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O “LIVRO DE KELLS” E SÃO COLUMBA: POMBA DA IGREJA / JOÃO SCORTECCI

O Livro de Kells, também conhecido como Grande Evangeliário de São Columba, é um manuscrito ilustrado, com motivos ornamentais, com 680 páginas, feito por monges celtas por volta de 800/806 d.C, no estilo conhecido por “arte insular” ou “arte hiberno-saxónica” produzida após o Império Romano nas Ilhas Britânicas. O termo é usado também para designar a escrita produzida naquela época. Em razão da sua grande beleza e da excelente técnica do seu acabamento, esse manuscrito é considerado por muitos especialistas como um dos mais importantes vestígios da arte religiosa medieval. O monge São Columba (521 – 597), nascido em Donegal, Irlanda, também conhecido como Columba de Iona, foi grande figura missionária da Escócia. Reintroduziu o cristianismo entre os Pictos – grupo de povos de língua celta – que viveram naquele país. O Livro de Kells, escrito em latim, contém os quatro Evangelhos do Novo Testamento, com notas preliminares e explicativas e com numerosas ilustrações e iluminuras coloridas. A Abadia de Iona está localizada na Ilha de Iona, próxima da Ilha de Mull, na costa ocidental da Escócia. É um dos mais antigos e mais importantes centros religiosos da Europa Ocidental. Foi o ponto focal da expansão do cristianismo por toda a Escócia e marcou a fundação de uma comunidade monástica por São Columba. No ano 563, partindo da Irlanda com 12 companheiros, esse monge chegou a Iona e fundou ali um mosteiro que cresceu até se tornar um influente centro para a expansão do cristianismo. Acredita-se que o Livro de Kells tenha sido produzido pelos monges em Iona nos anos finais do século VIII e que se destinava principalmente à exibição e não à leitura. As imagens são elaboradas e detalhadas, enquanto o texto é descuidado, com palavras em falta e passagens repetidas. O manuscrito se encontra exposto permanentemente na biblioteca do Trinity College de Dublin, República da Irlanda.

João Scortecci

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FERNANDO SABINO: "GOSTO DE QUEM GOSTA DE MIM" / JOÃO SCORTECCI

Conheci o escritor, jornalista e editor mineiro Fernando Sabino (1923 – 2004) nos anos 1990, em um evento literário na cidade de São Paulo, durante o lançamento do livro “Zélia, uma paixão”, relato do período em que Zélia Cardoso de Mello esteve à frente do Ministério da Economia, no governo do presidente Fernando Collor de Mello, e da sua "relação" com o Ministro da Justiça, Bernardo Cabral.  Na oportunidade não pude lhe contar da importância do seu livro "O Encontro Marcado" (1956) na minha vida de escritor e editor. O livro foi um dos primeiros que li quando ainda morava em Fortaleza/CE. Na época, um sonho: conhecer Fernando Sabino. Nosso novo "encontro" aconteceu dois ou três anos depois – 1992 ou 1993 – na sede da Rede Bandeirantes, no programa de variedades da jornalista e apresentadora Sílvia Poppovic. Além de Sabino, estavam presentes a atriz Lucélia Santos e um músico, cujo nome, infelizmente, não recordo. O papo foi sobre cultura e o que cada um andava fazendo de bom. Na rodada final do programa, Poppovic abriu espaço para perguntas e respostas entre os quatro convidados. Lucélia Santos perguntou-me sobre o assunto do meu livro: "A morte e o corpo". Poesia, respondi. Lembro-me que li um trecho de um poema. Algo assim. O músico perguntou para Lucélia Santos algo sobre o filme "Escrava Isaura" (1977). E eu – apavorado – perguntei ao escritor Fernando Sabino sobre a arte de escrever. "Sabino, o que é uma boa história?" A pergunta não o surpreendeu, e a resposta veio com um delicioso sorriso. "Uma boa história é aquela que pode ser contada!" Silêncio. Poppovic assumiu novamente o comando do programa e o encerrou. A resposta de Sabino até hoje faz parte do meu "entendimento" sobre a arte de escrever. O melhor de Sabino veio depois, já no pátio da emissora, no bairro do Morumbi, aguardando a chegada de uma Van, que o levaria direto ao aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro. Pude, então, abrir o coração e lhe contar sobre a importância do seu livro "O encontro marcado" na minha vida. Sabino, emocionado – juro que vi lágrimas nos seus olhos –, disse-me: “Scortecci, gosto de quem gosta de mim”. Encontramo-nos ainda mais algumas vezes, em bienais do livro do Rio, Minas e São Paulo. Sabino morreu em 2004, aos 80 anos de idade. O derradeiro encontro - adiou-se, já marcado - no ordem temporal de vidas, então, vividas.

