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PEIXES-BANANA, REVISTA “THE NEW YORKER” E J. D. SALINGER / JOÃO SCORTECCI

The New Yorker é uma revista norte-americana dedicada à cobertura da vida cultural da cidade de Nova York, que publica críticas, ensaios, reportagens investigativas e também ficção. A revista – fundada por Harold Ross (Harold Wallace Ross, 1892 – 1951), estreou em 21 de fevereiro de 1925. A primeira capa, com um cavalheiro de cartola observando uma borboleta através de um monóculo, foi desenhada pelo artista gráfico, Rea Irvin (1881 – 1972), que também desenvolveu a fonte que é usada para logo e manchetes da revista. O conto “Um dia perfeito para os peixes-banana”, do escritor norte-americano J. D. Salinger (Jerome David Salinger, 1919 – 2010), foi publicado, pela primeira vez, em The New Yorker, no ano de 1948. O conto relata um dos efeitos colaterais da Segunda Guerra entre alguns de seus sobreviventes: a melancolia, os transtornos mentais e a predisposição ao suicídio. O romance O apanhador no campo de centeio, publicado em 1951, é o seu livro de maior sucesso de público e vendas. Um milhão de cópias são vendidas a cada ano, com totalizando mais de 65 milhões de exemplares. Foi incluído na lista da Time Magazine dos 100 melhores romances em inglês, escritos desde 1923. Salinger morreu de causas naturais em sua casa, em New Hampshire, em 27 de janeiro de 2010, aos 91 anos de idade.

João Scortecci

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NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM LIVRO / JOÃO SCORTECCI

Nada mais “interessante” que uma biblioteca itinerante de livros! Coleciono fotos, textos, reportagens e arquivos sobre o assunto. Engenhocas não faltam! Na Internet podemos encontrar milhões de ideias e projetos viáveis e bem-sucedidos. Qualquer serviço de biblioteca, que não esteja fixo num lugar, é classificado como uma biblioteca itinerante. Já vi de tudo, transformado em biblioteca: ônibus, carroça, Kombi, bicicleta, motocicleta, mulas, bancos de praça, vagão de trem, caminhão, canoa, barco, carrinhos de picolé, pirâmide, geladeira, lambreta e outros. A primeira biblioteca itinerante que conheci – e que me marcou, muito – foi o navio-biblioteca português, no Porto de Santos/SP, no ano de 1972, numa excursão com alunos do Instituto Mackenzie. Voltei encantado! O objetivo principal de uma biblioteca itinerante é facilitar o acesso ao livro e fomentar o hábito da leitura. O primeiro plano de biblioteca itinerante realmente praticável parece ter sido iniciado pelo engenheiro e inventor inglês Samuel Brown (1799 – 1849), em East Lothian, na Escócia, em 1817. Brown adquiriu 200 volumes selecionados – cerca de dois terços dos quais eram de tendência moral e religiosa e o restante eram livros de viagens, agricultura, artes mecânicas e ciências populares – e montou quatro bibliotecas de rua com 50 volumes cada, em Aberlady, Saltoun, Tyninghame e Garvald. Em 20 anos, essas bibliotecas aumentaram para 3.850 volumes distribuídos por 47 aldeias. Uma das primeiras bibliotecas itinerantes foi a Biblioteca Perambulante de Warrington (Warrington Perambulating Library), montada em uma carrinha de cavalo, operada pelo Warrington Mechanics' Institute, em Cheshire, Inglaterra, no ano de 1858. O serviço de livros “perambulantes” foi sucesso imediato e funcionou, ininterruptamente, até 1872. No Brasil, a ideia anda viajando! As bibliotecas itinerantes estão em todas as partes: praças, vilas, centros culturais, escolas, estações de metrô e trem, clubes e feiras. Desde 2001, ajudo na formação de bibliotecas públicas e comunitárias, doando livros, inicialmente por meio do Portal Amigos do Livro e agora, desde 2022, com o Projeto Livros para Todos. Gosto de pensar que no meio do caminho tinha um livro, algo assim.  

João Scortecci


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ALEXINA PINTO E O SILÊNCIO DA LOCOMOTIVA / JOÃO SCORTECCI

O trem apitou – avisando que estava passando – e de nada adiantou. A educadora e escritora Alexina Pinto, surda desde os 45 anos de idade, foi atropelada pela locomotiva – em 17 de fevereiro de 1921, com 51 anos –, no distrito de Corrêas, em Petrópolis/RJ. Alexina Leite de Magalhães Pinto (1869 – 1921) era descendente de uma das mais tradicionais famílias mineiras, da cidade de São João Del-Rei. Pioneira nos estudos do folclore e revolucionária em seus métodos de ensino, com apenas 20 anos de idade Alexina partiu para Europa e, durante o tempo que lá ficou – pouco mais de um ano –, fez cursos, na Itália, Espanha, Portugal e França, sobre novas técnicas de ensino. De volta da Europa, trouxe na bagagem uma bicicleta e roupas de ciclismo, para espanto da sociedade conservadora são-joanense. Em 1896, sem espaço, perseguida e criticada devido aos seus métodos de ensino nada convencionais, mudou-se de São João Del-Rei para a cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu, dando aulas, por mais de 20 anos, até perder a audição. Alexina Pinto rompeu paradigmas ao substituir os castigos físicos por tarefas intelectuais. Proibiu o uso da palmatória em sala de aula, substituindo-a por exercícios de memória: trava-línguas, declamação de poesias e cantigas do folclore nacional e regional. Publicou cinco livros: “As nossas histórias”; “Os nossos brinquedos”; “Cantigas de criança e do povo e danças populares”; “Provérbios, máximas e observações usuais” e “Cantigas das crianças e dos pretos”. Colaborou assiduamente no “Almanaque Brasileiro Garnier”, editado pela Livraria Garnier do Brasil, que circulou de 1903, sob a direção de Ramiz Galvão, até 1906 e, daí em diante, foi dirigido por João Ribeiro, até 1914, quando deixou de circular. Alexina Pinto é referência, entre outros, no “Dicionário do Folclore Brasileiro” do historiador, musicólogo, antropólogo e folclorista Câmara Cascudo (Luís da Câmara Cascudo, 1898 – 1986), como a primeira brasileira a valorizar a cultura tradicional do seu povo. O trem apitou e de nada adiantou. 

João Scortecci


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FAULKNER E A IMORTALIDADE DA ARTE / MARIA MORTATTI

Em seu discurso no banquete de premiação com o Nobel de Literatura de 1949, o escritor estadunidense William Faulkner (25.09.1897 – 06.07.1962) assim expressou sua compreensão sobre a finalidade e o dever de todo escritor: 

Eu me recuso a aceitar [o fim do homem]. Acredito que o homem não apenas resistirá: ele prevalecerá. Ele é imortal, não porque só ele entre as criaturas tenha uma voz inesgotável, mas porque tem uma alma, um espírito capaz de compaixão, sacrifício e resistência. O dever do poeta, do escritor, é escrever sobre essas coisas. É seu privilégio ajudar o homem a perseverar, elevando o seu coração, lembrando-lhe a coragem, a honra, a esperança, o orgulho, a compaixão, a piedade e o sacrifício que foram a glória do seu passado. A voz do poeta não precisa ser apenas o registro do homem, pode ser um dos suportes, os pilares para ajudá-lo a resistir e a prevalecer”. (Tradução livre)

Sobre “essas coisas” Faulkner escreveu em seus romances e contos, que lhe renderam o reconhecimento como um dos maiores romancistas do século XX e a premiação com o Nobel por "sua poderosa e única contribuição ao romance americano moderno", o National Book Award, em 1951, e o Prêmio Pulitzer de ficção, em 1955 e 1962. Reconhecia a influência de diversos escritores, tais como Proust, Joyce, Twain, Keats, Dickens, Conrad, Balzac, Bergson e Cervantes e, sobretudo, Shakespeare, o qual desde sua juventude, Faulkner se propunha a “superar”, quando escrevia poemas sobre temas românticos. Ao longo de sua carreira como romancista, intercalou atividade de roteirista de cinema em Hollywood, para sustento financeiro de sua família: a esposa Estelle Oldham, com que se casou em 1929 e que já tinha dois filhos, e a filha do casal. Iniciou-se na prosa com o romance Sartoris (1928) e, provavelmente decepcionado com a rejeição inicial do livro por leitores e críticos, quando começou a escrever O som e a fúria (1929) decidiu não se importar com os editores nem com o leitor ideal e passou a escrever em estilo mais livre. “Eu disse a mim mesmo: 'Agora eu posso escrever'". E conta ter escrito para si e com prazer. Em contraste com o de Hemingway, seu contemporâneo, o estilo de Faulkner é caracterizado pela técnica do fluxo de consciência, narração fragmentada, com idas e vindas no tempo, peculiares pontuação, dicção e ritmo, períodos gramaticais extensos, muitos personagens com diferentes vozes narrativas, como ex-escravos ou descendentes, brancos pobres, agricultores, trabalhadores e aristocratas, abordando a decadência econômica e moral do Sul dos Estados Unidos da América, após a Guerra da Secessão (1861 e 1865). Nos seus mais densos romances, a ação se passa no fictício Condado de  Yoknapatawpha, evocando a presença, em sua obra, do estado de Mississippi, onde o escritor nasceu, passou grande parte da vida e morreu, de ataque cardíaco, com 64 anos de idade. 

Mas não se conhece de fato um escritor, senão lendo sua obra. E, mesmo com as advertências sobre a complexidade estilística da obra de Faulkner, sempre é melhor começar. Assim fiz. E logo fui enredada pelos três primeiros que li, nos anos 1980. The sound and the fury (1929) – O som e a fúria, na tradução brasileira de Fernando Nuno Rodrigues, pela Nova Fronteira (1983) –, que Faulkner considerava o romance cuja escrita lhe causou êxtase inigualável e marca o início das características estilísticas de sua obra, sendo considerado pela crítica como obra central da ficção do século XX. Com título extraído de um verso do célebre monólogo de Macbeth, de Shakespeare, trata-se da história da última geração dos Compson, entre 2 de julho de 1910 e 8 de abril de 1928, narrando a decadência da família em que, no passado, houve homens poderosos, “uma sombria história de loucura e ódio”, nas palavras do autor. Num dos mais simbólicos diálogos do romance, o patriarca decaído entrega o relógio ao filho Kentin, dizendo: “[o relógio] eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que o possa esquecer por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo.” Não houve tempo, talvez, pois Kentin cometeu suicídio logo depois, tendo ferido a mão ao tentar destruir o relógio. 

As I lay daying (1930) – Enquanto agonizo, na tradução brasileira de Hélio Pólvora, pela Expansão Editorial (1978) –, que Faulkner escreveu nas madrugadas em seu turno de trabalho nas caldeiras da Universidade de Mississipi, contém narrativa fragmentada, com “ausência” do escritor no relato e narração direta pelos personagens da história da família Bundren, de brancos pobres dos Sul dos Estados Unidos, na época da decadência agrícola, que viaja para a cidade de Jefferson, levando, em uma carroça, o caixão da mãe, Addie, a quem o marido prometera cumprir esse seu último desejo. A narrativa é marcada por peripécias trágicas. Enquanto ela agoniza, da janela de seu quarto, vê o filho Cash preparando o caixão, e, no trajeto, têm de atravessar um rio e depois salvar o caixão de um incêndio. Após o sepultamento, o marido Anse aparece de dentadura nova, bem arrumado e com uma nova esposa. Nesse romance está o capítulo talvez mais breve da literatura, contendo apenas as cinco palavras do monólogo interior do filho mais novo, Vardaman, que associa a morte da mãe com a de um peixe que ele tinha pescado e limpado pela manhã: “Minha mãe é um peixe”. 

