortesã da casa da velha senhora e a mais cobiçada pelos homens. Li, filho de alto funcionário imperial e estudante do Colégio Imperial de Pequim, para usufruir da companhia de Décima, gastou todo o dinheiro que o pai lhe dava. Tornaram-se amantes, juraram amor eterno e, apesar das suspensão dos pagamentos e ordens do pai para que ele retornasse, decidiram libertá-la da casa e da condição de cortesã para se casarem. Depois de muitas dificuldades para Li conseguir o dinheiro e as duras condições impostas pela velha senhora para libertá-la, Décima ganhou de uma cortesã uma caixa com a recomendação de somente abri-la em caso de necessidade e o casal partiu em viagem, sem saber ao certo aonde ir sem dinheiro, temendo voltar à casa do pai dele, depois de ter gastado e com uma cortesã o dinheiro que o pai lhe dera e ainda querer se casar com ela. Durante a viagem, Li encontrou o astuto jovem Sun, aceitou seu convite para beber, contou a ele sua história, ouviu seus conselhos e se convenceu a vender Décima para Sun, pois, assim, Li poderia voltar para a casa do pai com dinheiro e sem ofender a família com uma esposa cortesã. Quando Li conta a Décima sua decisão, sentindo-se traída e abandonada pelo homem que lhe jurara amor eterno, aparentemente aceitou ser vendida, enfeitou-se, perfumou-se e abriu a caixa que havia ganhado na partida. Foi abrindo gavetas de dentro da caixa, cada uma com muitas pedras preciosas, flautas de jade e peças de ouro, jogando-as no rio. Chorando de remorso, Li tentava impedi-la, sem sucesso. Depois de contar, em voz alta para as pessoas que se juntaram ao redor do barco, sua história e a traição de Li que a abandonou no meio do caminho, Décima agarrou o cofre, saltou no rio e nunca mais foi encontrada. Li enlouqueceu e Sun, sentindo-se perseguido pelo fantasma de Décima, adoeceu e definhou até morrer. A narrativa termina com estes versos: “Aqueles que nunca amaram devem ficar silenciosos;/ Não é fácil saber quanto vale o amor;/ E ninguém a não ser os que dão valor à constância/ Merece o nome de amante nesta terra”.

O enredo se passa em 1592, no contexto da invasão da Coreia pelo general japonês Hideoshy, no período Wan Li, quando o imperador concordou com o novo sistema de vantagens para os que tinham dinheiro, como facilidades nos estudos dos filhos de funcionários para adquirirem lugar no Colégio Imperial. Passados mais de quatro séculos e em contexto social e geográfico bastante diverso, essa história ainda encanta de diferentes pontos de vista; a mim, pelo realismo lírico com que são representadas as relações de poder e amorosas, especialmente a condição das mulheres. E o reencontro e a releitura dessa caixa de joias chinesas – que garimpei, escolhi a dedo e comprei por US$ 2,50, no dia 16 de maio de 1990, não lembro onde... –  fez-me pensar que a leitura é também um espécie de amor; não é fácil saber quanto valem joias literárias e somente os que lhes dão valor merecem o nome de amantes da literatura...

Maria Mortatti 


Ler Mais

FERNANDA LOPES DE ALMEIDA, UMA CLARA LUZ NA LITERATURA INFANTIL / MARIA MORTATTI

Clara Luz, a fadinha transgressora, Soprinho, que torna as pessoas desejosas de fazer coisas, e Glorinha, a menina perguntadeira, foram as primeiras personagens que conheci dos clássicos da literatura para crianças criados pela escritora e psicóloga Fernanda Lopes de Almeida ([18.08].1927 – 27.12.2023). Pertencia a uma “família das letras”: era neta da escritora Julia Lopes de Almeida e do poeta e jornalista Filinto de Almeida, ambos entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras, e sobrinha-neta da escritora e educadora Adelina Lopes Vieira e presumivelmente parente da poeta Presciliana Duarte de Almeida, membro- fundadora da Academia Paulista de Letras, onde ocupou cadeira n. 8, cuja Patrona é Barbara Heliodora, sua bisavó. Como conta em entrevista recente para a revista Aletria, cresceu na casa da família no Rio de Janeiro e, mesmo antes de ser alfabetizada, gostava de ouvir histórias e contos de fadas clássicos que a mãe contava e a leitura já se tornara hábito. Por volta dos oito anos de idade começou a escrever histórias e poemas, mas não foi como sua avó, “que a isso se dedicou a vida inteira”. Formou-se em Psicologia, exerceu a profissão por 25 anos trabalhando com crianças e escrevia contos e crônicas para adultos – com influências da obra literária da avó Júlia –, que foram  publicados em jornais e revistas. Mais tarde, quando começou a escrever para crianças, a principal influência foi Monteiro Lobato, mas logo se libertou pois “já estava muito mais consciente do que queria dizer e como dizê-lo”.