João Scortecci


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ALMANAQUE LUNÁRIO PERPÉTUO / JOÃO SCORTECCI

Coleciono de tudo! Um acumulador de memórias impressas. Já colecionei almanaques e busquei, durante algum tempo, sem sucesso, ter na coleção um exemplar original de "Lunário Perpétuo", o mais famoso e cobiçado almanaque já publicado no mundo. Não consegui, ainda. Ilustrado com xilogravuras, composto pelo matemático, astrônomo, naturalista e compilador espanhol, Jerônimo Cortés (1560 – 1610), "Lunário Perpétuo" foi publicado pela primeira vez no ano de 1594, em Valência, cidade portuária da costa sudeste da Espanha, e reeditado, inúmeras vezes, ao longo de séculos, com pequenas variações em seu título e conteúdo, com correção de pequenos erros e com atualizações. Foi publicado em língua portuguesa pela primeira vez em 1703, com tradução de Antônio da Silva de Brito, e se tornou popular no Brasil, principalmente na região Nordeste. Segundo o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), que mantinha um exemplar de "Lunário Perpétuo" na sua mesa de cabeceira, foi o livro mais lido no Nordeste brasileiro durante dois séculos. O almanaque oferecia conselhos e orientações sobre os mais variados aspectos da vida, incluindo tabelas das fases da Lua, dos eclipses do Sol e das festas móveis, previsões do tempo, horóscopos, elementos de Direito, navegação, teologia, saúde, agricultura, maneiras de interpretar o comportamento dos animais, biografias de santos e papas e outros dados de interesse geral. O alemão Jorge Seckler (Georg Johann Seckler, 1840 – 1909), com 15 anos de idade, no ano de 1855, transferiu-se para o Brasil, tornando-se aprendiz de gráfico na Typographia Allemã, de Henrique Schroeder. Posteriormente, tornou-se proprietário da Sociedade Artística Beneficente – na Rua São Bento, n. 58 – uma das mais importantes oficinas tipográficas paulistanas, responsável pela mais longeva série de almanaques comerciais do estado de São Paulo. Em 1862, adquiriu uma oficina de encadernação – que pertencia a Hermann Knoesel – e, em 1865, iniciou o serviço de impressão com tipos móveis. Entre 1872 e 1878, fundou a Typographia Livro Verde – na Rua Direita, n. 14/15 – estabelecimento que, além de serviços de impressão, oferecia livros, material de escritório, encadernação e pautação de papel para escrita. É desse período a “febre” dos almanaques, não só no Brasil, mas no mundo todo. Em 1891, Jorge Seckler, adoentado, afastou-se do serviço de gráfico, e a empresa mudou de proprietário, passando a se chamar Companhia Industrial de S. Paulo. Nos dois anos seguintes, o "Almanach de Seckler", como era conhecido, publicado pela Companhia Industrial de São Paulo, levou impressa na sua capa a marca: “sucessora de Jorge Seckler & Companhia”. Jorge Seckler faleceu em 23 de fevereiro de 1909, aos 69 anos de idade. "Lunário Perpétuo" continua sendo, até hoje, para colecionadores e admiradores de almanaques, objeto de desejo e obra obrigatória na coleção de um memorialista.  

João Scortecci

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PLÍNIO, O VELHO, E O VULCÃO VESÚVIO / JOÃO SCORTECCI

O escritor, historiador, naturalista e oficial romano Plínio, o Velho, (Caio Plínio Segundo, 23 d.C. – 79 d. C.) nasceu em Como, na Lombardia, norte da Itália. Morreu jovem, com 56 anos de idade, ao tentar observar de perto a erupção do vulcão Vesúvio, localizado a leste da cidade de Nápoles e a 26 quilômetros da cidade de Pompeia. Caio Plínio é autor do tratado História Natural, uma imensa compilação composta de 37 volumes, que contém passagens originais sobre o destino do homem na natureza. É considerado o maior erudito da história imperial romana. A obra se tornou um modelo para enciclopédias posteriores e obras acadêmicas, como resultado de sua abrangência de assuntos, suas referências aos autores originais e seu índice. Caio Plínio, quando da erupção do Vesúvio, ocupava o posto de Almirante da frota de Miseno, no Porto de Campânia, próximo a Nápoles. Ordenou preparar um pequeno barco, convocou uma tripulação de nove marujos e se pôs a caminho da cidade de Pompeia. Durante o percurso, enfrentou altas temperaturas e uma densa nuvem de fumaça que fez com que o seu barco se desviasse do destino. Foi obrigado a aportar em Castellammare di Stabia, situada no golfo de Nápoles, no sul da Itália. Na manhã do dia seguinte, uma densa nuvem cobriu a região, matando todos por intoxicação causada pelos gases expelidos pelo Vesúvio. Caio Plínio, na época, foi responsabilizado pela morte de nove marinheiros e pela perda de uma embarcação romana. O Vesúvio é o único vulcão na Europa continental a ter entrado em erupção nos últimos 100 anos, sendo considerado atualmente um dos mais perigosos do mundo, devido a sua tendência de erupções explosivas. O Vesúvio foi responsável pela destruição das cidades romanas de Pompeia e Herculano, redescobertas, acidentalmente, no final do século XVIII.

João Scortecci


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HENRIQUETA & MÁRIO: FACES ÍNTIMAS DE UMA AMIZADE / MARIA MORTATTI

“Procuro daqui/procuro de lá” e vou reencontrando a poetisa, tradutora, ensaísta e professora Henriqueta Lisboa (Lambari/MG, 15.07.1901 – Belo Horizonte/MG, 09.10.1985). Normalista pelo Colégio Sion de Campanha/MG, acompanhou a família, quando o pai exerceu mandatos legislativos no Rio de Janeiro/DF e, em 1935, na capital mineira, onde Henriqueta exerceu atividades profissionais, como inspetora federal de educação superior, professora de Literatura na Escola de Biblioteconomia de Minas Gerias e de Literatura Hispano-Americana na atual Universidade Católica de Belo Horizonte. Estreou na poesia em 1925, com o livro Fogo fátuo e, nas décadas seguintes, publicou duas dezenas de livros de poesia, além de ensaios literários, de textos em jornais e revistas cariocas e mineiros, de traduções de poemas de Dante Alighieri, Gabriela Mistral, entre outros, e de organização de antologias de poemas e literatura oral para a infância e a juventude. Teve poemas traduzidos em várias línguas, como o francês, inglês, italiano, espanhol, alemão, foi a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras, em 1963, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Comissão Regional do Folclore e manteve diálogo com escritores e intelectuais, como, entre muitos outros, Cecilia Meireles, Gabriela Mistral (que traduziu O menino poeta para o espanhol), Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Recebeu vários títulos e prêmios, entre os quais: Prêmio de Poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, em 1931, pelo livro Enternecimento; Prêmio da Câmara Brasileira do Livro, em 1952, pelo livro infantil Madrinha lua; e, em 1984, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Sobre sua vida e sua obra há diversos estudos em livros, teses, revistas, e sua obra completa, com mais de 2 mil páginas, está reunida em livro organizado por Wander de Melo Miranda e Reinaldo Marques (Peirópolis, 2020).