Absalão, Absalão (1936) – tradução brasileira de Sônia Regis, Nova Fronteira (1981) –, traz a referência no título e também na trama à história bíblica de Absalão, filho de Davi, que mata o irmão Amnom, ao saber de sua relação incestuosa com sua irmã, Tamar. No romance de Faulkner, também fragmentado com lembranças e episódios do passado, é narrada, por vários personagens, a história de ascensão e queda de Thomas Sutpen, originário de vida miserável no estado de Virginia, que se torna o maior plantador de algodão do condado de Yoknapatawpha, e que, no contexto da Guerra Civil e da segregação racial, tentou criar uma dinastia familiar, mas sobre sua casa e estirpe pesou a maldição: o incesto, o fratricídio e o conflito entre pai e o filho que o traiu. Ambientado entre 1909 e 1910, o enredo amplia a história do personagem Quentin, que cometeu suicídio em O som e a fúria

Com esses e outros importantes romances e contos que se seguiram até sua morte, além de alguns poemas inéditos, apesar de críticas a seu estilo e objeções a suas representações "insensíveis" de mulheres e negros norte-americanos, a obra de Faulkner continua influenciando escritores em outros países, incluindo os da América do Sul. Em 1954, ele publicou The Faulkner reader, com uma seleção de seus textos de três décadas anteriores, incluindo O som e fúria, e acrescentou um prefácio, no qual resume seu “credo”: o escritor escreve “para elevar o coração do homem”. 

Algum dia [ele] não mais existirá, o que pouco importará, porque permanecem, destacadas e invulneráveis na impressão fria, as palavras ainda capazes de suscitar a antiga emoção imortal nos corações e glândulas cujos proprietários e depositários são as gerações provenientes do ar que ele respirou e no qual se angustiou. (Tradução livre)

Maria Mortatti – 24.09.2023


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LU XUN E AS “FLORES MATINAIS COLHIDAS AO ENTARDECER” / JOÃO SCORTECCI

O escritor chinês Lu Xun (Zhou Zhangshou, 1881 – 1936) é considerado o pai da literatura moderna na China. É o representante máximo do “Movimento Quatro de Maio” – de 4 de maio de 1919 –, movimento anti-imperialista, cultural e político, em protesto contra a resposta do governo chinês ao Tratado de Versalhes, tratado de paz assinado pelas potências europeias, que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial e, em especial, contra a permissão dada ao Japão para manter territórios em Shandong – província da República Popular da China e centro cultural e religioso fundamental para o taoísmo, o budismo chinês e o confucionismo –, que tinham sido devolvidos pela Alemanha, após o cerco de Tsingtao, encontro entre as forças japonesas e alemãs, de 31 de outubro a 7 de novembro de 1914. Lu Xun fez parte da Liga de Escritores de Esquerda e se destacou por seus ataques à cultura chinesa tradicional e pela defesa da necessidade de reformas profundas na cultura e na sociedade chinesas. Entre 1902 e 1909, viveu no Japão e começou os estudos na Faculdade de Medicina da Universidade de Tohoku. Anos mais tarde, contou o motivo de não ter concluído o curso: “O que a China realmente precisava era de uma reforma da sua cultura e sua sociedade.” Em 1909, voltou a seu país. Em 1918, na revista reformista “Nova Juventude”, publicou "Diário de um Louco", obra pioneira no seu gênero escrita em língua vernácula. Defendia a abolição do uso dos caracteres chineses e se mostrava partidário da adoção do “latinxua”, um dos múltiplos sistemas de escrita do idioma chinês com alfabeto latino usados naquela época. Sua obra inclui contos, novelas, crônicas e ensaios. Em 1926, escreveu “Flores matinais colhidas ao entardecer”, a única obra publicada no Brasil, em edição bilíngue, com tradução de Yu Pin Fang, pela Editora da Unicamp. Lu Xun morreu de tuberculose, em Shanghai, no ano de 1936, com 55 anos de idade.

João Scortecci

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AS INVENÇÕES MÍ(S)TICAS DE JORGE DE LIMA / MARIA MORTATTI

Invenção de Orfeu é o coroamento da obra imensa em extensão, profundidade, simplicidade, complexidade, mutabilidade, multiplicidade de Jorge de Lima (União dos Palmares/AL, 23.04.1893 – Rio de Janeiro/DF, 15.11.1953). Homem de muitas facetas, foi poeta, romancista, ensaísta, biógrafo, médico – cujo consultório na Cinelândia, na cidade do Rio de Janeiro, funcionava como ateliê e local de reunião de artistas e intelectuais –, artista plástico, professor de história natural e literatura brasileira, político. Tornou-se conhecido e popular como escritor: em 1921, foi eleito “Príncipe dos poetas alagoanos”; em 1940, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (ABL); e seus poemas foram traduzidos para outros idiomas, como inglês, espanhol, francês. Foi candidato cinco vezes, sem êxito, a uma cadeira na ABL e indicado pela Academia Sueca para o Nobel de Literatura de 1958, que não pôde receber, pois faleceu cinco anos antes da premiação. Em 2020, foi homenageado com uma estátua exposta na praça em frente à casa onde nasceu e atualmente é sede da Academia Alagoana de Letras.

Sua obra literária é marcada por itinerário multifacetado e capacidade de se renovar, com diferentes temas, formas e estilos literários: parnasiano, desde o primeiro poema, "O acendedor de lampiões", que escreveu com 14 anos de idade, depois modernista, com marcas regionalistas nordestinas e valorização da cultura afro-brasileira, religioso, cristão, bíblico, místico, surrealista. A complexidade desse itinerário está sintetizada em seu projeto literário mais amplo e ambicioso: Invenção de Orfeu – biografia épica, biografia total e não, uma simples descrição de viagem, ou de aventuras. biografia com sondagens; relativo, absoluto e uno, mesmo o maior canto é denominado – biografia, que foi publicado em 1952, pela editora Livros de Portugal (RJ). Nesse poema épico-lírico-dramático, composto de 10 cantos e quase 11 mil versos, com várias formas poéticas e em prosa, reinventando o mito grego de Orfeu como metáfora para a criação do poeta – um visionário – em busca da poesia – a utopia da “ilha” –, Jorge de Lima funde sonho, mito e literatura, dialogando com a tradição poética clássica e moderna, por meio de referências diretas ou indiretas a Homero, Virgílio, John Milton, Dante Alighieri, Camões, Lautréamont, Arthur Rimbaud, T.S. Eliot, Ezra Pound, entre outros. O poema foi elogiado e aclamado por críticos literários e escritores, como Murilo Mendes – amigo dileto do poeta, primeiro leitor de Invenção de Orfeu e a quem é dedicado o livro, além de outros poemas – Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Tristão de Ataíde, Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, e também foi criticado por alguns ou esquecido por outros. Mas Jorge de Lima continua desafiando leitores e estudiosos, como prenunciava o crítico português João Gaspar Simões, no ensaio introdutório da primeira edição do livro, ou o escritor Antonio Olinto, membro da ABL, quando escreveu, em 1998, sobre o “caso Jorge de Lima” e os motivos de ter sido recusado pela Academia, apesar ser “o que mais longe foi em nossa terra na feitura do verso e no uso da poesia como expressão de um povo e de uma nação.” Sua obra é também referência direta ou indireta, principalmente para estudantes, como “integrante da segunda geração do modernismo” ou pelas adaptações de seu poema “O grande circo místico” – do livro Túnica inconsútil (1938) –, no qual o poeta narra a saga da família austríaca do grande circo Knieps, no início do século XX. O poema foi roteirizado para o espetáculo O Grande Circo Místico, do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba/PR, em 1983, com música de Chico Buarque e Edu Lobo, e esteve em turnê durante dois anos, com audiência de mais de 200 mil pessoas, no Brasil e em Lisboa; em 2018, foi lançado o filme inspirado no poema e dirigido pelo brasileiro Cacá Diegues.  

Essas e tantas outras invenções míticas e místicas de Jorge de Lima também fazem parte de minha formação literária. Em 1976, comprei, na Livraria Brasiliense, na cidade de São Paulo, os quatro volumes – em brochura costurada, 12,5 x 20 cm, cada um por Cr$ 15,00 – de suas poesias completas, publicadas em 1974, pela J. Aguilar e Instituto Nacional do Livro/MEC, na coleção Biblioteca Manancial. O papel Buffon está amarelado e algumas páginas mostram as marcas de minhas leituras, mas continuam me convidando a releituras e reflexões, especialmente Invenção de Orfeu, essa túnica inconsútil a envolver o mistério e o enigma da obra do poeta nascido há 130 anos e falecido há 70 anos, que tinha “fome universal”, ansiava pela eternidade e, no livro Anunciação e encontro de Mira-Celi, assim anuncia a dimensão transfiguradora da poesia: 

Nós os poetas, dentro da morte e libertados pela morte,
somos os grandes alquimistas, os únicos achadores da pedra filosofal,
porque nos transformamos a nós próprios
em périplos verdadeiros e imperecíveis.

Maria Mortatti – 22.09.2023 

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O "CORREIO PAULISTANO" E OS "FUTURISTAS ENDIABRADOS" DE 22 / JOÃO SCORTECCI

O Correio Paulistano foi o primeiro jornal diário paulista e o terceiro do Brasil. Teve como fundador o proprietário da Typographia Imparcial – sucessora da Typographia Liberal (1854 até 1888) –, de Azevedo Marques (Joaquim Roberto de Azevedo Marques, 1824 – 1892), e, como primeiro redator, Pedro Taques de Almeida Alvim. O jornal nasceu liberal e teve posições avançadas, em sua época. Posteriormente, aderiu ao Partido Conservador e, após a criação do Partido Republicano Paulista (PRP), passou a ser seu órgão oficial, em junho de 1890. Durante o período imperial, foi um forte formador de opinião pública. Notabilizou-se pela defesa da abolição da escravatura e da causa republicana. Mais tarde, apesar de ser dirigido e sustentado por oligarcas tradicionalistas, foi o único, entre os grandes jornais de São Paulo, a apoiar a Semana de Arte Moderna de 1922, reconhecendo o vanguardismo do movimento modernista – enquanto os demais jornais da época se referiam aos modernistas como "subversores da arte", "espíritos cretinos e débeis" ou "futuristas endiabrados". A presença do poeta, jornalista, tabelião, advogado, romancista, pintor e ensaísta Menotti Del Picchia (1892 – 1988) na redação – ou “Helios” como costumava assinar a sua coluna "Crônica social" –, foi fundamental para o apoio do jornal à Semana de 22. O Correio Paulistano circulou de 1854 até 1963, encerrando suas atividades com 33.882 edições veiculadas na cidade. O prédio do jornal ficava na esquina da Rua Líbero Badaró com o Largo de São Bento, no centro histórico da capital paulista. Por muitos anos, o papel – então importado – utilizado na impressão de jornais era popularmente conhecido como "papel CP", sigla alusiva às letras iniciais do Correio Paulistano. Além do pioneirismo liberal e de posições avançadas para a época de sua fundação, foi o primeiro jornal a ser impresso em máquinas de aço, abandonando a mão de obra escrava; o primeiro com oficinas a vapor; o primeiro publicado às segundas-feiras; o primeiro a ser impresso em uma máquina rotativa; o primeiro no formato Standard, 600 x 750 mm; e o primeiro a contratar fotógrafos profissionais para ilustrar suas matérias. O jornal foi fechado até 1934, por ordem de Getúlio Vargas. As oficinas foram incorporadas ao patrimônio do estado de São Paulo. Daí em diante, o jornal teve vários proprietários, até ser definitivamente fechado em 1963. 

João Scortecci

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AKHMATOVA, "ANNA DE TODAS AS RÚSSIAS" / MARIA MORTATTI

Quando conheci Anna Akhmatova, pseudônimo de Anna Andreevna Gorenko (Odessa, 23.06.1889 – Leningrado, 05.03.1966), ela já era mundialmente reconhecida. Em 1964, foi laureada com o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina; em 1965, recebeu o título de Doctor Honoris Causa da Universidade de Oxford; 1989 foi proclamado pela Unesco o “Ano Anna Akhmatova”, em comemoração ao centenário de seu nascimento; e com seu nome foi batizada uma estrela então recém-descoberta por astrônomos russos. Na Rússia, o centenário de seu nascimento foi celebrado com muitos eventos literários e culturais, e no apartamento comunitário em que morou durante 40 anos foi instalado o Museu Anna Akhmatova.