Iniciou a carreira literária para crianças em 1970, integrando uma geração de novos escritores que revolucionaram a literatura infantil e juvenil – como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo – apresentando novos temas e formas de escrever para o público infantil, com textos e ilustrações sensíveis e poéticos, com objetivo de divertir e propiciar leitura prazerosa, sem preocupação de ensinar. Publicou mais de duas dezenas de livros nas décadas seguintes, com muitas edições e milhares de leitores até os dias atuais e que se tornaram clássicos da literatura infantil.

Entre os que me marcaram, estão: os dois livros de estreia da autora no gênero, A fada que tinha ideias – ilustrações de Edu –, adaptado para peça teatral em 1982, que recebeu Troféu Mambembe pelo Melhor Texto de Teatro Infantil, e Soprinho – ilustrações de Odilon Moraes –, que recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro Infantil – 1971, da Câmara Brasileira do Livro e integra o acervo permanente da Biblioteca Internacional para a Juventude; e A curiosidade premiada – ilustrações de Alcy Linhares, que recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte em 1978.

Clara Luz, Soprinho e Glorinha também fizeram parte de minhas aulas na educação básica e na universidade. Com eles e as professoras de horizontologia e D. Domingas, aprendemos que, quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda; que podemos ver tudo de forma diferente e encantada, quando nos deixamos levar pelo sopro da imaginação; e que, se para certos adultos prêmio só existe quando se pega nele, para as crianças – e adultos também – a curiosidade é premiada com o autoconhecimento e o conhecimento do mundo. 

Não tenho esses livros em mãos. Levei-os para ler com meu neto, deliciamo-nos com a leitura e ficaram na biblioteca dele. Mas são histórias presentes até hoje em minha memória, clássicos que independem do tempo e da faixa etária. Uma clara luz e um duradouro sopro de renovação na literatura para crianças – e adultos também. Basta senti-los. Assim como disse a longeva autora em entrevista para a revista Crescer: “Nunca penso em faixa etária exata, pois as crianças são tão diferentes umas das outras. E acho, como muitos acham, que o bom livro infantil interessa também ao adulto. ... o que faz um livro ser realmente bom? Não se sabe, ou melhor, não se traduz em palavras. Sente-se”.