Procurando daqui e de lá, vou encontrando rastros da amizade entre Henriqueta Lisboa e o poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo Mário de Andrade (09.10.1893 – 25.02.1945) figura central do Modernismo brasileiro. A "amizade amorosa" – nas palavras dela – ou "comunhão feliz" – nas dele – nasceu do encontro em Belo Horizonte em 1939 e se estendeu, entre 1940 e 1945, na intensa correspondência reunida em livro organizado por Eneida Maria Souza (Edusp; Peirópolis, 2010). As 42 cartas, três bilhetes e dois telegramas recebidos por Henriqueta, que ela guardou em uma caixinha de madeira, estão preservadas no Acervo de Escritores Mineiros na Universidade de Minas Gerais. As 40 cartas guardadas por Mário se encontram no Instituto de Estudos Brasileiros na Universidade de São Paulo. A correspondência revela trocas afetivas, com confidências e reflexões sobre assuntos pessoais e poéticos, dando a conhecer faces íntimas vividas intensamente por ambos, que, com personalidades e projetos literários diferentes entre si, deixaram lições sobre essa amizade e sobre a literatura brasileira da primeira metade do século XX. 

Nas cartas, Mário analisa e comenta poemas de Henriqueta, com sinceridade por vezes severa, indicando alterações no estilo simbolista dos primeiros livros dela, outras vezes elogiando seu amadurecimento poético: “você sabe que é sem a menor condescendência que gosto imenso da sua poesia”. No período da correspondência entre ambos, a poesia de Henriqueta foi adquirindo características do Modernismo, como nos livros: Prisioneira da noite (1941), O menino poeta (1943) e A face lívida (1945). Em carta de 24 de março de 1941, Henriqueta revela a Mário a “vontade de fazer um livro de poemas sobre motivos folclóricos para crianças. Examino, por enquanto, as possibilidades, estudo você e outros mestres. Já tenho setenta motivos viáveis, a escolher. Mas não sei. Diga-me o que acha. Nesse período que precede o trabalho estritamente pessoal fico numa preguiça, num pessimismo, num absurdo desânimo. Você sabe o que significa de iluminação para mim uma palavra sua”. Vários poemas do livro foram submetidos à apreciação de Mário, que também indicou a alteração do título inicial Caixinha de música para O menino poeta. Quando o livro foi publicado, ele comentou: “são simplesmente um encanto pros ouvidos, pros olhos, pro corpo todo. O menino poeta, isso achei maravilha integral”. “Esse lirismo que a excetua, uma carícia simples, dor recôndita em sorriso leve e a frase contida – coisas raras na poesia nacional”. E ironizou o silêncio da crítica: “Mas Henriqueta, eu tenho a certeza que esse silêncio indica muito, estão perplexos, e com mal estar. Na verdade carece ter uma alma muito, não digo pura, mas doida, solta, indefesa pra gostar, não só de você que é doida, solta e indefesa, mas especialmente do Menino Poeta. Eu mesmo que adoro o livro, fico 'criticamente' atrapalhado pra falar, não consigo exatamente saber, nessa revoada tão tênue e sutil de lirismo, qual foi sua intenção. (...) Na verdade você não pertence às linhas gerais da crítica de poesia nossa (...) você é um atalho, uma clareira, coisa assim, no caminho. Pra uns fica como pedra no sapato, mas a maioria passa sem pôr reparo. Você clareira minha, terá decerto que se contentar toda a vida, com os que sabem aproveitar a graça divina das clareiras pra descansar e sabem que é nos atalhos que os passarinhos cantam mais." 

A aparentemente improvável amizade entre ambos foi objeto também de especulações sobre ter sido Mário o amor platônico de Henriqueta, já que ambos viveram sós até o fim da vida. Ele, como se sabe, optou pela intransitividade do amor. Ela, tímida e católica, acreditava no matrimônio como compromisso para a vida toda e não se casou “por falta de compromisso mútuo à hora certa e na medida exata” – como afirmou em entrevista de 1969 –, tendo optado por dedicar sua vida à poesia. Muitos poemas de Henriqueta em seu livro Enternecimento, de 1929, foram dedicados a um professor de Educação Física argentino, Tripudio Lomanto, que ela conheceu no Rio de Janeiro e cujo nome permaneceu em segredo, exceto entre alguns familiares mais próximos. Apesar da promessa, sobretudo em cartas apaixonadas, ele foi se "esquivando", e o casamento não se realizou. Esse foi o “desengano do coração” que ela comenta, com certas ironia e mágoa, em resposta à carta em que Mário diz que ela simboliza a amiga a quem ele, antes de conhecê-la, escreveu “Poemas da amiga”, e complementa: “hoje eu sinto que eles são exclusivamente seus e eles foram escritos para você (...) Eu sei que nesta comunhão feliz em que nós dois vivemos, nós nos preferiríamos um pouco mais de mãos, não dadas, mas atadas, você se deixando brutalizar pela vida como eu, ou eu me elevando com mais frequência para as ‘Adivinhas’. Nada impede, Henriqueta, nada impedirá mais aquela atração divinatória, aquela escolha muito pouco livre com que nós nos encontramos. E você me perdoou e eu adorei você – e hoje nós nos amamos com a maior densidade e a maior gratuidade do favor de amigos.” 

A face lívida, livro escrito no período da Segunda Guerra Mundial, Henriqueta o dedicou à memória de Mário. Após o falecimento do amigo, a poetisa continuou sua obra, o elo daquela amizade. Procurando daqui, procurando de lá, dei-me conta da coincidência de datas em que ambos se atam também nas efemérides literárias: Henriqueta faleceu no dia 9 de outubro de 1985, com 84 anos de idade, no dia em que Mário de Andrade estaria completando 92 anos de idade. Encontrei, ainda, a crônica que escrevi em 2021[1], quando dei de presente O menino poeta para um menino então com nove meses de vida, que se encantou com aquela “maravilha integral”. E, nesta data, em que se completam 38 anos da morte de Henriqueta e 130 anos do nascimento de Mário, reencontro, atados na intimidade da estante, "O menino poeta" – "para me ensinar/as bonitas cousas/do céu e do mar" – e “A face lívida”: "Não a face dos mortos./Nem a face/dos que coram/aos açoites/da vida./Porém, a face/lívida/dos que resistem/pelo espanto.//(...) Não a face da estátua/fria de lua e zéfiro./Mas a face do círio/que se consome/lívida/no ardor." 