“Anna de todas as Rússias” – epíteto que lhe atribuiu a poetisa Marina Tsvetáieva (1892 – 1941) – viveu e sobreviveu a duras tragédias pessoais e condições políticas e econômicas, na Rússia pré-revolucionária do início do século XX, na União Soviética, após 1917/22, na resistência durante o cerco nazista a Leningrado, na repressão durante a Guerra Fria, e começou a ser “reabilitada” após o período de “degelo”, que se seguiu à morte de Joseph Stalin, em 1953. Em condições difíceis, tornou-se um ícone da “Era de Prata” da literatura russa moderna e expoente do Acmeísmo – movimento de reação ao Simbolismo na literatura. Além de poesia, escreveu prosa, memórias, trabalhos autobiográficos, estudos literários sobre escritores russos e, para sobreviver durante seu “banimento”, traduziu poesia italiana, francesa, armênia e coreana. 

Seu primeiro poema, publicado aos 20 anos de idade, rendeu-lhe advertência do pai – engenheiro naval –, temeroso de que ela envergonhasse a família, o que a fez decidir pelo pseudônimo. Em 1910, casou-se com o poeta acmeísta Nikolái Gumilióv que depois foi preso e fuzilado, acusado de suposta conspiração, e com quem teve um filho, Liev, preso e enviado para campos de trabalho na Sibéria, sendo impedida de vê-lo por muitos anos. Em 1914, publicou seu segundo livro de poemas, Beads, que a tornou conhecida e popular; em 1917, White Flock; e, em 1922, depois do fuzilamento do marido, publicou Anno Domini MCMXXXI. A partir do ano seguinte, seus poemas foram duramente criticados pelo regime stalinista, por não se enquadrarem no "realismo socialista" e influenciarem negativamente leitoras e leitres, foi expulsa da União de Escritores e impedida de publicar até os anos 1940. Casou-se outras vezes, manteve relações afetivas e literárias com figuras importantes e com grandes poetas e artistas, como Maiakóvski, Mandelshtám, Pasternák, Prokófiev, Anna Pávlova, Nijínski, Tsvetaeva, Modigliani, alguns dos quais tiveram destinos trágicos, como Mandelstam, que morreu em campo prisioneiros na Sibéria, e Marina Tsvetáieva, que foi assassinada e declarada suicida.

Mas Akhmatova nunca deixou de escrever poesia. Para não ser denunciada, depois de escrever seus poemas, pedia aos amigos que lessem, memorizassem e lhes devolvessem para ela então queimar o papel, como relata sua amiga e confidente, a escritora Lydia Cukovskaia, que registrou muitos acontecimentos da vida da poetisa e transcreveu ou decorou seus versos. Assim Akhmatova escreveu  os mais famosos de seus poemas: Requiem, entre 1935 e 1940, e o épico Poema sem herói, composto entre 1940 e 1965, contendo análise profunda de sua época e que ela considerava o coroamento de sua obra, sendo também considerado um dos melhores poemas do século XX e publicado depois de sua morte, com 76 anos de idade, em decorrência de saúde frágil e tuberculose. 

Na Rússia, apenas no final dos anos 1980 ela conquistou pleno reconhecimento. Seus trabalhos até então impublicáveis/censurados se tornaram acessíveis ao público em geral. E, entre 1998 e 2005, foram publicados os seis volumes de sua obra completa, Ellis-Lak. Certamente em decorrência da publicação de sua obra na Rússia, do centenário de seu nascimento e de dois fatos marcantes na geopolítica mundial, a abertura política e econômica da Rússia iniciada em 1985 – que resultou na dissolução da URSS em 1991 – e a queda do Muro de Berlim, em 1989, traduções de alguns de seus poemas começaram a ser publicados no Brasil naquela época: em Antologia da poesia russa moderna, por Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman (Brasiliense, 1985) e no livro Anna Akhmatova – Poemas: 1912 – 1964 (L&PM, 1991), com seleção e tradução do jornalista, crítico musical e tradutor Lauro Machado Coelho (1944 – 2018), também autor de biografia da poetisa, publicada em 2008. 

Foi com esse livro que, em 1991, conheci e mergulhei, com Anna Akhmatova, “numa poesia que nunca deixou de ser um depoimento pessoal e autobiográfico, [e] traçou também o trajeto de sua nação naqueles anos de fogo”. Decorei muitos poemas, depois conheci outros e sua biografia. Anna de todas as Rússias e de todos os que conhecem sua poesia se tornou definitivamente um minha, também. E até hoje aquela primeiro livro me acompanha, sempre com novas revelações. Como estes versos de dois poemas seus, que ela me assoprou, enquanto eu a visitava para escrever este texto: 

Epigrama

Pode Beatriz criar como se fosse Dante
ou Laura celebrar a chama do amor?
Eu ensinei as mulheres a falar,
mas agora, meu Deus, como fazê-las calar?

 

Terceira (das “Elegias do Norte”)

Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
aí sim, aprenderia finalmente o que é a inveja.


Maria Mortatti – 19.09.2023


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FARDA, FARDÃO, BILAC E PATROCÍNIO, EM TEMPOS “VAPOROSOS” / JOÃO SCORTECCI

O inventor e industrial francês Léon Serpollet (1858 – 1907), foi o pioneiro dos automóveis e bondes movidos a vapor, da marca Gardner-Serpollet. Em 1896, inventou e aperfeiçoou a flash boiler, um tipo especial de caldeira, muito mais compacta e controlável, ideal para o uso em veículos. Em abril de 1902, na capital da França, dirigindo seu potente Serpollet, obteve o recorde de velocidade no solo: 120,8 km/h. O primeiro carro da cidade do Rio de Janeiro – um Serpollet a vapor – foi adquirido pelo farmacêutico, jornalista e abolicionista José do Patrocínio (José Carlos do Patrocínio, 1853 – 1905), que trouxe a novidade, no ano de 1897, quando retornou de Paris. Na história das “trombadas” literárias, foi o primeiro arauto de acidente automobilístico da cidade do Rio de Janeiro, na época, Capital Federal. No volante – na função de piloto – estava o poeta, inspetor de ensino e membro da Academia Brasileira de Letras, Olavo Bilac (Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac, 1865 – 1918); e, de copiloto e orientador, o próprio José do Patrocínio. A máquina abalroou à velocidade de 4 km/h, na estrada velha da Tijuca. A vítima teria sido uma árvore que, bravamente, resistiu ao impacto. A mesma sorte não teve o vaporoso Serpollet, que acabou no ferro-velho. É o que dizem. Dizem, ainda, que Olavo Bilac se gabava de ter sido o precursor dos acidentes de automóvel no Brasil. Em crônica publicada no jornal A Notícia, em 1905, Bilac assim descreve o primeiro automóvel da cidade do Rio de Janeiro: feio, pequenino, amarelo e que deixava um cheiro insuportável de petróleo no ar e, quando "havia pane, a garotada, formando círculos em torno do veículo, rompia em vaias." Sinopse dos fatos: poeta, inspetor de ensino, acadêmico, parnasiano, desabilitado, abalroou máquina alheia, no tronco de uma árvore, na Tijuca, “com o afeto que se encerra em nosso peito juvenil”. O resto é fofoca e – de passagem – não faz parte de Farda, Fardão, Camisola de Dormir (1979) – romance em que são narradas intrigas políticas em eleição para a Academia Brasileira de Letras, durante o Estado Novo –, nem das desavenças ideológicas de seu autor Amado, o Jorge.

João Scortecci

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"BIBLIOTECA DE BABEL” E A BIBLIODIVERSIDADE / JOÃO SCORTECCI

Aprendi desde muito cedo a espiar. A olhar – curioso que sou – pelos buracos desalinhados do corpo físico e espiritual. Aprendi a observar o diverso, o diferente e o variado das coisas do pensamento. Descobri, ainda, na diversidade pelo oposto, o caminho – impreciso – do conhecimento. Das ideias do mundo sem-fim. Lembro-me do meu primeiro dicionário escolar. Um tesouro guardado e perdido em algum lugar do tempo. De tanto espiá-lo – gastá-lo com os olhos de selva –, no verso e no inverso das palavras, encontrei-me em saber sobre isso, aquilo e tantas outras coisas impróprias. Em “bio” – elemento que tem o sentido de “vida” –, a biografia das coisas perenes. Na biodiversidade, o número incerto das espécies. Contá-las? Talvez. Nas espécies – diversas e mutantes –, as descobertas da sabedoria da natureza humana. Cruel e desumana. Em “biblio” – elemento relativo a livro –, a bibliografia das histórias versadas e escritas. Na bibliodiversidade – biblioteca das almas – a razão aplicada ao mundo do livro, onde as mutações – provavelmente infinitas – são títulos e subtítulos no mural da estante. Há quem diga que, para cada título da “Biblioteca de Babel” , existe uma história por segredar, um poema na garrafa navegando no inquieto mar, um bilhete açoitando o vazio, letras de um poeta riscando o céu com palavras, um verbo qualquer, impróprio, ainda por resfolegar conjugações, no denso e leve destino do universo. Tudo junto e necessariamente cru. Amordaçado! Preocupo-me – além da conta – com a concentração das linhas mal traçadas, das capas empilhadas no chão de fábrica, com as lombadas desiguais nas ruas da noite escura e suja – inocentemente, talvez – entregues ao desequilíbrio abrasador da poeira. Aprendi desde muito cedo a espiar. A olhar e a olhar, olhando. A observar o diverso, o diferente e o variado. Nas livrarias das espécies falta quase tudo da biblioteca das almas. Sombras agigantadas? Corpos transeuntes. Observo e não vejo o princípio e nem o fim das escadarias da flor. Falta – e me falta – o simetricamente oposto do inverso do verso. Quase poesia! Preciso escrever sobre bibliodiversidade, para falar – aos indivíduos e aos pares – sobre as ideias do mundo sem-fim. Ajoelho-me – com os meus pecados e os meus ossos de dor – que estou deveras tentando. Vergo-me. Desalinhado das fraquezas e dos sonhos. Das águas turvas do ninho e das raízes da terra alheia. Eu espio e me espio. Mortal, em Babel. Imortal em Borges (Jorge Luis Borges, 1899 – 1986) e suas almas. 

João Scortecci


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CAROLINA MARIA DE JESUS: “O LIVRO É A MELHOR INVENÇÃO DO HOMEM” / MARIA MORTATTI

Carolina Maria de Jesus (Sacramento/MG, 14.03.1914 – São Paulo/SP, 13.02.1977), mulher, negra, pobre, pouco escolarizada, que desde pequena gostava de ler e escrever e sonhava em ser escritora, que foi empregada doméstica, favelada e catadora de papel, é a autora do clássico Quarto de despejo: diário de uma favelada, seu livro de estreia lançado em 1960, que alcançou estrondoso e imediato sucesso comercial e literário, projetando internacionalmente o nome da autora. Embora tenha ficado conhecida sobretudo pelos diários, Carolina foi também compositora, cantora e escreveu extensa obra, em diferentes gêneros – poemas, contos, crônicas, romances e peças de teatro, a maioria inédita e em fase de publicação. Publicou outros livros com recursos próprios, como Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), o romance A felizarda/Pedaços da fome (1963), Provérbios (1962). Postumamente, foi publicado Um Brasil para brasileiros/Diário de Bitita, livro de memórias, anotadas em dois diários, editado em 1982, na França, e em 1986, no Brasil. Grande parte de sua obra – em cadernos com diários manuscritos, disco com interpretação de canções de sua autoria, além de dezenas de fotografias e outras anotações – vem sendo (re)descoberta, divulgada, lida, estudada e festejada.

Em Quarto de despejo: diário de uma favelada se encontra o diário da autora, escrito entre 15 de julho de 1955 e 1º. de janeiro de 1960, em que relata o cotidiano da vida na favela paulistana do Canindé, às margens do Rio Tietê, onde passou a morar, no final dos anos 1940, depois de passagens por outras cidades em busca de emprego, e de onde saía para catar papel que utilizava para escrever, além de vender para sustentar os três filhos que criou sozinha, pois não se casou para não se submeter à violência dos homens. De forma autêntica e comovente, mas também com certa dose de humor e poesia, Carolina relata a triste e angustiante vida na favela, com privações, miséria, fome, preconceito, violência e abandono social: “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados”. Mas registra também reflexões sobre a sociedade e a política da época, sobre os sonhos e as fantasias que criava para esquecer que estava na favela, sobre seu amor pelos livros e pela literatura, que impulsionaram a transição de sua vida, e pela escrita, que a salvava nos piores momentos de fome. Como se nenhum momento de sua vida pudesse ser desperdiçado, os registro pontuais vão iluminando o “projeto” da escritora: 

Quando cheguei em casa, era 22h30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem (21.07.1955). 

