No final do século XIX, o escritor, jornalista e crítico literário francês Pierre Marie Antoine Albalat (04.02.1856 – 21.09.1935) resolveu iniciar a publicação “do que tinha aprendido por si só”. Era já autor de livros de poesia, contos, romances e ensaios de crítica literária, secretário da direção do Journal des Débats e amigo de grandes escritores franceses de seu tempo. Entre 1899 e 1905, teve publicados pela editora francesa Armand Colin, quatro “manuais práticos e técnicos” de escrita literária que se tornaram clássicos do gênero: L’art d’écrire enseigné en vingt leçons (A arte de escrever ensinada em vinte lições) (Armand Colin, 1899); La formation du style par l’assimilation des auteurs (A formação do estilo pela assimilação dos autores) (1901); Le travail du style enseigné par les corrections manuscrites des grands écrivains (O trabalho do estilo ensinado pelas correções manuscritas dos grandes escritores) (1903); Les ennemis de l'art d'écrire. Réponse aux objections de MM. F. Brunetlère, Emile Fagaet, Adolphe Brisson, Rémy de Gourmont, Ernest Charles, O. Lanson, Pélissîer, Octave Uzanne) (Os inimigos da arte de escrever. Resposta às objeções de ...) (1905). Recebeu por duas vezes o Prix Saintour: em 1904, por Le Travail du style ...; e, em 1914, por Comment il faut lire les auteurs classiques français.
Criticando os manuais de escrita de sua época, que, por não fazerem demonstrações de estilo, não ensinavam a técnica da escrita, o autor se propunha a “ser guia, para aqueles que não podem ter outros”. Seu projeto consistia em ensinar a escrever “quem quer que não o saiba, mas que tenha o que é preciso para saber”. Por meio de comentários, exemplos e exercícios, trata dos princípios essenciais da arte do estilo, como, entre outros: dom e talento para escrever, importância de leitura de bons autores para a assimilação do estilo por imitação, amplificação ou pastiche. processos de escrita.
Os manuais geraram controvérsias e objeções de seus contemporâneos, às quais o autor respondeu em Les ennemis de l'art d'écrire..., mas tiveram ampla circulação na França e continuam sendo editados até os dias atuais. Os dois primeiros volumes foram traduzidos em Portugal pelo filólogo, gramático, lexicógrafo, tradutor e escritor português António Pereira Cândido de Figueiredo (19.09.1846 – 26.09.1925), cuja obra mais conhecida é o Novo dicionário da língua portuguesa, publicado em 1899 e reeditado até 1996. A primeira edição portuguesa de A arte de escrever... foi publicada em 1913, pela Livraria Clássica Editora (Lisboa) e reeditada em 1921 e 1944; e a de A formação do estilo..., em 1912(?), também com reedições. Não localizei informações sobre traduções dos outros volumes, mas os dois primeiros circularam no Brasil especialmente na primeira metade do século XX. Foram usados para o ensino de literatura em cursos ginasiais e também se tornaram leitura de referência para autores de manuais de literatura e escritores. A arte de escrever..., por exemplo, é citado pelo Padre Antonio da Cruz, professor do colégio do Caraça (Mariana/MG), em seu manual Arte da composição e do estilo (1949), e por escritores, como Monteiro Lobato, que ora critica os “moldes de estilo”, ora explicita, em seus conselhos sobre a escrita e a leitura, a influência das lições do estudioso francês, e também numa carta da personagem Célia, de Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, em que ela pede ao marido que lhe traga de Paris um exemplar do livro.
No Brasil, durante a segunda metade do século XX, com as mudanças no ensino de literatura, esses manuais (em francês ou em português) ficaram praticamente esquecidos para sua finalidade original. Alguns exemplares podiam ser encontrados em sebos – onde comprei alguns deles, por preços irrisórios, para minhas pesquisas nos anos 1990 –, ou em acervos históricos, para uso por pesquisadores e estudantes em trabalhos acadêmicos e artigos sobre história da educação e dos manuais escolares. Mais de 120 anos depois das primeiras edições francesas, esses manuais continuam atuais. Recentemente, foi lançada nova edição brasileira de A arte de escrever ensinada em vinte lições, pela editora Kírion, com tradução de Rodrigo Gurgel. Tem sido divulgado e usado principalmente como suporte para “oficinas de escrita criativa”, evidenciando o interesse de tantas pessoas de se tornarem escritores e publicarem livros em formatos físicos ou digitais. Se, por um lado, esse fenômeno contribui para a democratização e dessacralização da atividade literária, por outro, chama a atenção quando comparado com o decréscimo de número de leitores e relacionado com os avanços da inteligência artificial generativa, com robôs treinados, não para criações originais, mas para a geração automática – por meio de assimilação/imitação/repetição – de textos, imagens, músicas já existentes, com os quais são treinados por humanos.
Em 1899, Albalat alertava em A arte de escrever: “Estamos inundados de livros. Que será a literatura , quando toda a gente a praticar?"; “essa doença de escrever, que nos invade e que fez desanimar o público”; “Toda a gente pode escrever?”; “Poderemos ensinar a escrever?”; “Devemos escrever?”; “Não haverá já bastante escritores?”. Em defesa de seus manuais de escrita e tentando conciliar possíveis contradições, ele mesmo responde: a literatura é uma vocação, um talento, um dom “que se possui por natureza, mas que se desenvolve depois pelo estudo daqueles que foram e serão sempre os mestres da literatura”. “A admiração conduz à imitação, e a imitação é um meio de assimilar as belezas alheias.”
O que diria, então, Albalat, se estivesse vivo e tomasse conhecimento da "inundação" de livros e autores neste início do terceiro milênio? Ou de suas lições de escrita e estilo – ou as de seus imitadores – servindo de guia no treinamento dos robôs que geram textos, talvez até mais “perfeitos” do que os de humanos, mas muitas vezes meros plágios ou pastiches? Para a sorte dos mestres da literatura e dos leitores argutos e sensíveis, porém, Albalat também advertia sobre os perigos do pastiche, uma das técnicas que ele mesmo ensinava: “a imitação artificial e servil das expressões e dos processos de estilo de um autor” “não pode ser senão um exercício de ginástica literária”; “os escritores mais originais são os mais fáceis de pastichar”, mas “não se pode copiar a alma de um autor”, nem, por certo, nos casos de terceirização por robôs, nem, talvez, de textos psicografados por médiuns.
No contexto atual, certas afirmações teóricas de Albalat – como a de a escrita ser mera transcrição da fala – estão superadas, e suas lições técnicas – como a assimilação/imitação – se tornaram questionáveis. Mas permanece a atualidade da questão de fundo: a arte de escrever literatura e a formação do estilo continuam sendo atividades específicas e profundamente humanas de criação, fruto de talento, inspiração e árduo trabalho intelectual e técnico de e sobre a linguagem... humana.
Maria Mortatti – 24.08.2025