Maria Mortatti – 09.10.2023

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[1] "Ao menino poeta" é o título da crônica publicada em O primeiro livro de Arthur, de Maria Mortatti (Scortecci Editora, 2022).

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O CORVO DE EDGAR ALLAN POE E O BUSTO DA DEUSA PALLAS ATENAS / JOÃO SCORTECCI

Tamerlão e outros poemas (Tamerlane and other poems) foi o primeiro livro publicado pelo poeta norte-americano Edgar Allan Poe (Edgar Poe, 1809 – 1849), lançado em julho de 1827, impresso pelo tipógrafo Calvin Frederick Stephen Thomas (1808 – 1876), edição do autor, 40 páginas, com tiragem de 50 exemplares. O livro contém um poema romântico que se inspira na figura do conquistador turcomano Timur Lenk (Tīmur ibn Taragay Barlas, 1336 – 1405), considerado o último dos grandes conquistadores nômades da Ásia Central, e o seu amor pela jovem Ada. Poe é autor do famoso poema O corvo (The raven), publicado pela primeira vez em janeiro de 1845, no jornal New York Evening Mirror, posteriormente sob a forma de livro pela editora Lorimer Graham e traduzido para o português por Machado de Assis, em 1883. No poema narrativo, é contada a história de um amante perturbado pela perda do amor de Lenora, o qual recebe em sua casa a misteriosa visita de um corvo falante, que pousa sobre o busto de Pallas Atenas, a deusa da sabedoria e da iluminação grega. Poe afirmou ter escrito de forma lógica e metódica, com a intenção de criar um poema que apelasse tanto ao gosto crítico quanto ao popular, como explicou em seu ensaio de 1846, A filosofia da composição. O poema foi inspirado em parte por um corvo falante do romance Barnaby Rudge: a tale of the riots of eighty, do inglês Charles Dickens (Charles John Huffam Dickens, 1812 – 1870). Edgar Allan Poe morreu no dia 7 de outubro de 1849. Alguns dias antes da sua morte, foi encontrado vagando pelas ruas da cidade de Baltimore, Maryland (EUA), com roupas que não eram as suas e em estado de alteração mental. Foi levado para o Washington College Hospital, onde faleceu. Tinha 40 anos de idade. Dizem que suas últimas palavras foram: “Senhor, por favor, ajude minha pobre alma”. Eis trecho de O corvo, na tradução de Milton Amado: (...) Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:/ É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais./Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,/Adeja e pousa sobre o busto, uma escultura de Minerva,/Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,/Empoleirado e nada mais (...)”

João Scortecci


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A COMISSÃO NACIONAL DE LITERATURA INFANTIL DO MINISTÉRIO CAPANEMA / MARIA MORTATTI

Pouco conhecida entre as iniciativas do governo constitucional (1934 – 1937) do Presidente da República Getúlio Vargas, a Comissão Nacional de Literatura Infantil (CNLI) foi criada pelo então Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, por meio de Portaria de 29 de abril de 1936. Composta inicialmente por renomados escritores e educadores, essa Comissão organizou e institucionalizou, em âmbito nacional, o debate sobre literatura infantil. Por meio de ações inovadoras no período inicial de funcionamento (1936 – 1938), contribuiu para a definição e consolidação desse gênero literário, em consonância com debates sobre educação, formação de leitores, criação de bibliotecas, expansão da indústria editorial no Brasil e o papel de intelectuais na proposição de políticas para cultura e educação do "Ministério Capanema", durante a Era Vargas, com importantes repercussões até hoje.

A CNLI tinha como atribuições: "a) organizar, periodicamente, relações, com apreciação crítica, das obras de literatura infantil, existentes em língua portuguesa, originais e traduzidas; b) escolher, dentre as obras de literatura infantil existentes em língua estrangeiras, aquelas cuja tradução ou adaptação seja conveniente fazer; c) indicar ao governo as providências que devam ser tomadas para a eliminação das obras de Literatura Infantil, perniciosas ou sem valor; d) indicar ao governo as providências tenentes a promover em todo país o desenvolvimento da boa literatura infantil, bem como a instituição de bibliografia para crianças." Para sua composição, Capanema nomeou a educadora Maria Junqueira Schmidt, que participou apenas da primeira reunião; a poeta e educadora Cecília Meireles, que participou apenas por três meses; a educadora Elvira Nizinska da Silva; a poetisa e jornalista Maria Eugênia Celso; os poetas Jorge de Lima, Murilo Mendes, Manuel Bandeira; o escritor José Lins do Rego; e, depois, o educador Manoel Bergström Lourenço Filho. As reuniões semanais eram realizadas no prédio do Ministério de Educação e Saúde (MES), no gabinete de Capanema, presidente da Comissão. Em sua ausência, Murilo Mendes atuava como presidente e coordenador dos trabalhos. 

Segundo a pesquisadora Ângela de Castro Gomes, a questão fundamental e inicial nos debates da Comissão era a definição de literatura infantil e das obras que poderiam ser assim classificadas, para nortear suas ações e a do governo. Compreendendo a complexidade do problema, pois  quase todos os gêneros literários para adultos em prosa e verso podiam se enquadrar ou se adaptar à literatura infantil, a Comissão optou por definir, com certo consenso, o que não é literatura infantil: textos com explícitos objetivos didáticos e programáticos, técnicos e científicos. Colocavam, assim, no centro dos debates o antigo problema da relação entre útil e agradável na literatura para crianças e sua relação com a instrução e a escola, que marcam a origem do gênero no contexto europeu do século XVIII bem como as traduções/adaptações brasileiras e a produção de livros de leitura para crianças no século XIX brasileiro, pelos "precursores" do gênero que se consolidou com Monteiro Lobato a partir dos anos 1920. Os integrantes da Comissão optaram, então, pela proeminência do caráter estético e recreativo e da forma literária e da “fantasia” sobre o conteúdo instrutivo e, ainda, por incluir livros escritos por crianças. 