Levantei de manhã e fui buscar água. (...) Não tinha dinheiro em casa. Esquentei comida amanhecida e dei aos meninos (...) Seu Gino veio dizer-me para eu ir no quarto dele. Que eu estava lhe despresando. Disse-lhe: Não! É que estou escrevendo um livro para vende-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. (27.07.1955). 

Em um dos mais poéticos trechos do diário, depois de receber seis cruzeiros com a venda de material reciclável, Carolina conta que chegou a pensar em guardar para comprar feijão, mas, torturada pela fome, resolveu "tomar uma media e comprar um pão": 

Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. ...A comida no estomago é como o combustível nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.” (27.05.1958)

Depois de ela ter procurado editoras, sem obter êxito, o diário foi publicado com edição e organização pelo jornalista Audálio Dantas (1929 – 2018), que a descobriu ou foi por ela descoberto, quando preparava reportagem sobre a favela. Ao ler os cadernos, Audálio concluiu que Carolina já tinha escrito a visão “de dentro da favela”, dando voz àquela população abandonada e marginalizada pela sociedade. Em 1958, ele publicou trechos do diário, com o título "O drama da favela escrito por uma favelada”, na Folha da Noite, e, em 1959, outra matéria na revista O Cruzeiro, tendo ambas causado polêmicas e muita curiosidade para leitores da época, impactados e que chegaram a duvidar do fato de uma mulher, negra, pobre e pouco escolarizada ter escrito, ela mesma, sua história. O livro foi publicado pela Livraria Francisco Alves e lançado em 19.08.1960, com a presença de famosos escritores, editores, políticos. Na semana de lançamento, foram vendidas cerca de 10 mil cópias, chegando a 80 mil nos primeiros meses e, depois, foi traduzido para 15 idiomas, com efeitos também em medidas de autoridades para desmantelar a favela cuja miséria ficou estampada no livro. Carolina foi capa de revistas nacionais e estrangeiras, conquistou a admiração de críticos e leitores, mas também inveja dos vizinhos da favela, que viam suas vidas retratadas no diário, e foi alvo de novas polêmicas dos que a consideravam apenas “exótica” e "pitoresca" ou duvidavam da autenticidade de sua autoria. Mas foi defendida por escritores como Manuel Bandeira e Otto Lara Resende, além de Audálio Dantas. Em 1961, o livro foi adaptado para o teatro por Edy Lima, com direção de Amir Haddad e Ruth de Souza no papel principal, e, em 1971, Carolina foi protagonista do filme Favela: a vida na pobreza, da alemã Christa Gottmann, com base em Quarto de despejo. Para a autora, a publicação do livro representou a realização do sonho e lhe proporcionou glória, fama e algum dinheiro para se mudar da favela até chegar ao sítio no bairro de Parelheiros. Em seu diário, registra detalhadamente os acontecimentos do “dia alegre” do lançamento, e em seus depoimentos, destaca sua devoção aos livros e a realização de seu desejo de ser escritora: “meu amor pela literatura foi-me incutido pela minha professora, Lanita Salvina”; “A transição da minha vida foi impulsionada pelos livros. Tive uma infância atribulada. É por intermédio dos livros que adquirimos boas maneiras e formamos nosso caráter.” “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia (...) o meu diário” “Fiquei alegre olhando o livro e disse: ‘O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor.’ E li meu nome na capa do livro: ‘Carolina Maria de Jesus. Diário de uma favelada. Quarto de despejo.’ Fiquei emocionada. É preciso gostar de livros para sentir o que eu senti.”

Com Quarto de despejo, registro da intimidade ficcionalmente compartilhada como denúncia e salvação, testemunho das condições de vida dos marginalizados e também como criação literária, Carolina se tornou uma das escritoras mais conhecidas no Brasil e a autora brasileira mais publicada no exterior, em particular nos Estados Unidos da América, segundo o historiador José Carlos Sebe B. Meihy, um dos principais responsáveis pela “redescoberta” da escritora, nos anos 1990. Carolina morreu com pouco antes de completar 63 anos de idade e pobre, mas deixou imensas contribuições, para sua época e para os dias atuais e em várias dimensões: como intérprete do Brasil, como protagonista da história de resistência e luta da população negra contra as desigualdades de classe social, raça e gênero; como pioneira na “literatura marginal”, pelo testemunho das condições de vida da população abandonada em favelas e outros “quartos de despejo”. Com leve declínio nas décadas seguintes ao lançamento, a partir dos anos 1990, além de sucessivas reedições do livro de estreia e gradativa publicação de inéditos, Carolina e sua obra se tornaram definitivamente objeto de estudos sociológicos, antropológicos e literários por pesquisadores brasileiros e estrangeiros e leitura obrigatória em exames pré-vestibulares no País. Além das biografias e homenagens em exposições comemorativas e prêmios literários, foi agraciada postumamente com o título de Doctor Honoris Causa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Embora não tenha sido a primeira escritora brasileira negra nem a primeira a publicar diários, em Quarto de despejo  publicado há 63 anos e sempre atual – Carolina Maria de Jesus deu voz, de forma pioneira, à experiência viva e vivida da fome como privação fisiológica e como metáfora da busca de realização do direito humano à fantasia e ao sonho, por meio da leitura e da escrita, combustível do espirito, como o alimento é para o corpo. Alimentou-se da escrita, quando não tinha o que comer. Por muitas noites de Scherazade, contou-se histórias para sobreviver. Do material descartado, fez a poesia-testemunho de si e dos marginalizados. Transformou o papel catado no lixo em páginas de seu diário-livro. Catando palavras para nomear sua realidade, a leitora se tornou a escritora reconhecida e festejada pelo pioneirismo e qualidade de sua obra. Com suas "escrevivências" – termo criado pela escritora contemporânea Conceição Evaristo, influenciada pela obra de Carolina –, a autora de Quarto de despejo alimentou também a literatura e a cultura brasileiras, conquistou lugar definitivo no cânone literário e deixou um valioso legado como inspiração e referência, não apenas para escritoras negras e movimentos culturais da “periferia”, mas para todos os que conhecem e vivem o poder transformador do livro, essa “melhor invenção do homem" e de Carolina Maria de Jesus, simbolizada por sua obra imortal e reafirmada num de seus últimos pedidos à filha, Vera Eunice: não flores, mas livros sobre seu túmulo.

Maria Mortatti – 16.09.2023

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A LITERATURA INFANTIL NA "REVISTA DE ENSINO" (1902 – 1918) / MARIA MORTATTI

Após a criação da Impressão Régia, em 1808, começaram a ser publicados, no Rio de Janeiro e em outras províncias brasileiras, jornais, boletins e revistas especializados em educação, destinados principalmente a professores, com orientações didáticas relacionadas a programas oficiais de ensino, entre outros assuntos. Após a proclamação da República, a mais longeva e influente publicação periódica desse tipo criada no estado de São Paulo foi a Revista de Ensino, órgão da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, fundada em 1901. A revista teve ampla circulação entre educadores, com 64 números referentes aos volumes de abril de 1902 a dezembro de 1918. O objetivo da revista era elevar, uniformizar e sistematizar o ensino público, facilitando o trabalho pedagógico dos professores por meio da indicação de modernos métodos de ensino, defendendo direitos profissionais da categoria e, ainda, orientando legisladores na elaboração de leis sobre a instrução pública. Todos os sócios da entidade eram considerados assinantes da revista, podendo obter um abatimento de 50% nos preços das assinaturas, e, em 1916, começou a ser distribuída gratuitamente a todos os professores dos grupos escolares do estado, alunos das escolas normais e professores de escolas isoladas que requisitassem.

A Revista de Ensino era organizada em seções que se mantiveram, com algumas variações, em todos os números, abordando, entre outros assuntos, questões gerais, pedagogia prática, literatura infantil, hinos escolares, arquitetura escolar, movimento e balancetes da Associação, atos oficiais, notícias, anúncios publicitários. Ao longo dos 16 anos de seu ciclo de vida, com periodicidade bimestral ou trimestral, a revista passou por três diferentes fases, com e sem patrocínios oficiais. A primeira fase – abril de 1902 a dezembro de 1904 –, com periodicidade bimestral e 17 números publicados, caracterizou-se pela independência de posicionamentos, ainda que fosse impressa pela Typographia do “Diario Official” e “sob os auspícios da Directoria Geral da Instrucção Publica do Estado de São Paulo” – em fascículos de 16 x 22 cm, com cerca de 140 páginas. A segunda fase – fevereiro de 1905 a março de 1910 – caracterizou-se pela ausência de subvenção oficial, suspensa em 1904, em retaliação às posições do presidente da Associação, que criticou medidas do governo estadual, como o desconto dos vencimentos dos funcionários públicos e a reforma do ensino de 1904. A revista passou, então, a ser impressa, às expensas da Associação, por diferentes tipografias, presumivelmente paulistanas: Typographia Guimarães, Typographia Tolosa, Typographia D’À Noticia, Typographia Nacional de Carlos Borba, Typographia Nacional de E. Braggio & C., Typographia Helvetia de A. Otto Uhle. Foram publicados 22 números com periodicidade bimestral, mas começou a diminuir de tamanho e espaçar a periodicidade, até se esgotarem os recursos da Associação e a revista ser extinta, em março de 1910. Em junho de 1911, a publicação foi retomada, com periodicidade trimestral, subvenção oficial e impressão pela Typographia do “Diario Official”, por iniciativa de Oscar Thompson, que assumira a Diretoria Geral da Instrução Pública. Em 1918, foram compostos os últimos quatro números, referentes a junho/dezembro daquele ano e publicados no ano seguinte.

Entre os editores e colaboradores da revista – aproximadamente 153 autores de textos originais ou traduzidos, a maioria homens –, em seus diferentes números e seções, constavam professores, como Arnaldo de Oliveira Barreto, João Chrysostomo dos Reis Júnior, João Lourenço Rodrigues, Alfredo Bresser da Silveira, Emilio Mario Arantes, diplomados pela Escola Normal de São Paulo e pelas escolas normais criadas no interior e no litoral do estado, desde o final do século XIX, integrando a reforma da instrução pública paulista, iniciada na década de 1890 pelo educador e médico Antonio Caetano de Campos (1844 – 1891). Constituindo-se como uma elite intelectual, esses professores, além de tematizarem problemas educacionais relevantes para a época, foram os tradutores/adaptadores/parafraseadores ou autores dos textos publicados na seção “Literatura infantil”. Muitos deles se profissionalizaram como escritores didáticos, tendo publicado livros para o ensino de diferentes matérias, incluindo cartilhas de alfabetização, livros de leitura e livros de literatura infantil, como Arnaldo Barreto que, além de autor de séries de livros de leitura, passou a dirigir a Biblioteca Infantil, da Melhoramentos, iniciada, em 1915, com sua tradução do conto "O patinho feio", de Andersen. 

Na seção “Literatura infantil”, com denominações oscilando também entre “Literatura escolar” e “Literatura didática”, eram publicados contos infantis, poemas, diálogos e pequenas comédias para recitação, a maioria não escritos originalmente para crianças. Com essa seção, “a melhor revista de cultura da época” – segundo o historiador Antonio Barreto do Amaral – e um marco na imprensa pedagógica paulista e brasileira das décadas iniciais do século XX, contribuiu para disseminar e consolidar uma concepção de literatura infantil como gênero didático (nele subsumida sua condição de gênero literário), e ramo da Pedagogia (nele subsumido seu pertencimento ao ramo das Letras). Por meio de seleção, tradução/adaptação, elaboração original ou paráfrase de textos publicados na seção, os editores e colaboradores da Revista de Ensino foram definindo empiricamente um modo de conceber a literatura infantil, do ponto de vista da educação e de suas finalidades pedagógicas, articuladamente ao desenvolvimento da indústria editorial e gráfica brasileira, impulsionada pela publicação de livros escolares e visando à educação dos cidadãos, função atribuída à escola primária no projeto republicano de modernização social e cultural da Nação brasileira. Essa concepção de literatura para crianças – ainda presente – foi “confrontada” na década seguinte, pelo escritor, editor e tradutor Monteiro Lobato, considerado o “pai da literatura infantil brasileira” propriamente dita.