Maria Mortatti – 13.05.2025 

Ler Mais

BEST-SELLER CARIMBADO / JOÃO SCORTECCI

“Queremos publicar um livro!” Foi o que escutei do jovem casal. “Dueto literário?”, perguntei. “Não. Livro solo”, explicou o marido, olhando para a esposa. Abriram uma pasta de elástico azul e tiraram um maço de poemas. Mais de 200, creio. O marido, então, começou a fazer uma triagem, entregando para a esposa os poemas selecionados por ele. Estranho. “Essa não! Essa também não!” Foi fazendo uma pilha à parte, com os rejeitados. A esposa observava tudo, calada, aparentemente concordando com a seleção. O marido explicou: “Queremos um livro com 100 páginas, no máximo”. “Selecionem, então, 90 poemas.  As demais páginas usaremos para compor as folhas de rosto, sumário, dedicatória e cólofon”, expliquei. Levaram quase uma hora na triagem. “E o título?”, perguntei. Ele escreveu o título num pedaço de papel e me entregou. “E a dedicatória?” A autora escreveu algumas linhas num pedaço de papel e mostrou para o marido. Ele olhou – fez cara azeda – e riscou dois nomes da lista de homenageados. “Esse não! Esse também não!” A esposa balançou a cabeça, concordando. Pronto. Fechamos o contrato e iniciamos os trabalhos de edição. O casal optou por fazer o serviço de revisão na editora. O marido – sempre junto – sentou ao lado da autora e acompanhou a revisão, linha por linha. Na época, ganharam dos funcionários da editora o apelido de “Casal 20”, série de sucesso da televisão americana criada pelo romancista Sidney Sheldon e protagonizada pelo casal rico e simpático Jonathan (Robert Wagner) e Jennifer Hart (Stefanie Powers). Risos. Quando os livros ficaram prontos, o marido veio buscá-los. Sozinho. Conferiu os exemplares e, sentado no banco da recepção da editora, na época localizada na Galeria Pinheiros, releu toda a obra, página por página. Agendou, então, a data do lançamento e, para a noite de autógrafos, fez uma exigência: “Quero uma cadeira ao lado da minha esposa!”. E assim foi. Muita gente no evento. Família e amigos. Coquetel, música e um fotógrafo contratado por ele. A esposa autografava e entregava o livro para o marido, que lia a dedicatória e, com um carimbo, validava o texto escrito. Não saiu nenhum livro sem o carimbo. Eu juro! Estranho foi receber de presente o meu exemplar, o último da noite. Tinha dois carimbos na folha de rosto. Um no início da dedicatória e outro, no final. Desconheço a razão dos dois carimbos. Pensei, no início, tratar-se de um erro, já que o primeiro carimbo estava meio apagado, com falhas de impressão. Com o tempo, desconfiei dos dois carimbos, um no início e outro no final da dedicatória, como limitadores de espaço. Qualquer palavra fora dos limites que surgisse depois, seria sinal de cumplicidade, de traição. Algo assim. O casal, depois de alguns anos, separou-se. A esposa poeta ligou, pedindo ajuda. Explicou: “O meu ex-marido entrou na Justiça cobrando parte dos lucros sobre a obra, segundo ele, um best-seller, com milhares de exemplares vendidos”. Imaginação fértil. E nada mais.   

João Scortecci


Ler Mais

FERNANDO, UMA PAIXÃO DE POETA / JOÃO SCORTECCI

Fernando era o nome dele. Tinha 18 anos de idade e era a paixão desbragada da menina poeta, olhos grandes, 16 anos de idade. Quem me ligou na editora foi sua mãe, indicação de uma professora de Letras, autora da Scortecci. Disse-me: “Quero publicar o livro de poesia da minha filha!”. Marcamos, então, uma data para reunião na editora. O livro estava datilografado em papel sulfite e tinha cerca de 60 páginas. Um poema por página, sumário e dedicatória. Título do livro: “Fernando, uma paixão!”. Comecei, então, a folheá-lo, batendo olhos, numa leitura dinâmica. Dedicatória: “Para o Fernando, amor da minha vida”. Li alguns poemas. Parei. Todos contavam a história do amor da poeta pelo príncipe encantado Fernando. Um diário. Olhei para a mãe e ela – adivinhando o meu incômodo – declarou: "Scortecci, preciso publicar esse livro. Essa menina – olhou para a filha sentada ao seu lado – está me deixando maluca. Já infernizou a vida do pai. Chora pelos cantos da casa, não come, não dorme e fala que vai cortar os pulsos”. A jovem poeta balançou a cabeça validando a história. Risos. "Eu quero!”, exclamou, batendo os pés no chão. Nos poemas do livro, eram relembrados o dia em que a poeta conheceu o Fernando, o primeiro encontro dos dois, a paquera, o primeiro olhar, a troca de bilhetes de amor, tardes no cinema e no shopping, o primeiro abraço, os primeiros beijos, quando escondidos viajaram para Ubatuba, e o dia em que ficaram juntos, fizeram amor e juraram amor eterno. Aceitei. Propus uma edição de 100 exemplares, tiragem mínima. A poeta me olhou e sorriu, radiante. Fechamos o contrato e começamos a trabalhar na edição do livro: digitação, diagramação e arte de capa. A poeta queria lançá-lo no mês de junho, na festa junina da sua escola. Disse-lhe, então: “Temos pouco tempo! Vamos precisar correr e seguir um cronograma rígido. Anotei as datas num papel. A poeta seguiu tudo à risca. No dia da liberação dos arquivos para impressão, perguntei-lhe: “E o Fernando?”. Ela me olhou e disse, sorrindo: “É surpresa!”. Estava eufórica. Gelei. O livro entrou na gráfica no início do mês de junho. Dez dias depois – prazo normal do serviço gráfico – o livro ficou pronto. Liguei para lhe dar a boa nova. A poeta não estava em casa. Deixei recado. Não retornou. Alguns dias depois liguei de novo, para falar diretamente com a sua mãe. Ela atendeu: “O livro 'Fernando, uma paixão’ está pronto”. Silêncio. Agradeceu e desligou. Foi seca, formal. Na manhã do dia seguinte apareceu de surpresa na editora, sozinha. Disse-me: “Sr. Scortecci, poderia, por favor, destruir todos os exemplares?”. “O que aconteceu?”, quis saber. Contou-me, então: “O Fernando terminou o namoro e trocou minha filha pela sua melhor amiga”. Silêncio. Pagou-me pelo serviço e foi embora. Esperei um mês antes de destruir os livros. Poderia haver um retorno, pensei. Mas nada aconteceu. Então, guilhotinei-os. Nunca mais soube da poeta e seus versos de amor. Não conheci o seu Fernando. Hoje, quando vejo um livro com dedicatória para um Fernando, o coração bate forte. Coisas de poeta. Depois passa e dói. 