Das atividades da CNLI resultaram pareceres, relatórios, artigos, enquetes, concursos e projetos de incentivo à leitura e à produção de livros para crianças, que contribuíram para mapear, identificar e classificar a produção existente até então e promover o debate sobre novas formas de produção cultural, em consonância com o projeto de modernização da nação. Elvira Nizinska da Silva ficou responsável pela organização, em maio de 1936, do Catálogo Preliminar de Obras de Literatura Infantil em Língua Portuguesa (Editadas no Brasil e em Portugal), que reuniu 658 títulos, dos quais 576 publicados no Brasil, e pela proposta de organização de bibliotecas infantis – que deveriam funcionar também como Centro de Cultura e Lazer, a exemplo de iniciativas semelhantes, como a Biblioteca do Pavilhão Mourisco, em 1934, no Distrito Federal, e a Biblioteca Monteiro Lobato, em 1925, na capital paulista –, detalhando aspectos relativos, entre outros, à instalação e à apresentação de uma “lista de livros aprovados e recomendados”, que continha 68 títulos, entre os quais de livros de: Monteiro Lobato (em maior número), Viriato Correa, Thales de Andrade, Arnaldo de Oliveira Barreto, Olavo Bilac, José Lins do Rego, Jorge Amado, Matilde Garcia Rosa, Erico Veríssimo e João Ribeiro (com a tradução, de 1886, de Coração, de De Amicis). A Comissão também organizou uma lista de livros que poderiam ser traduzidos para o português, preocupou-se com as então novas formas de produção cultural, como programas de rádio para crianças, histórias em quadrinhos, gibis, suplementos infantis dos jornais. E promoveu e organizou um concurso de livros infantis, realizado em 1937, com objetivo de estimular a produção de textos originais, em três categorias, conforme faixas etárias das crianças, com premiação em dinheiro, um prêmio específico para gravuras e com definição de critérios de avaliação norteados pelo equilíbrio entre fantasia e realidade, recreação e instrução, com linguagem rítmica e simples e gravuras com cores vivas. A Comissão avaliou 80 livros, e foram premiados autores que já eram ou se tornaram reconhecidos quando começaram a escrever para crianças, indicando o interesse de escritores por esse gênero. Entre eles, estavam: Luís Jardim, Lúcia Miguel Pereira, Marques Rebelo, Graciliano Ramos e Erico Veríssimo. 

Após o golpe de 10 de novembro de 1937 que instituiu o Estado Novo, acentuou-se o caráter centralizador também do MES. Na gestão de Capanema, além de iniciativas importantes no campo das artes, foram fundados, no final de 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, responsável por tombamentos, preservação, pesquisas e edições, e o Instituto Nacional do Livro, responsável pela política nacional do livro e das bibliotecas públicas. Em 1938, além da política de nacionalização do ensino, tornando a língua portuguesa obrigatória, foram criadas a Comissão Nacional de Ensino Primário, que estabeleceu normas e procedimentos para a nacionalização do ensino, a Comissão Nacional do Livro Didático, que determinou as condições de produção, importação, utilização e avaliação do livro didático no País, e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), que passou a ser dirigido por Lourenço Filho. A partir de 1939 – ano em que também foi inaugurada a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, com grande influência no ensino médio e superior –, a CNLI passou a ser vinculada ao Inep, com composição apenas de educadores, permanecendo Lourenço Filho e Elvira Nizinska da Silva até o fim das atividades, em 1941. Em 1939, Lourenço Filho enviou carta ao Ministério da Educação e Saúde, solicitando proibição da venda de livros de aventuras policiais para crianças, pois poderiam prejudicar seu bom desenvolvimento intelectual, psicológico e moral. Pelos mesmos motivos, a CNLI enviou carta à Associação Brasileira de Imprensa, publicada em jornais do Rio de Janeiro, solicitando a colaboração para sugerir aos editores que retirassem notícias de crimes das capas dos jornais. Complementando as medidas centralizadoras do "Ministério Capanema", a partir de 1942 foram promulgadas as leis orgânicas do ensino primário, secundário, normal, industrial, comercial, que permaneceram em vigor até a aprovação, em 1961, da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 

Apesar do período de turbulências políticas, a CNLI contribuiu, sobretudo nos primeiros anos de funcionamento e com participação de prestigiados representantes da intelectualidade literária e educacional, para a institucionalização do debate sobre literatura infantil. Se não "resolveu" o complexo problema original do equilíbrio entre útil e agradável, influenciou decisivamente na consolidação do gênero, na implementação de políticas públicas de educação, cultura, leitura, livro e biblioteca, no incentivo a novos escritores e ilustradores, na consolidação da indústria editorial brasileira voltada para o público infantojuvenil e na expansão da produção teórica e crítica sobre o tema. Destacados exemplos desse processo se encontram: no ensaio "Como aperfeiçoar a literatura infantil" (1943), de Lourenço Filho, conferência proferida a convite da Academia Brasileira de Letras, e no livro Problemas da literatura infantil (1951), de Cecília Meireles, resultante de curso para professoras de Belo Horizonte/MG, em 1949; na criação, em 1968 – durante outro período político conturbado por regime ditatorial –, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, seção da International Board on Books for Young People; no "boom", a partir dos anos 1980, de escritores, ilustradores e editoras especializadas no gênero; e na conquista do "reconhecimento" da literatura infantil brasileira também pela Academia Brasileira de Letras, com a eleição, em 2003, da escritora Ana Maria Machado.  