Maria Mortatti – 12.09.2023

[Síntese de artigo publicado em inglês na revista History of education & children’s literature X / 2 2015] e em tradução para o português na revista História da Educação, v. 22, n. 56, sete./dez. 2018.]

 

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ENSINO DA LEITURA E ESCRITORES DIDÁTICOS NA "BELLE ÉPOQUE" EDUCACIONAL PAULISTA / MARIA MORTATTI

Após a proclamação da República brasileira, iniciou-se a reforma da instrução pública paulista liderada pelo médico e educador Antonio Caetano de Campos (1844 – 1891). Com objetivos de inovar e modernizar a instrução pública, a reforma oficializou, institucionalizou e sistematizou um conjunto de aspirações políticas para a educação em consonância com o projeto republicano de modernização do País e divulgadas desde o final do Império. Enfeixadas pela filosofia positivista, essas aspirações convergiam para a busca de cientificidade – e não mais o empirismo – na educação das crianças e delineavam a hegemonia dos métodos intuitivos e analíticos para o ensino de todas as matérias escolares. A partir de então, essa “nova bússola” sintonizada com os progressos da "pedagogia moderna" deveria orientar a escola primária e a preparação não apenas teórica, mas, sobretudo, prática, de um novo professor que deveria deduzir da psicologia da infância e suas bases biopsicofisiológicas os modos de ensinar à criança. 

No âmbito dessa reforma, a Escola Normal de São Paulo – fundada em 1846, “reinaugurada" em 1894, no novo e suntuoso prédio localizado na Praça da República, no centro da capital paulista, então batizada com o nome de Caetano de Campos e que atualmente abriga a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo –, foi se configurando como condensação do modelo de formação da elite intelectual e de sistema de ensino proposto para o estado de São Paulo e disseminado para outros estados brasileiros, por meio das “missões de professores paulistas”. Além do magistério de ensino primário, professores formados por essa escola normal assumiram, direta ou indiretamente, posições de liderança na instrução pública paulista e em outros estados, ocupando cargos na administração educacional, liderando movimentos associativos do magistério, assessorando autoridades educacionais e produzindo material didático e de divulgação das novas ideias, caracterizando-se como escritores didáticos. Por meio de sua atuação, contribuíram decisivamente para configurar o clima da Belle Époque educacional paulista, por analogia – ainda que em escala e impacto menos visíveis – com o clima intelectual e artístico da Europa entre final do século XIX e início do século XX que influenciou, no campo das artes e da literatura, a realização da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, ano também em que se comemorou o centenário da Independência do Brasil. 

Nesse contexto, destacaram-se, ainda, disputas em torno dos métodos de ensino inicial da leitura e escrita – também denominado “alfabetização”, a partir dos anos 1910 –, centradas nas características de dois tipos básicos de método: o sintético, que consiste em se iniciar o ensino da leitura pelas menores unidades linguísticas e era utilizado rotineiramente até então; e o método analítico, que consiste em iniciar esse ensino por meio de historietas ou grupos de sentenças e que fora divulgado na província de São Paulo e, em especial na Escola Normal da Praça, por educadores norte-americanos, como Miss Marcia Browne, diretora da escola primária modelo masculina, anexa à Escola Normal.  Extrapolando aspectos didático-pedagógicos, a discussão em torno do assunto esteve diretamente vinculada à discussão e à proposição de ações visando consolidar o novo regime político, em sintonia, portanto, com urgências políticas e sociais da época. A atuação daqueles professores configurou, também, o engendramento de uma atitude definidora do que considerei o segundo momento crucial na história da alfabetização no Brasil: a disputa entre mais modernos e modernos – sobrepondo-se àquela entre modernos e antigos, observável na década de 1880 – pela hegemonia de tematizações, normatizações e concretizações relativamente ao ensino da leitura. Dessas disputas, resultou a fundação de uma (nova) tradição, segundo a qual o método analítico proposto pelos reformadores educacionais paulistas era revolucionário, porque sintetizava todos os anseios do "ensino moderno e científico", e sua excelência se comparava à excelência do regime republicano. Em decorrência da hegemonia dessa convicção, nesse momento histórico o método analítico para o ensino da leitura se tornou obrigatório nas escolas paulistas (principalmente nos grupos escolares, criados em 1984, na capital, e no interior e litoral do estado, nas décadas seguintes), por meio: das normatizações por parte dos administradores educacionais, de tematizações das  bases teóricas do método e de concretizações elaboradas por professores escritores didáticos, majoritariamente homens, em cartilhas de alfabetização e livros de leitura que se tornaram populares no meio educacional, tiveram sucessivas edições e circularam em diferentes estados brasileiros, impulsionados por fatores, como processo de seleção, aprovação e compra, pelo Estado, de livros didáticos adotados oficialmente, expansão e consolidação do mercado editorial de livros didáticos produzidos por brasileiros e por editoras brasileiras, que foram se especializando nesse segmento para a escola brasileira e adequado à nova ordem educacional, e processo de profissionalização do escritor didático com o correspondente engendramento de uma especialidade editorial, a publicação de livros didáticos.

As disputas em torno do ensino inicial da leitura e escrita tenderam a se amenizar com a “Reforma Sampaio Dória”, implantada, no estado de São Paulo, pela Lei n. 1750, de 1920, que, entre outros importantes aspectos, garantia autonomia didática aos professores. Além disso, a partir dos anos 1920, problemas e urgências políticas e sociais de outra ordem passaram a ser priorizados, e outros sujeitos começaram a se destacar no cenário educacional, propondo outras formas de intervenção do Estado nas coisas da instrução assim como outros projetos, centrados em outras bases teóricas, para a educação e o ensino inicial da leitura e da escrita, ou alfabetização. O produto das férteis iniciativas daqueles educadores formados pela Escola Normal “Caetano de Campos” e as então novas formas de pensar e praticar a educação e o ensino inicial da leitura e escrita, como parte de um projeto republicano para a nação brasileira, consolidaram-se nas décadas posteriores, caracterizando o legado dessa Belle Époque educacional paulista para a história educacional, cultural e editorial do País. E a esse legado se pode aplicar com muita justeza o sábio conselho do modernista Mário de Andrade, em Paulicea desvairada: "O passado é lição para se meditar, não para reproduzir."

Maria Mortatti – 10.09.2023


 

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TODO MUNDO NO MARANHÃO É RIBAMAR / JOÃO SCORTECCI

O poeta e memorialista Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira, 1930 – 2016) nasceu no dia 10 de setembro e, se vivo fosse, estaria completando 93 anos de idade, em 2023. Sobre o seu pseudônimo, declarou o seguinte: "Gullar é um dos sobrenomes de minha mãe, o nome dela é Alzira Ribeiro Goulart, e Ferreira é o sobrenome da família, eu então me chamo José Ribamar Ferreira; mas como todo mundo no Maranhão é Ribamar, eu decidi mudar meu nome e fiz isso, usei o Ferreira que é do meu pai e o Gullar que é de minha mãe, só que eu mudei a grafia porque o Gullar de minha mãe é o Goulart francês; é um nome inventado, como a vida é inventada eu inventei o meu nome". Conheci-o no lançamento do seu livro "Poema sujo" (1976), na cidade do Rio de Janeiro, e o reencontrei – dois ou três anos depois – num bate-papo, durante a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Simples e reservado. Educadíssimo! Na época do nosso segundo e último encontro, tive vontade de lhe perguntar sobre a poesia do outro José Ribamar (José Ribamar Ferreira de Araújo Costa), também maranhense, codinome José Sarney, autor de "Marimbondos de fogo". Não tive coragem. Algum motivo específico? Não. Num sábado, nos anos 1980, na casa do escritor e crítico literário Fábio Lucas, a escritora Lygia Fagundes Telles nos confidenciou: “Marimbondos de fogo é um belíssimo livro.” Silêncio. A obra já recebeu críticas negativas, entre elas a do poeta, desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e jornalista Millôr Fernandes (1923 – 2012), que o descreveu como "um livro que quando você larga não consegue mais pegar". Outro dia dei de cara com um exemplar da obra. Eu o retirei da picada do ferrão. Guardei-o na estante dos maribondos de fogo. Aqui com os meus ossos: devo cutucar ou não? “Mel, em se plantando, tudo dá!” 

João Scortecci


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OS TRÊS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS INGLESES: BYRON, SHELLEY, KEATS / MARIA MORTATTI

Três poetas, George Gordon Byron (22.01.1788 – 19.04.1824), Percy Bysshe Shelley (04.08.1792 – 08.07.1822) e John Keats (31.10.1795 – 23.02.1821), marcaram a "segunda geração” do Romantismo inglês no início do século XIX. Precedidos pelos primeiros românticos ingleses, William Wordsworth e Samuel Coleridge, esses jovens poetas, com afinidades e diferenças entre suas obras e algumas rivalidades entre Byron e Keats, produziram literatura inglesa da mais alta qualidade, intensa e moderna. Em reação ao neoclassicismo – movimento artístico e cultural europeu de meados do século XVIII, com base no Iluminismo e na Antiguidade Clássica – e às regras da sociedade burguesa da época derivada das mudanças sociais e políticas da Revolução Industrial e Revolução Francesa, essa segunda geração de poetas românticos ingleses buscava a liberdade de viver e criar por meio da vida boêmia e de nova linguagem literária baseada no sentimento e no irracional, explorando temas como a melancolia, a individualidade/subjetividade, a intensidade, a natureza, o terror, a morte, o amor ideal, a beleza, o sublime, caracterizando o “mal do século”, tendência romântica ao pessimismo, melancolia, tédio, desencanto, nostalgia, resultando em tendência à morte por doença contagiosa, em especial a tuberculose, na época, ou ao suicídio.  

George Gordon Byron, Lord Byron, – considerado o nome mais influente e popular do Romantismo e cujo satanismo foi precursor do de Charles Baudelaire – escreveu os primeiros poemas quando estudante na Universidade de Cambridge. Em 1809 fez uma longa viagem por países da Europa e Oriente e, após regressar à Inglaterra, viveu de modo radicalmente livre, boêmio e apaixonado, escandalizando a sociedade inglesa com suas aventuras amorosas, e escreveu suas obras mais famosas e populares: os poemas narrativos Don Juan  (1819 – 1824) e A Childe Harold's Pilgrimage (Peregrinação de Childe Harold), os 30 poemas de  Hebrew Melodies e o poema lírico “She walks in beauty” (“Ela caminha em beleza"). Em 1824, foi lutar contra os turcos na Guerra de Independência da Grécia e, durante uma cavalgada, encharcado por uma forte chuva, teve febre e dores reumáticas, adoeceu gravemente, entrou em estado de coma e morreu no dia 19 de abril de 1824, com 36 anos de idade, durante uma violenta tempestade elétrica. Foi proclamado herói nacional da Grécia e sepultado na Inglaterra. Sua obra principal, Don Juan, foi publicada no final de sua vida, por John e HL Hunt, seus editores. Depois de sua morte, foram encontrados alguns de seus escritos comprometedores, mas, temendo que pudessem "manchar" a sua reputação, amigos do poeta atearam fogo e alguns deles foram destruídos.  