João Scortecci

Ler Mais

NÃO ACHO JUSTO SENTIR DOR / JOÃO SCORTECCI

Vez por outra recebo pedido de autor solicitando avaliação literária sobre o seu trabalho. Alguns desconhecidos. Pergunto, sempre: “Livro de poesia?”. Confesso: gosto do gênero, caminhos em que me sinto confortável. Recuso prosa. Não é a minha praia. Não tenho o conhecimento profissional para tanto.  Recomendo, então, procurar ajuda de profissional especializado. O mercado oferece boas opções. Quando o autor não conhece alguém para fazer o serviço e pede ajuda, eu recomendo. No ano de 2022, no início da pandemia de Covid-19, recebi uma solicitação de leitura crítica para um romance com mais de 400 páginas. Autor desconhecido. Procurei no cadastro da editora e não o encontrei. Pesquisei seu nome no Google, sem sucesso. Mistério. No corpo do seu e-mail uma ordem expressa: “Quero que você seja sincero!”. Fiquei surpreso, confesso. Como não poderia ser?, pensei. Respondi, então, educadamente: “Não sou a pessoa indicada para o serviço. Posso indicar ajuda profissional.” Algo assim. Enviei. No mesmo dia – algumas horas depois – veio uma resposta: “Não acho justo pagar por uma leitura crítica. O serviço deveria ser grátis, espontâneo e honesto!”. No parágrafo abaixo escreveu, ainda: “Vou procurar alguém com mais sensibilidade que você!”. Pensei, de pronto, mandá-lo para a PQP e mandar enfiar o livro no caneco. Respirei fundo. Curioso decidi perguntar qual era a sua profissão. Ele respondeu, logo em seguida: “Eu sou cirurgião dentista!”. Antes de deletá-lo do meu mundo, escrevi uma derradeira resposta: “Não acho justo sentir dor. Mas acontece!”. Algo assim. Não enviei o e-mail. O danado do e-mail fico girando na saída da caixa do Outlook. Ficou lá, espontaneamente. Depois travou e deu erro. Então o apaguei, gratuitamente. Fechei a boca e liguei para minha dentista. Descobri que estava com dor de dente e a gengiva inflamada. Acontece!