Maria Mortatti – 03.10.2023 

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PEIXES-BANANA, REVISTA “THE NEW YORKER” E J. D. SALINGER / JOÃO SCORTECCI

The New Yorker é uma revista norte-americana dedicada à cobertura da vida cultural da cidade de Nova York, que publica críticas, ensaios, reportagens investigativas e também ficção. A revista – fundada por Harold Ross (Harold Wallace Ross, 1892 – 1951), estreou em 21 de fevereiro de 1925. A primeira capa, com um cavalheiro de cartola observando uma borboleta através de um monóculo, foi desenhada pelo artista gráfico, Rea Irvin (1881 – 1972), que também desenvolveu a fonte que é usada para logo e manchetes da revista. O conto “Um dia perfeito para os peixes-banana”, do escritor norte-americano J. D. Salinger (Jerome David Salinger, 1919 – 2010), foi publicado, pela primeira vez, em The New Yorker, no ano de 1948. O conto relata um dos efeitos colaterais da Segunda Guerra entre alguns de seus sobreviventes: a melancolia, os transtornos mentais e a predisposição ao suicídio. O romance O apanhador no campo de centeio, publicado em 1951, é o seu livro de maior sucesso de público e vendas. Um milhão de cópias são vendidas a cada ano, com totalizando mais de 65 milhões de exemplares. Foi incluído na lista da Time Magazine dos 100 melhores romances em inglês, escritos desde 1923. Salinger morreu de causas naturais em sua casa, em New Hampshire, em 27 de janeiro de 2010, aos 91 anos de idade.

João Scortecci

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NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM LIVRO / JOÃO SCORTECCI

Nada mais “interessante” que uma biblioteca itinerante de livros! Coleciono fotos, textos, reportagens e arquivos sobre o assunto. Engenhocas não faltam! Na Internet podemos encontrar milhões de ideias e projetos viáveis e bem-sucedidos. Qualquer serviço de biblioteca, que não esteja fixo num lugar, é classificado como uma biblioteca itinerante. Já vi de tudo, transformado em biblioteca: ônibus, carroça, Kombi, bicicleta, motocicleta, mulas, bancos de praça, vagão de trem, caminhão, canoa, barco, carrinhos de picolé, pirâmide, geladeira, lambreta e outros. A primeira biblioteca itinerante que conheci – e que me marcou, muito – foi o navio-biblioteca português, no Porto de Santos/SP, no ano de 1972, numa excursão com alunos do Instituto Mackenzie. Voltei encantado! O objetivo principal de uma biblioteca itinerante é facilitar o acesso ao livro e fomentar o hábito da leitura. O primeiro plano de biblioteca itinerante realmente praticável parece ter sido iniciado pelo engenheiro e inventor inglês Samuel Brown (1799 – 1849), em East Lothian, na Escócia, em 1817. Brown adquiriu 200 volumes selecionados – cerca de dois terços dos quais eram de tendência moral e religiosa e o restante eram livros de viagens, agricultura, artes mecânicas e ciências populares – e montou quatro bibliotecas de rua com 50 volumes cada, em Aberlady, Saltoun, Tyninghame e Garvald. Em 20 anos, essas bibliotecas aumentaram para 3.850 volumes distribuídos por 47 aldeias. Uma das primeiras bibliotecas itinerantes foi a Biblioteca Perambulante de Warrington (Warrington Perambulating Library), montada em uma carrinha de cavalo, operada pelo Warrington Mechanics' Institute, em Cheshire, Inglaterra, no ano de 1858. O serviço de livros “perambulantes” foi sucesso imediato e funcionou, ininterruptamente, até 1872. No Brasil, a ideia anda viajando! As bibliotecas itinerantes estão em todas as partes: praças, vilas, centros culturais, escolas, estações de metrô e trem, clubes e feiras. Desde 2001, ajudo na formação de bibliotecas públicas e comunitárias, doando livros, inicialmente por meio do Portal Amigos do Livro e agora, desde 2022, com o Projeto Livros para Todos. Gosto de pensar que no meio do caminho tinha um livro, algo assim.  

João Scortecci


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ALEXINA PINTO E O SILÊNCIO DA LOCOMOTIVA / JOÃO SCORTECCI

O trem apitou – avisando que estava passando – e de nada adiantou. A educadora e escritora Alexina Pinto, surda desde os 45 anos de idade, foi atropelada pela locomotiva – em 17 de fevereiro de 1921, com 51 anos –, no distrito de Corrêas, em Petrópolis/RJ. Alexina Leite de Magalhães Pinto (1869 – 1921) era descendente de uma das mais tradicionais famílias mineiras, da cidade de São João Del-Rei. Pioneira nos estudos do folclore e revolucionária em seus métodos de ensino, com apenas 20 anos de idade Alexina partiu para Europa e, durante o tempo que lá ficou – pouco mais de um ano –, fez cursos, na Itália, Espanha, Portugal e França, sobre novas técnicas de ensino. De volta da Europa, trouxe na bagagem uma bicicleta e roupas de ciclismo, para espanto da sociedade conservadora são-joanense. Em 1896, sem espaço, perseguida e criticada devido aos seus métodos de ensino nada convencionais, mudou-se de São João Del-Rei para a cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu, dando aulas, por mais de 20 anos, até perder a audição. Alexina Pinto rompeu paradigmas ao substituir os castigos físicos por tarefas intelectuais. Proibiu o uso da palmatória em sala de aula, substituindo-a por exercícios de memória: trava-línguas, declamação de poesias e cantigas do folclore nacional e regional. Publicou cinco livros: “As nossas histórias”; “Os nossos brinquedos”; “Cantigas de criança e do povo e danças populares”; “Provérbios, máximas e observações usuais” e “Cantigas das crianças e dos pretos”. Colaborou assiduamente no “Almanaque Brasileiro Garnier”, editado pela Livraria Garnier do Brasil, que circulou de 1903, sob a direção de Ramiz Galvão, até 1906 e, daí em diante, foi dirigido por João Ribeiro, até 1914, quando deixou de circular. Alexina Pinto é referência, entre outros, no “Dicionário do Folclore Brasileiro” do historiador, musicólogo, antropólogo e folclorista Câmara Cascudo (Luís da Câmara Cascudo, 1898 – 1986), como a primeira brasileira a valorizar a cultura tradicional do seu povo. O trem apitou e de nada adiantou. 