Percy Bysshe Shelley – considerado um dos mais importantes poetas românticos ingleses, cuja obra exemplifica  os extremos desse movimento literário, o êxtase alegre e o desespero taciturno, e “um poeta lírico sem rival”, para o crítico literário Harold Bloom –, como seu amigo Byron, viveu de modo livre, anticonformista e radical em sua poesia e nas posições políticas e sociais. Foi expulso da Universidade de Oxford por ter escrito o breve tratado The necessity of ateism (A necessidade do ateísmo). Devido a suas ideias céticas, idealistas e materialistas, não alcançou fama durante sua vida, mas o reconhecimento de sua obra cresceu continuamente após sua morte, e ele se tornou uma influência importante nas gerações seguintes de poetas. Além dos poemas líricos, entre os mais populares, como "Ozymandias", "Ode to the West Wind", escreveu poemas extensos, considerados seus melhores, como Prometheus Unbound (Prometeu desacorrentado)Alastor, or The Spirit of Solitude (Alastor ou O espírito da solidão), "Adonaïs", e o inacabado The triumph of life (O triunfo da vida). Também escreveu o ensaio “A defense of poetry” ("Uma defesa da poesia") e romances góticos. Após o sucídio da primeira esposa, casou-se com a romancista Mary Shelley e era amigo de John Keats e Lord Byron. Para este, durante um passeio de barco, Shelley escreveu o poema “Hymn to intellectual beauty" ("Hino à beleza intelectual”), publicado em 1816. Morreu no dia 8 de julho de 1822, aos 29 anos de idade, vítima de um naufrágio, ao lado do amigo Edward Williams. Em cerimônia presidida por Lord Byron, Shelley foi cremado na praia de Viarregio, na Itália, onde seu cadáver foi encontrado. Seu coração foi doado a Mary Shelley, pelo romancista Trelawney. Quando ela morreu, o coração de Shelley foi sepultado junto à escritora.

John Keats – também considerado um dos mais importante poetas românticos ingleses´– foi  o último e o mais jovem a morrer. Estudou medicina, mas abandonou o curso para se dedicar à poesia. Embora não tivesse educação literária formal, conhecendo o momento histórico e literário em que viveu, Keats escreveu com extrema rapidez em diferentes formas poéticas e em rico estilo, comparável para muitos críticos com os sonetos de Shakespeare. Publicou apenas 54 poemas, em três pequenos volumes e algumas revistas, que não foram bem recebidos pela crítica, durante sua vida, mas exerceram influência em diversos poetas posteriores, como  Alfred Tennyson e Wilfred Owen. Seu primeiro livro, Poems, foi publicado em 1816 – quatro anos antes de morrer – e, em 1818, o longo poema “Endimyon”, seguido de “Hyperion” e “The eve of St. Agnes” (1919), em 1920, os poemas “Isabella” e “Lamia” e continuou escrevendo famosos sonetos, odes e cartas. Em 1818, conheceu Fanny Brawne, a grande paixão de sua vida com quem teve um relacionamento amoroso que não culminou em casamento, como ele desejava. Em 1820, para se curar de tuberculose que contraíra quando cuidava de seu irmão com essa doença, foi para a Itália, por recomendação médica, mas lá morreu pouco tempo depois, sem reencontrar a amada. Foi sepultado em Roma, e sobre seu túmulo foi esculpida a inscrição que ele mesmo redigira: “Here lies one whose name was writ in water” (“Aqui descansa um homem cujo nome foi escrito sobre a água”). Em sua memória, Shelley escreveu o poema "Adonaïs".

Os três últimos e mais prolíficos poetas do Romantismo inglês se tornaram “canônicos”, suscitando interpretações quase míticas. Apesar das rivalidades, ao final reconheceram as qualidades um do outro, e, em suas breves vidas, compuseram obras extensas e duradouras, lidas, imitadas, traduzidas e estudadas, com notável influência em gerações seguintes de escritores europeus e também de poetas brasileiros da "segunda geração" do Romantismo no Brasil, como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Fagundes Varela, cujas vidas e obras são marcadas pela triste tradição herdada daqueles: o “mal do século”. Byron morreu com 36 anos, Shelley, com 29 anos e Keats com 25 anos de idade. Apesar de suas breves vidas, às obras que legaram cabe exemplarmente um de meus versos preferidos do "Endymion", de Keats: "A thing of beauty is a joy for ever:/Its loveliness increases; it will never/Pass into nothingness; (...) ("Tudo o que é belo é uma alegria para sempre:/O seu encanto cresce; não cairá no nada;(...) " (Tradução de Péricles E. S. Ramos)

Maria Mortatti  – 09.09.2023 

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ALMANAK DA "GAZETA DE NOTÍCIAS" / JOÃO SCORTECCI

Na folha de rosto do Almanak, ano 1903, publicação da Typographia da Gazeta de Notícias, consta esta apresentação: “Contendo, além de todas as informações dos anteriores, o horário e o percurso exacto de todas as estradas de ferro, quer particulares, quer públicas dos Estados do Rio de Janeiro, Minas e S. Paulo, sahidas dos paquetes e vapores, as taxas do correio, audiencias dos diversos tribunaes, tabellas dos preços de carros e tylburys [veículo com duas rodas e dois lugares, puxado por um animal] e de enterro, muitas outras informações uteis para o commercio, taes como as tarifas das estradas de ferro e o indicador geral das ruas. Na parte litteraria figuram os principaes prosadores e poetas.” Pesquisando sobre anuário – publicação anual que registra informações sobre um ou vários ramos de atividade, tais como ciências, artes, literatura, profissões, economia etc. – e almanaque – livro que, além do calendário do ano, traz diversas indicações úteis, poesias, trechos literários, anedotas e curiosidades, etc. –, pude observar, até certo ponto surpreso, o espaço destinado nessas publicações para textos literários de poetas e prosadores desconhecidos e famosos. Espiando também nas páginas da Revista PAN (1935 – 1945), semanário editado e impresso pelo meu avô materno, José Scortecci, observei o mesmo "prestígio", por assim dizer. No ano de 1999, no Almanaque Santo Antônio, publicação da Editora Vozes, foi publicada, com o título “O Fabricante de Sonhos” (p. 202-204), a entrevista que concedi à escritora, poetisa, advogada, jornalista e tradutora Maria Thereza Cavalheiro (1929 – 2018), com vários títulos publicados pela Scortecci Editora, sobrinha-neta da poetisa parnasiana Colombina (Yde Schloenbach Blumenschein, 1882 – 1963) e fundadora da Casa do Poeta “Lampião de Gás”, na cidade de São Paulo. Nos anos 1980, na sede da UBE – União Brasileira de Escritores, conversando com uma famosa poetisa parnasiana, perguntei-lhe: “Poeta ou poetisa?”. Ela me respondeu, com cara feia: "Eu sou uma poetisa. Não gosto de modismos." Um detalhe typographico e litterario: nunca andei de tylburys! Fazer o quê? Acontece.

João Scortecci

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"LIEV" NÃO É A MESMA COISA QUE "LIVE" / JOÃO SCORTECCI

Eu e o Google. Digitei “Liev” e ele me entregou “Live”, que significa show, sarau, programa, emissão ou qualquer outro evento do mesmo gênero gravado ao vivo e transmitido remotamente, on-line. E o Tolstói? O russo danado de escrever sem-fim, autor de Guerra e Paz? Fechei o navegador e digitei novamente: "Liev". O danado - desta vez - entregou-me Liev Tolstói (Lev Nikolaevitch Tolstói, 1828 – 1910). Não li Guerra e Paz. A obra não faz parte – ainda - –da lista de livros do meu “ler antes de morrer”, algo assim. Guerra e Paz, romance histórico escrito por Tolstói e publicado – aos goles – entre 1865 e 1869, no Russkii Vestnik, um periódico famoso da época. O livro narra a história da Rússia na época do estadista e líder militar francês Napoleão Bonaparte (1769 – 1821) e as guerras napoleônicas. O primeiro rascunho de Guerra e Paz foi concluído em 1863. Um terço de todo o trabalho já havia sido publicado no Russkii Vestnik com o título 1805. Não satisfeito com o final, Tolstói reescreveu a obra entre 1866 e 1869 e a publicou sob o título definitivo de Guerra e Paz. A obra em russo tem 1.225 páginas e está dividida em quatro livros, com 15 partes e dois epílogos, um narrativo e o outro temático. Antes de publicar o post – cearense desconfiado que sou – abri pela terceira vez o Google e digitei “Liev”. Ele entregou: Isaac Liev Schreiber – ator, diretor, roteirista e produtor norte-americano. Adoro sacanagens!  Liev Tolstói foi pai de uma penca de filhos, treze deles com Sophia Andreevna Behrs, sua esposa, sendo sete deles, durante o período que escreveu e reescreveu Guerra e Paz. Tolstói morreu de pneumonia, aos 82 anos de idade, na estação de trem de Astapovo, centro administrativo do distrito de Lev-Tolstovsky de Lipetsk Oblast, na Rússia. Antes de morrer, escreveu sobre a experiência da morte. "Trabalho, morte e doença” é um conto do ano de 1903, na forma de uma parábola: “Deus criou a morte. A esperança era que uma morte imprevisível fizesse os homens valorizarem a vida, mas em vez disso criou ainda mais desigualdade à medida que os fortes ameaçavam os fracos com a morte.”. Numa viagem a Paris visitei o megalomaníaco túmulo do imperador Napoleão. Na entrada do mausoléu um tapete de pedrinhas de rio. Catei uma e a coloquei no bolso, para levá-la de lembrança, claro. Fui grampeado, no ato. Recebi ordem para colocá-la de volta, no mesmo lugar. Foi o que fiz. Fiquei passado. Talvez isso explique – mas não justifique – não ter lido, ainda, Guerra e Paz do Liev. Acontece.

João Scortecci

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LITOGRAFIA – A ARTE QUÍMICA DE ESCREVER NA PEDRA / JOÃO SCORTECCI

Lithos”, em grego, significa “pedra”, e “graphein”, ”escrever”. Foi o ator e dramaturgo austro-alemão, Alois Senefelder (Johann Alois Senefelder, 1771 – 1834), quem inventou, em 1798, a impressão litográfica, conhecida também como impressão química. Essa técnica de impressão utiliza uma pedra de calcário, de grão muito fino, plana e polida e se baseia na repulsão – forças que se repelem mutuamente – entre a água e substâncias gordurosas. Na obra Vollstandiges Lehrbuch der Steindruckery (Curso completo de litografia), de 1818, Senefelder contou o seu segredo, que, em resumo, consistia no seguinte: as pedras de calcário eram desenhadas ou escritas com uma tinta pastosa, composta por cera, sabão e negro de fumo e gravadas com a aplicação de uma solução de goma arábica e ácido nítrico, que atacava apenas as zonas a descoberto. Desse modo, obtinha-se um suave alto relevo, uma matriz positiva. Ao contrário das outras técnicas de gravura – como as usadas na xilogravura e na gravura em metal –, a litografia é planográfica, ou seja, o desenho é feito por meio da aplicação da gordura sobre a superfície da matriz. A impressão da imagem é obtida por meio de uma prensa litográfica que desliza sobre o papel. A litografia foi usada extensivamente no início do século XIX na impressão de documentos, rótulos, cartazes, mapas, jornais e possibilita, ainda, impressão com qualidade nos substratos: plástico, madeira e tecido, além do papel. Outra vantagem técnica é o reaproveitamento das pedras de calcário, que podem ser novamente polidas e reutilizadas como matriz. O tratado publicado por Alois Senefelder está dividido em duas partes: a primeira é uma história da invenção e seus diferentes processos, e a segunda contém instruções práticas para a sua aplicação nas artes gráficas. Essa obra teve grande repercussão na Europa, especialmente na Inglaterra. A litografia é um processo de impressão antigo. Hoje é utilizado apenas em trabalhos com fins artísticos.