João Scortecci   


Ler Mais

APOSTA É APOSTA E EU PERDI / JOÃO SCORTECCI

A Scortecci Editora funcionou durante 10 anos, de 1982 até 1992, na Galeria Pinheiros, na Rua Teodoro Sampaio, n. 1.704, loja 13. Usávamos o espaço da galeria para recitais e lançamentos de livros, local com capacidade para mais de 300 pessoas. Naquela época, eu colaborava na organização dos eventos e minha presença fazia parte do negócio. Distribuíamos folhetos, marcadores de livros e cartões de visita. Era na época a única forma de captar novos autores. Funcionava! Não existiam ainda os celulares e a Internet era um luxo, para poucos. A editora tinha na loja uma linha de telefone LP, extensão do telefone alugado de um vizinho. O correio e o boca a boca eram as únicas ferramentas disponíveis para divulgação e promoção de um evento literário e cultural. O público comparecia em peso e prestigiava os eventos. Quando saía uma pequena nota num jornal de grande circulação era a glória. A coluna mais lida na época era a do jornalista Henrique Novak, intitulada “Página do Livro”, no jornal Diário Popular. São dessa época as apostas editor versus autor, para quem acertasse a quantidade de livros vendidos na noite de autógrafos. Apostávamos – quase sempre – uma caixa de cerveja. Eu sempre ganhava! Usava uma matemática simples e infalível. O autor dizia: “Vou vender 200 exemplares”. Eu, então, jogava – sempre – na metade: “Você vai vender 100”. Ganhava quem acertasse o número por aproximação. Eu sempre levava vantagem porque de 150 exemplares para baixo o número era meu. Confesso: nunca faltou cerveja na geladeira da editora. Uma vez, apenas uma única vez, perdi a aposta. O autor jogou alto: “Vou vender 200 exemplares”. Apostei. Vou ganhar fácil, pensei. Quando recebi o livro pronto da gráfica – alguns dias antes do evento – quase morri do coração. Era um livro com 100 sonetos e cada soneto dedicado a duas pessoas distintas. Desconfiei. O autor retirou os convites impressos e, ali mesmo, na recepção da editora, começou o seu trabalho de endereçamento. Organizado e com caligrafia primorosa. Virava o convite impresso e no verso em branco copiava uma mensagem tirada de um caderno de anotações. Escrevia, algo assim: “Maria, você sabe que gosto muito do seu esposo. Tenho por ele carinho e respeito. Eu pretendia fazer-lhe uma surpresa, mas minha esposa aconselhou-me a não fazer isso. Seria deselegante. Resolvi, então, contar a surpresa somente para você. Fiz no livro uma homenagem especial ao seu marido. Uma surpresa!". A galeria naquela noite lotou de gente. As pessoas chegavam no caixa e pediam 5, 10 e 15 exemplares do livro. Lembro que um homem idoso pediu um pacote fechado com 25 exemplares. Disse em voz alta: “O meu filho está sendo homenageado no livro. Vou levar livros para toda a família!”. Naquela noite, o sonetista autografou mais de 300 exemplares. Matemática simples e infalível. Dedicou cada soneto para duas pessoas distintas. Aposta é aposta e eu perdi.

João Scortecci

 

Ler Mais

LIVRO EM SILÊNCIO E PONTUAL / JOÃO SCORTECCI

O convite foi impresso na Gráfica Scortecci. Dados: título do livro, nome do autor, data do lançamento, horário e local. Do lado esquerdo, a capa do livro e, embaixo da ilustração, os dados técnicos da obra: formato, assunto, número de páginas e ISBN. Convite padrão, nada diferente, apenas um detalhe estranho. No horário estava impresso: “19h30 – em ponto”. Quando vi o convite questionei: “Isso está certo?”. Responderam: “Exigência do autor”. Achei estranho, mesmo assim liberei o convite para impressão. O evento aconteceria no final do mês de maio, na cidade de Santo André/SP, no espaço de uma associação cultural mística. Não conhecia. Quando o autor veio retirar os convites, fez questão de me convidar para o lançamento e eu confirme presença: “Eu vou!”. Na época não existia ainda celular – e muito menos GPS. Usávamos com propriedade o Guia Quatro Rodas, peça obrigatória. Sai de Pinheiros às 17h, em ponto. Cheguei ao endereço 30 minutos antes do horário marcado. No local, apenas o autor. Cerimonioso, vestido com uma capa preta, anel e um bastão de madeira, mostrou-me o local do evento. Um salão. Chão de madeira, quadros de fotos de ilustres nas paredes, cortinas de veludo vermelhas, relógio de parede no canto e no centro, um candelabro girante no teto. Algumas lâmpadas estavam queimadas. O local parecia velho e sujo. No centro do salão, uma mesa retangular, com 24 cadeiras. À frente de cada cadeira, um exemplar da obra do autor, pratos de papelão, garfos e facas de plásticos. Nada mais. O autor mostrou o meu lugar e pediu, então, que eu sentasse. Sentei. Ele ocupou a cabeceira da mesa, no lado oposto à entrada e ficou em silêncio. Perguntei-lhe: “Você não vai vender o livro?”. “Não. Somos 24 pessoas”, explicou. Às 19h30, em ponto, as pessoas entraram na sala e tomaram os seus lugares. Tudo em silêncio. Nenhuma pessoa jovem. Apenas duas mulheres. Foram servidos sanduíche de pão com queijo e guaraná em copo de papel. As pessoas comeram o sanduíche, tomaram o guaraná e pontualmente, às 20h, se levantaram e foram embora, em silêncio. Um detalhe importante: os exemplares estavam autografados. Inclusive o meu. Permaneci sentado. O autor se levantou e me disse: “Boa noite!”. Foi o que fiz. Entrei no meu Uno Mille branco e voltei para a cidade de São Paulo. Foi assim – exatamente – como tudo aconteceu. O lançamento mais estranho e místico em 43 anos de editora.