João Scortecci


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FAULKNER E A IMORTALIDADE DA ARTE / MARIA MORTATTI

Em seu discurso no banquete de premiação com o Nobel de Literatura de 1949, o escritor estadunidense William Faulkner (25.09.1897 – 06.07.1962) assim expressou sua compreensão sobre a finalidade e o dever de todo escritor: 

Eu me recuso a aceitar [o fim do homem]. Acredito que o homem não apenas resistirá: ele prevalecerá. Ele é imortal, não porque só ele entre as criaturas tenha uma voz inesgotável, mas porque tem uma alma, um espírito capaz de compaixão, sacrifício e resistência. O dever do poeta, do escritor, é escrever sobre essas coisas. É seu privilégio ajudar o homem a perseverar, elevando o seu coração, lembrando-lhe a coragem, a honra, a esperança, o orgulho, a compaixão, a piedade e o sacrifício que foram a glória do seu passado. A voz do poeta não precisa ser apenas o registro do homem, pode ser um dos suportes, os pilares para ajudá-lo a resistir e a prevalecer”. (Tradução livre)

Sobre “essas coisas” Faulkner escreveu em seus romances e contos, que lhe renderam o reconhecimento como um dos maiores romancistas do século XX e a premiação com o Nobel por "sua poderosa e única contribuição ao romance americano moderno", o National Book Award, em 1951, e o Prêmio Pulitzer de ficção, em 1955 e 1962. Reconhecia a influência de diversos escritores, tais como Proust, Joyce, Twain, Keats, Dickens, Conrad, Balzac, Bergson e Cervantes e, sobretudo, Shakespeare, o qual desde sua juventude, Faulkner se propunha a “superar”, quando escrevia poemas sobre temas românticos. Ao longo de sua carreira como romancista, intercalou atividade de roteirista de cinema em Hollywood, para sustento financeiro de sua família: a esposa Estelle Oldham, com que se casou em 1929 e que já tinha dois filhos, e a filha do casal. Iniciou-se na prosa com o romance Sartoris (1928) e, provavelmente decepcionado com a rejeição inicial do livro por leitores e críticos, quando começou a escrever O som e a fúria (1929) decidiu não se importar com os editores nem com o leitor ideal e passou a escrever em estilo mais livre. “Eu disse a mim mesmo: 'Agora eu posso escrever'". E conta ter escrito para si e com prazer. Em contraste com o de Hemingway, seu contemporâneo, o estilo de Faulkner é caracterizado pela técnica do fluxo de consciência, narração fragmentada, com idas e vindas no tempo, peculiares pontuação, dicção e ritmo, períodos gramaticais extensos, muitos personagens com diferentes vozes narrativas, como ex-escravos ou descendentes, brancos pobres, agricultores, trabalhadores e aristocratas, abordando a decadência econômica e moral do Sul dos Estados Unidos da América, após a Guerra da Secessão (1861 e 1865). Nos seus mais densos romances, a ação se passa no fictício Condado de  Yoknapatawpha, evocando a presença, em sua obra, do estado de Mississippi, onde o escritor nasceu, passou grande parte da vida e morreu, de ataque cardíaco, com 64 anos de idade. 

Mas não se conhece de fato um escritor, senão lendo sua obra. E, mesmo com as advertências sobre a complexidade estilística da obra de Faulkner, sempre é melhor começar. Assim fiz. E logo fui enredada pelos três primeiros que li, nos anos 1980. The sound and the fury (1929) – O som e a fúria, na tradução brasileira de Fernando Nuno Rodrigues, pela Nova Fronteira (1983) –, que Faulkner considerava o romance cuja escrita lhe causou êxtase inigualável e marca o início das características estilísticas de sua obra, sendo considerado pela crítica como obra central da ficção do século XX. Com título extraído de um verso do célebre monólogo de Macbeth, de Shakespeare, trata-se da história da última geração dos Compson, entre 2 de julho de 1910 e 8 de abril de 1928, narrando a decadência da família em que, no passado, houve homens poderosos, “uma sombria história de loucura e ódio”, nas palavras do autor. Num dos mais simbólicos diálogos do romance, o patriarca decaído entrega o relógio ao filho Kentin, dizendo: “[o relógio] eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que o possa esquecer por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo.” Não houve tempo, talvez, pois Kentin cometeu suicídio logo depois, tendo ferido a mão ao tentar destruir o relógio. 

As I lay daying (1930) – Enquanto agonizo, na tradução brasileira de Hélio Pólvora, pela Expansão Editorial (1978) –, que Faulkner escreveu nas madrugadas em seu turno de trabalho nas caldeiras da Universidade de Mississipi, contém narrativa fragmentada, com “ausência” do escritor no relato e narração direta pelos personagens da história da família Bundren, de brancos pobres dos Sul dos Estados Unidos, na época da decadência agrícola, que viaja para a cidade de Jefferson, levando, em uma carroça, o caixão da mãe, Addie, a quem o marido prometera cumprir esse seu último desejo. A narrativa é marcada por peripécias trágicas. Enquanto ela agoniza, da janela de seu quarto, vê o filho Cash preparando o caixão, e, no trajeto, têm de atravessar um rio e depois salvar o caixão de um incêndio. Após o sepultamento, o marido Anse aparece de dentadura nova, bem arrumado e com uma nova esposa. Nesse romance está o capítulo talvez mais breve da literatura, contendo apenas as cinco palavras do monólogo interior do filho mais novo, Vardaman, que associa a morte da mãe com a de um peixe que ele tinha pescado e limpado pela manhã: “Minha mãe é um peixe”. 