João Scortecci

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O EDITOR JACÓ GUINSBURG / JOÃO SCORTECCI

O crítico de teatro, ensaísta, professor e editor Jacob Guinsburg (1921 – 2018) nasceu na Bessarábia, atual Moldávia, país do Leste Europeu e antiga república soviética, que faz fronteira com a Ucrânia e com a Romênia. Guinsburg emigrou para o Brasil com seus pais, em 1924, com três anos de idade. Envolveu-se, desde muito jovem, na vida cultural e intelectual do País, participando intensamente da renovação do teatro brasileiro. Escreveu na imprensa paulista – “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo” – e fluminense, sobre literatura brasileira, judaica e internacional, com artigos nos campos das artes, da literatura e da crítica teatral. Foi o mais importante especialista em teatro russo e em língua iídiche no Brasil. Entre suas obras, encontram-se: “Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou”, “Aventuras de uma língua errante – Ensaio de literatura e teatro ídiche”, “Leone De Sommi: Um judeu no teatro da Renascença italiana”, ”Guia histórico da literatura hebraica”, “Dicionário do teatro brasileiro”, “Diálogos sobre teatro, Stanislavski, Meierhold & Cia. – Ensaios de Teatro Russo”, “Semiologia do teatro”, “Da cena em cena” e inúmeros ensaios de estética e história do teatro, traduções e edição de várias obras sobre Diderot, Lessing, Buechner e Nietzsche. É editor das obras completas do crítico e teórico de teatro teuto-brasileiro, o alemão Anatol Rosenfeld (1912 – 1973), que viveu no Brasil depois da Segunda Guerra Mundial. Como editor, Guinsburg participou das editoras Rampa (1946), Difel – Difusão Europeia do Livro (1951) e Perspectiva (1965). Jacob Guinsburg faleceu na cidade de São Paulo, no dia 21 de outubro de 2018, aos 97 anos de idade. Em 2021, ano do centenário do seu nascimento, a editora Perspectiva preparou “robusta” homenagem ao editor. Na programação oficial: livros, mesas, filme e a publicação da obra inédita “Digitais de um leitor”, uma conversa de leitor para leitor em uma jornada pela literatura brasileira e estrangeira de muitas décadas: autores que desapareceram deixando obras monumentais, outros que surgiram com prosa e desenvolvimento originais e ainda outros recuperados pela memória, ressurgidos porque ressoam nos tempos atuais. A obra foi lançada pela coleção Debates, em 17 de setembro de 2021, com prefácio de Rosangela Patriota e organização por Jacó Guinsburg, Rosangela Patriota e Gita K. Guinsburg. No prefácio da obra “Digitais de um leitor”, Rosangela Patriota escreveu: “Uma característica que marca profundamente a atualidade dos escritos de Jacó Guinsburg diz respeito, em primeiro lugar, ao seu grande apreço pela História como disciplina no campo das ciências humanas, dado, inclusive, inconteste quando se percorre a sua vasta produção intelectual. No entanto, para além dessa sua grande paixão, o que chama a atenção em seus escritos da década de 1950 é como ele, sob o ponto de vista da criação estética, antecipou, pelo menos entre nós, brasileiros, o diálogo entre história e ficção”.

João Scortecci



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ELOQUÊNCIAS MITOLÓGICAS NA MADRUGADA DE HIGIENÓPOLIS / JOÃO SCORTECCI

Eu não sabia. Segundo o ditado mineiro: morrendo e aprendendo! Acordei – gritaria danada na rua – com um “pega” verbal, com xingamento e tudo, entre Calíope, a musa da eloquência, e Erato, a musa da poesia lírica. Falatório dos demônios. Abri a janela e lá estavam elas. Pilhadas, compartilhando memórias e a vida alheia. Falavam da belíssima Terpsícore, musa da dança e da sedução. O que será que Terpsícore teria aprontado? Grudei as orelhas na madrugada e me pus a ouvir os gemidos da história. As dores da vida! “Musa” é figura feminina da mitologia grega, fonte de inspiração nas artes e nas ciências. Na Grécia Antiga, eram nove as musas: Terpsícore (dança), Erato (poesia lírica), Euterpe (música), Polímnia (música sacra), Melpômene (tragédia), Tália (comédia), Calíope (eloquência), Clio (história) e Urânia (astronomia). Eram filhas de Zeus com Mnemosine, a memória, e habitavam o templo Mouseion. No “pega” mitológico, Calíope falava mais. Uma matraca afiada! Cuspia fogo na pobre da Terpsícore. Erato, mais reservada, argumentava ali e acolá, concordando ou não. Depois de quase uma hora de escuta clandestina e de perder o sono, pude, finalmente, descobrir o motivo do bate-boca entre as duas musas. Estavam iradas – invejosas, claro – com a notícia da escolha de Terpsícore, a musa da dança, pelo imperador Ptolomeu I, para uma apresentação na festa de inauguração do Museu de Alexandria, no lendário complexo da Biblioteca de Alexandria. Conversando com Aristarco de Samotrácia, diretor do museu, soube – a título de curiosidade – que a palavra “museu” tem sua origem na palavra “musa” e que o imperador Ptolomeu I, responsável pela construção do complexo, não foi o responsável pela escolha de Terpsícore, para a festa de inauguração do Museu de Alexandria. A deixa – contada pelo próprio Aristarco de Samotrácia – coube a Demétrio de Faleros, um influenciador de Ptolomeu I e, possivelmente, um enamorado platônico da musa da dança. É o que falam. É o que dizem. Morrendo e aprendendo!

João Scortecci

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DONA BENTA E A ARTE DE SABER COMER, DE RABADA A AMBROSIA / MARIA MORTATTI

“Entre comer e saber comer, a diferença é apreciável”: esse aforismo define o preceito básico do mais perene livro de culinária brasileiro: Dona Benta – Comer bem, lançado em 1940, pela Companhia Editora Nacional, fundada em 1925, pelo editor, escritor e tradutor Monteiro Lobato e o editor Octalles Marcondes, e adquirida pelo Grupo IBEP, em 1965. Quando do lançamento de Dona Benta, já tinham sido publicados no Brasil outros livros do gênero, como O cozinheiro imperial ou nova arte do cozinheiro e do copeiro em todos os ramos (1840), de R. C. M.; e O cozinheiro econômico das famílias (1901), de Carmen Debora, ambos editados por irmãos Laemmert (RJ). Mas o “livro da Dona Benta” – como ficou conhecido – é o mais duradouro no mercado editorial e na preferência do público. Foi sendo reeditado nas décadas seguintes, com crescentes atualizações de conteúdo e de projeto gráfico e atualmente se encontra na 78ª. edição, totalizando milhões de exemplares vendidos. Durante mais de 80 anos de circulação, mesmo depois que o gênero conquistou espaço editorial e se popularizou, "Dona Benta" se consolidou como referência na tradição culinária brasileira, fonte para pesquisas sobre história da alimentação, inspiração para marcas de ingredientes culinários e, sobretudo, como referência afetiva na memória de gerações de brasileiras que o “herdam” de mães e avós.  

O “livro da Dona Benta” era também o livro de receitas de minha mãe. Não o herdei, mas ganhei de presente de casamento um exemplar da 56ª. edição “revista e experimentada”, de 1978, com capa dura, 581 páginas, “com 1001 receitas de bons pratos, 765 milheiros – com um apêndice contendo 124 ilustrações a cores e receitas especiais”, índice alfabético (parte geral, salgados, doces, bebidas), bibliografia culinária – com 18 referências de livros, a maioria em francês, além de português, italiano, espanhol e aquele brasileiro, de 1901 –, finalizando-se o volume com folhas pautadas para anotações manuscritas. O livro contém informações sobre alimentação e saúde, descrição e função detalhada de utensílios de cozinha e copa, ingredientes e modo de preparo de receitas de salgados, doces e bebidas, para ocasiões mais rotineiras ou mais sofisticadas e de várias regiões brasileiras. Embora na capa, em todas as edições, conste o nome de Dona Benta, personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, criado por Lobato, não se trata de indicação de autoria nem de compilação por ele ou por um único autor. Segundo a pesquisadora Renata da Silva Simões, com base em “depoimentos de funcionárias do Centro de Memória da IBEP-Nacional, em reuniões entre os editores e suas esposas eram testadas e degustadas algumas receitas que posteriormente compiladas originaram o Dona Benta.” E chama a atenção para o nome dessa personagem ter sido escolhido como título do livro e ser dela a imagem estampada na capa – com avental, sorridente e oferecendo um bolo apetitoso a uma menino – pois, no Sítio, Dona Benta era a avó contadora de histórias, e a cozinheira e quituteira era a personagem negra Tia Nastácia. 

Talvez por eu ser pouco afeita às lides de "dona-de-casa"  em especial as culinárias –, depois de um tempo de uso, que chegou a deixar manchas de alimentos na páginas, mais do que livro de forno e fogão, tornou-se um de meus livros de cabeceira do rio da poesia e de histórias inspiradas pela personagem lobateana. De lá, extraí o “aforismo“ com que inicio este texto, que usei como epígrafe no poema “Receita de ambrosia”, de 1989, inspirado na receita de Dona Benta, e o retomei no livro Receita de ambrosia – peça didática (Editora Unesp), de 2020, ambos tendo como tema a relação afetiva entre professora e alunos, representada com a metáfora da ambrosia: manjar dos deuses do Olimpo que dava imortalidade aos humanos e, no Brasil, doce feito com ovos e açúcar. De Dona Benta me lembrei novamente, quando, há alguns dias, numa roda literária em que apresentava meu livro Mulher enlouquecida (Scortecci Editora, 2023), Ana Vicari, uma jovem estudante do grupo PET Biblioteconomia da Unesp – campus de Marília, perguntou como “nascem” meus poemas, de onde vem a inspiração, como é o processo criativo. De imediato, respondi que a poesia não tem hora para chegar nem para partir. Exige escuta e trabalho intensos com a palavra. Raras vezes o poema chega inteiro e pronto, como uma revelação. Muitas vezes é despertado por um sentimento, uma ideia ou uma palavra obsedante que se instala como um mistério a ser desvendado. Exemplifiquei com meus poemas “Poética” e "Ex líbris", com “A procura da poesia”, de Drummond, e “Alguns gostam de poesia”, de Szymborska. E acrescentei que nem todas as palavras convidam à poesia. Contei o caso da palavra “rabada”, que estava me deixando encafifada, havia alguns dias, desde que comecei a reparar que, com frequência, havia uma fumegante caçarola com a etiqueta “Rabada” sobre o balcão dos restaurantes self-service, nos quais costumo almoçar alternadamente. Sem dúvida, um prato apreciado pelos frequentadores. Curiosa, perguntei a uma jovem mulher atrás de mim na fila, que confirmou, sem muita convicção. No dia seguinte, perguntei a um homem de meia para mais idade, na fila à minha frente, que também confirmou, explicou do que era feito, que é preciso muito tempo de preparo e que, se para alguns é “comida de pobre”, por ser feito com parte barata e pouco nobre da vaca, para outros, é uma iguaria e muito recomendado e apreciado para aquecer em dias frios e por suas propriedades terapêuticas. Não me contive: “Mas quem gosta de comer rabo de vaca?” “Meu pai adora! Eu também!”, exclamou, entusiasmado. Pelas reações das estudantes, algumas sorrindo, outras com ar de estranhamento, comentei que essa palavra provavelmente não me motivaria a escrever um poema; se persistisse, talvez me instigasse a uma crônica. 

Depois daquela conversa, recorri a Dona Benta. E lá estava a receita de rabada, com o título “Rabo”, descrição detalhada de ingredientes e modo de preparo, finalizando com duas experientes recomendações: “poderá juntar também ½ copo de vinho branco, o que torna o prato mais gostoso. Sirva bem quente, com o próprio molho que se formou”. Muitas páginas depois, localizei a receita de ambrosia e o conselho: "quando for retirada do fogo, junte a água de flor". Nas páginas finais do livro, anotei o cardápio para a próxima festa: prato principal – rabada regada com vinho branco e servida bem quente; sobremesa – ambrosia regada com água de flor e servida como manjar dos deuses. E, para constar no convite  ainda que tentada a metáforas gastronômicas chulas, como "Quem tem pressa come cru" –, seguindo a receita de Dona Benta, preparei este refinado aforismo: "Saber comer é uma arte.”

Maria Mortatti  04.09.2023

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O CASO HARRY POTTER E O SERMÃO DE FOGO / JOÃO SCORTECCI

No domingo de 30 de dezembro de 2001, em Alamogordo, ao sul do Novo México, nos Estados Unidos da América, uma comunidade religiosa liderada pelo Pastor Jack Brock (Jack Dempsey Brock, 1927 – 2020) queimou 30 exemplares da série literária juvenil Harry Potter, da escritora, roteirista e produtora cinematográfica britânica, J. K. Rowling. Os livros de Rowling ganharam popularidade mundial, recebendo múltiplos prêmios e vendendo mais de 500 milhões de cópias. A Warner Bros. adaptou os livros para o cinema, e os filmes entraram na lista de maior bilheteria da história. Harry Potter, o menino bruxo, foi capaz de enfeitiçar milhões de leitores, derrotar as forças do mal e transformar sua criadora numa mulher de sucesso e milionária, mas fracassou, quando teve que enfrentar a ira dos fiéis da Congregação da Igreja da Comunidade de Cristo, liderados pelo Pastor Jack Brock. A série Harry Potter foi demonizada como "uma obra-prima do engano satânico". Enquanto cantavam “Amazing Grace” e queimavam livros, o Pastor insistia em afirmar: "Harry Potter é o diabo e está destruindo as pessoas". Jack Brock admitiu, em público, que nunca leu nenhum dos romances da série de Potter, mas disse que pesquisou o conteúdo deles. "Por trás desse rosto inocente está o poder das trevas satânicas", acrescentou, apontando para o simpático rosto de Harry James Potter – interpretado no filme pelo ator inglês, Daniel Jacob Radcliffe – estampado na capa de um dos livros. Em seguida, atirou-o no fogaréu da ignorância.