João Scortecci

Ler Mais

MEDO, O MAIOR INIMIGO DO ESCRITOR / JOÃO SCORTECCI

São muitos os inimigos de um escritor, iniciante ou não! José Francisco – indicação de um amigo dono de uma pequena livraria – ligou-me e quis saber de pronto: “Escrevi um romance e quero publicá-lo: como funciona?”. “Parabéns! O livro está pronto?” Pergunta obrigatória. "Quase!”, respondeu-me. “Falta o quê?” José Francisco, então, soltou a língua e tentou resumir o enredo da sua ficção, sem sucesso. Foi repetitivo, confuso. Parecia ansioso e coberto de medo. “O livro é um espelho da minha vida, com ação, suspense e mistério. Dei uma floreada!”, explicou. “E quando você termina o livro?”, insisti. “Logo!” Muitos escritores ficam no “logo” e, infelizmente, morrem ali mesmo, antes do prelo. Não conseguem terminá-lo. As razões? São muitas. Medo de não agradar ao público leitor, de se expor além da conta, de ser julgado pelos amigos, de receber crítica cruel nas redes sociais, de virar motivo de piada na família e na profissão, de descobrir – da pior maneira possível – que não é criativo, sua história é comum e beira o ridículo. Não é fácil. Existe uma distância imaterial, entre o “quase” e o “pronto”. Medo é o estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo. Nos anos 1990 publiquei um livro de um empresário do interior de Minas Gerais. Poucos exemplares. Enviou-me passagem, providenciou hospedagem e eu fui ao lançamento. Evento lindo, num clube da cidade. O livro não foi vendido e foi autografado previamente para cada um dos amigos, personalidades e familiares da cidade. A festa terminou por volta da meia-noite. Fui para o hotel e caí na cama, morto de cansaço. O interfone do quarto 11 – não esqueço até hoje o número – tocou às quatro e pouco da manhã. Já estava acordado, pronto para voltar para São Paulo. Era o autor empresário e sua esposa. Que susto! Desci e os encontrei na recepção do hotel. Estava transtornado, fora de controle e chorava muito. “O que aconteceu?”, perguntei. “Precisamos recolher todos os livros! Eu me arrependi! O que os meus amigos vão pensar de mim. Estou arruinado!”, repetia, gritando copiosamente. Sentamo-nos no saguão do hotel e começamos a conversar sobre o livro. Era de reminiscências poéticas e bem escrito. Reli lá mesmo e lhe disse: “Não encontrei nada que o desabone”. O autor começou a passar mal, provavelmente à beira de um infarto. Sua esposa, então, sugeriu: “Vamos pegar o carro e recolher todos os livros”. No início, achei a ideia uma maluquice. Depois, com calma, concordei: “Cidade pequena, livros doados, seguindo uma lista prévia de pessoas todas conhecidas... Vamos!”. Fomos primeiro à casa do prefeito e depois às dos vereadores e políticos da cidade, do padre, do delegado e dos fazendeiros da região. Todos devolveram o exemplar, sem drama ou perguntas maiores. “Quem ficou faltando da lista?”, quis saber. Alguém disse: “Apenas o Luiz Antônio, amigo de infância e sócio”. Fácil, pensei. Luiz Antônio não abriu a porta e respondeu pela janela entreaberta: “Não devolvo! Nunca! É meu”. O autor desmaiou ali mesmo e foi conduzido desacordado para a Santa Casa da cidade. E a história ficou por isso mesmo. Vez por outra busco na Internet o livro pelo título e pelo nome do autor. Nada! Nunca mais nos falamos. O poeta empresário mineiro faleceu em 2022, aos 82 anos de idade. Sempre que pergunto a um escritor se o seu livro está "pronto", lembro dessa história. Medo é medo: estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo de ter um amigo FDP. De poesia também se pode morrer.  

João Scortecci       


Ler Mais