João Scortecci

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PAULO FREIRE, O PATRONO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA / MARIA MORTATTI

O educador e filósofo Paulo Reglus Neves Freire (Recife/PE, 19.09.1921 – São Paulo/SP, 02.05.1997), o “Patrono da Educação Brasileira” (Lei n. 12.162/2012), é um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Desde a segunda metade do século XX, marca e inspira, com sua vida e sua obra, uma compreensão dos problemas plurisseculares do ensino-aprendizagem inicial da língua escrita, como uma questão política, que não pode ser resumida a métodos didáticos, pois envolve diferentes facetas da construção de um projeto de nação. Trata-se de um projeto de nação por meio do qual se busca concretizar e garantir o direito de todas as crianças, jovens, adultos e idosos a aprender a ler e escrever a palavra e o mundo, como luta incessante para a superação de realidades sociais perversas e a construção da justiça social. 

Paulo Freire é o brasileiro mais homenageado. Recebeu: dezenas de títulos de Doctor Honoris Causa em universidades estrangeiras; muitos prêmios e homenagens, como “Educação para a Paz”, da Unesco, em 1986; Ordem do Mérito Cultural, do governo brasileiro, em 2011; Patrono da Associação Brasileira de Alfabetização, em 2012. Integra o International Adult and Continuing Education Hall of Fame (Universidade de Oklahoma – EUA) e o Reading Hall of Fame. Sua vida e sua obra são fontes de inspiração e objetos de estudo em universidades brasileiras e estrangeiras e em centros de estudo batizados com seu nome no Brasil, na África do Sul, na Áustria, na Alemanha, na Holanda, em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e no Canadá. Conforme pesquisa realizada em 2016, pelo professor Elliot Green, da London School of Economics, a versão em inglês do livro  Pedagogia do oprimido é a terceira obra mais citada no mundo naquele ano. Escrito por Freire em 1968, durante o exílio no Chile e proibido no Brasil, onde foi publicado somente em 1974, é o único livro brasileiro na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa. 

Para Paulo Freire, a educação é um ato político, ou seja, não é neutra em suas finalidades, conteúdos e métodos de ensino. Sua filosofia e concepção crítica se fundamentam na opção política por uma educação humanizadora, emancipadora e transformadora, em defesa dos "esfarrapados do mundo [...] e os que com eles lutam” para a construção de um projeto de nação mais justa e igualitária. Uma de suas contribuições mais comentadas – e talvez menos conhecidas, de fato – é o método de alfabetização que criou e foi utilizado pela primeira vez em 1963, na cidade de Angicos/RN, tendo alfabetizado em 40 horas, sem cartilha, 300 trabalhadores rurais, em um projeto-piloto do que seria o Programa Nacional de Alfabetização do governo do presidente João Goulart, deposto com o golpe militar em março de 1964. Esse método se baseia na experiência de vida das pessoas em seu contexto social e se desenvolve por meio de prática dialética e dialógica, com a finalidade de promover a conscientização política dos alfabetizandos, contrapondo-se à “educação bancária”. Não deve ser confundido, portanto, com mais um método, no sentido de mero conjunto de passos e procedimentos técnico-didáticos característicos das plurisseculares disputas políticas entre métodos sintéticos e analíticos para o ensino inicial da leitura e escrita, que se repetem desde ao menos o século XIX e, com outro matiz ideológico, renovam-se neste momento, no Brasil, obrigando-nos a recordar a advertência de Paulo Freire, em Educação como prática de liberdade (1967, p. 18): 

[...] o analfabetismo nem é uma ‘chaga’, nem uma ‘erva daninha’ a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema estritamente linguístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a alfabetização por meio da qual se pretende superá-lo. Proclamar a sua neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca. 

Como muitos professores e pesquisadores de minha geração, tive a honra de conhecer Paulo Freire e sua obra quando cursava o mestrado em Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nos anos 1980. Foi uma feliz coincidência estar naquela época, naquela universidade e poder vê-lo e ouvi-lo em suas aulas e em eventos acadêmicos. Eram momentos sempre impactantes, que ainda ecoam na memória e na releitura de seus primeiros livros que conheci: Pedagogia do oprimido, A importância do ato de lerEducação como prática de liberdade. Do primeiro, ficou-me a advertência: “A superação da contradição opressores-oprimidos não está na pura troca de lugar, na passagem de um polo a outro”. Do segundo, o aforismo pedagógico: “A leitura do mundo precede [mas não substitui] a leitura da palavra”. Do terceiro, o “princípio” de seu pensamento e atuação: a “politicidade intrínseca” do analfabetismo, da alfabetização e da educação.  

Devo o encontro com Paulo Freire aos que se empenharam para que, com seu retorno ao País, após 15 anos de exílio, ele se tornasse professor no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp. Uma peça antológica do “processo kafkiano” para confirmação de sua contratação é o indignado “não parecer”, de 25.05.1985, elaborado pelo então chefe daquele departamento, o professor Rubem Alves: 

(...) meu parecer é uma recusa em dar um parecer. E nesta recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu, ele não se sustentasse. Mas ele se sustenta sozinho. Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir. A questão não é se desejamos tê-lo conosco. A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado.

 Atualmente, recém-comemorado seu primeiro centenário de nascimento, a questão já não é mais se desejamos ter Paulo Freire conosco ou se ele deseja trabalhar ao nosso lado. Seu legado está intrinsicamente incorporado ao patrimônio educacional e cultural brasileiro e mundial. 

Maria Mortatti – 27.08.2023

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[Texto extraído, com adaptações, do capítulo de minha autoria, “Paulo Freire e Magda Soares: inspirações para esperançar”, no e-book História(s) de alfabetização, leitura e escrita: concepções, práticas e materialidades (2022), organizado por  Katia Cardoso , Nanci Amâncio, Sílvia Pilegi Rodrigues  e Sandra Bertold e publicado pela Editora da Universidade Federal de Rondonópolis.] 

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MAGDA SOARES, A DAMA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA / MARIA MORTATTI

Magda Becker Soares (Belo Horizonte/MG, 07.09.1932 – 1º.01.2023) é uma das educadoras mais notáveis da história da educação e da alfabetização no Brasil. Foi professora titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, era graduada em Letras, mestre, doutora e livre-docente em Educação. Atuou como professora em escolas primárias e secundárias, e, na UFMG, participou da criação da Faculdade de Educação (FaE), da qual foi também diretora, formou milhares de professores, orientou dezenas de teses de doutorado e dissertações de mestrado em Educação, e, em 1990, Ano Internacional da Alfabetização (Unesco), fundou o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da FaE, do qual foi diretora até 1995 e onde continua atuando como colaboradora. 

Participou também da criação e foi coordenadora do Grupo de Trabalho “Alfabetização, leitura e escrita”, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação e atuou como consultora ad hoc ou membro de instituições e órgãos nacionais e internacionais, como: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo; grupos de trabalho do Ministério da Educação, para avaliação de livros didáticos de língua portuguesa e cartilhas de alfabetização; conselhos editoriais de periódicos científicos nacionais; World Congress Committe da International Reading Association; Grupo Experts on Education Indicators, designado pela Unesco para avaliação e revisão dos documentos World Education Report – 1993 e 1995. Depois de se aposentar em 1999, continuou atuando como professora e pesquisadora, com destaque para o projeto sobre alfabetização e letramento que desenvolveu, desde 2007, como voluntária, com o Núcleo de Alfabetização e Letramento junto à rede municipal de educação de Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte. 

É autora de livros didáticos de língua portuguesa e de artigos e livros sobre alfabetização e letramento, que se tornaram clássicos e referências obrigatórias para professores, pesquisadores e gestores da educação, como o artigo “As muitas facetas da alfabetização” (1985) e os livros Linguagem e escola: uma perspectiva social (1986), Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento (1989/2001), Letramento: um tema em três gêneros (1998), Alfabetização: a questão dos métodos (2017); Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever (2020), no qual compartilha a base teórica e as experiências do projeto de alfabetização no município de Lagoa Santa. 

Por suas importantes contribuições para a educação brasileira, recebeu muitos prêmios e títulos, entre os quais: Ordem Nacional do Mérito Educativo, grau de Comendador, concedido pela Presidência da República do Brasil (2000); Presidente de Honra da ABAlf – Associação Brasileira de Alfabetização, em 2012; Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia (CNPq/MCTI), em 2015 – a primeira educadora a receber essa mais importante honraria nacional em ciência e tecnologia; 67o. Prêmio Jabuti – Educação e Pedagogia e Livro do ano, em 2017, pelo livro Alfabetização – A questão dos Métodos

Uma de suas contribuições mais conhecidas e citadas é a proposta de alfabetizar letrando, que busca superar a plurissecular questão dos métodos de alfabetização, não devendo ser confundido com mais um deles, como alerta a educadora: “(...) em sua dimensão pedagógica, isto é, em sua prática em contextos de ensino, a aprendizagem inicial da língua escrita, embora entendida e tratada como fenômeno multifacetado, deve ser desenvolvida em sua inteireza, como um todo, porque essa é a natureza real dos atos de ler e escrever, em que a complexa interação entre as práticas sociais da língua escrita e aquele que lê ou escreve pressupõe o exercício simultâneo de muitas e diferenciadas competências. É o que se tem denominado alfabetizar letrando.”

Magda Soares é mestra, referência e inspiração para mim e os de minha geração – e das seguintes – que se dedicam aos magistério e aos estudos sobre alfabetização e educação. Sou leitora de seus textos, desde os anos 1980: como professora do ensino 1º. e 2º. graus, utilizei a série Português Através de Textos; e, como mestranda em educação, o livro Linguagem e escola e o artigo “As muitas facetas da alfabetização”. Nos anos 1990, após o doutorado e o ingresso como docente e pesquisadora na Unesp – Universidade Estadual Paulista, a obra de referência Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento foi decisiva para minhas pesquisas em história da alfabetização no Brasil e a de meus orientandos, assim como seus livros sobre alfabetização e letramento publicados até hoje. Nossos encontros não foram muitos, mas lembro bem de cada um. Inesquecíveis. Os mais significativos aconteceram no concurso de livre-docência, em 1997, de cuja banca ela participou; e, mais recentemente, por meio virtual, no lançamento da 2ª. edição (2021) de meu livro Os sentidos da alfabetização: São Paulo – 1876/1994 – resultante daquela tese de livre-docência – que, desde a primeira edição, em 2000, conta com seu honroso e “profético” texto de apresentação. 

Nas comemorações dos seus primeiros 90 anos, em 2022, Magda Soares recebeu merecidas homenagens, especialmente de professores, alfabetizadores e pesquisadores – como no e-book Cartas para Magda, em que os organizadores reúnem cartas de amigos, colegas e alunos. Também inúmeras foram as homenagens quando de seu falecimento, em 2023, reafirmando a importância de seu legado que está intrinsicamente incorporado ao patrimônio educacional e cultural brasileiro e o princípio que norteou seu pensamento e suas ações: "A arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem". 

Maria Mortatti - 27.08.2023

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[Texto extraído, com adaptações, do capítulo de minha autoria, “Paulo Freire e Magda Soares: inspirações para esperançar”, no e-book História(s) de alfabetização, leitura e escrita: concepções, práticas e materialidades (2022), organizado por  Katia Cardoso , Nanci Amâncio, Sílvia Pilegi Rodrigues  e Sandra Bertold e publicado pela Editora da Universidade Federal de Rondonópolis.]


 

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