Absalão, Absalão (1936) – tradução brasileira de Sônia Regis, Nova Fronteira (1981) –, traz a referência no título e também na trama à história bíblica de Absalão, filho de Davi, que mata o irmão Amnom, ao saber de sua relação incestuosa com sua irmã, Tamar. No romance de Faulkner, também fragmentado com lembranças e episódios do passado, é narrada, por vários personagens, a história de ascensão e queda de Thomas Sutpen, originário de vida miserável no estado de Virginia, que se torna o maior plantador de algodão do condado de Yoknapatawpha, e que, no contexto da Guerra Civil e da segregação racial, tentou criar uma dinastia familiar, mas sobre sua casa e estirpe pesou a maldição: o incesto, o fratricídio e o conflito entre pai e o filho que o traiu. Ambientado entre 1909 e 1910, o enredo amplia a história do personagem Quentin, que cometeu suicídio em O som e a fúria

Com esses e outros importantes romances e contos que se seguiram até sua morte, além de alguns poemas inéditos, apesar de críticas a seu estilo e objeções a suas representações "insensíveis" de mulheres e negros norte-americanos, a obra de Faulkner continua influenciando escritores em outros países, incluindo os da América do Sul. Em 1954, ele publicou The Faulkner reader, com uma seleção de seus textos de três décadas anteriores, incluindo O som e fúria, e acrescentou um prefácio, no qual resume seu “credo”: o escritor escreve “para elevar o coração do homem”. 

Algum dia [ele] não mais existirá, o que pouco importará, porque permanecem, destacadas e invulneráveis na impressão fria, as palavras ainda capazes de suscitar a antiga emoção imortal nos corações e glândulas cujos proprietários e depositários são as gerações provenientes do ar que ele respirou e no qual se angustiou. (Tradução livre)

Maria Mortatti – 24.09.2023


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LU XUN E AS “FLORES MATINAIS COLHIDAS AO ENTARDECER” / JOÃO SCORTECCI

O escritor chinês Lu Xun (Zhou Zhangshou, 1881 – 1936) é considerado o pai da literatura moderna na China. É o representante máximo do “Movimento Quatro de Maio” – de 4 de maio de 1919 –, movimento anti-imperialista, cultural e político, em protesto contra a resposta do governo chinês ao Tratado de Versalhes, tratado de paz assinado pelas potências europeias, que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial e, em especial, contra a permissão dada ao Japão para manter territórios em Shandong – província da República Popular da China e centro cultural e religioso fundamental para o taoísmo, o budismo chinês e o confucionismo –, que tinham sido devolvidos pela Alemanha, após o cerco de Tsingtao, encontro entre as forças japonesas e alemãs, de 31 de outubro a 7 de novembro de 1914. Lu Xun fez parte da Liga de Escritores de Esquerda e se destacou por seus ataques à cultura chinesa tradicional e pela defesa da necessidade de reformas profundas na cultura e na sociedade chinesas. Entre 1902 e 1909, viveu no Japão e começou os estudos na Faculdade de Medicina da Universidade de Tohoku. Anos mais tarde, contou o motivo de não ter concluído o curso: “O que a China realmente precisava era de uma reforma da sua cultura e sua sociedade.” Em 1909, voltou a seu país. Em 1918, na revista reformista “Nova Juventude”, publicou "Diário de um Louco", obra pioneira no seu gênero escrita em língua vernácula. Defendia a abolição do uso dos caracteres chineses e se mostrava partidário da adoção do “latinxua”, um dos múltiplos sistemas de escrita do idioma chinês com alfabeto latino usados naquela época. Sua obra inclui contos, novelas, crônicas e ensaios. Em 1926, escreveu “Flores matinais colhidas ao entardecer”, a única obra publicada no Brasil, em edição bilíngue, com tradução de Yu Pin Fang, pela Editora da Unicamp. Lu Xun morreu de tuberculose, em Shanghai, no ano de 1936, com 55 anos de idade.

João Scortecci

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AS INVENÇÕES MÍ(S)TICAS DE JORGE DE LIMA / MARIA MORTATTI

Invenção de Orfeu é o coroamento da obra imensa em extensão, profundidade, simplicidade, complexidade, mutabilidade, multiplicidade de Jorge de Lima (União dos Palmares/AL, 23.04.1893 – Rio de Janeiro/DF, 15.11.1953). Homem de muitas facetas, foi poeta, romancista, ensaísta, biógrafo, médico – cujo consultório na Cinelândia, na cidade do Rio de Janeiro, funcionava como ateliê e local de reunião de artistas e intelectuais –, artista plástico, professor de história natural e literatura brasileira, político. Tornou-se conhecido e popular como escritor: em 1921, foi eleito “Príncipe dos poetas alagoanos”; em 1940, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (ABL); e seus poemas foram traduzidos para outros idiomas, como inglês, espanhol, francês. Foi candidato cinco vezes, sem êxito, a uma cadeira na ABL e indicado pela Academia Sueca para o Nobel de Literatura de 1958, que não pôde receber, pois faleceu cinco anos antes da premiação. Em 2020, foi homenageado com uma estátua exposta na praça em frente à casa onde nasceu e atualmente é sede da Academia Alagoana de Letras.

Sua obra literária é marcada por itinerário multifacetado e capacidade de se renovar, com diferentes temas, formas e estilos literários: parnasiano, desde o primeiro poema, "O acendedor de lampiões", que escreveu com 14 anos de idade, depois modernista, com marcas regionalistas nordestinas e valorização da cultura afro-brasileira, religioso, cristão, bíblico, místico, surrealista. A complexidade desse itinerário está sintetizada em seu projeto literário mais amplo e ambicioso: Invenção de Orfeu – biografia épica, biografia total e não, uma simples descrição de viagem, ou de aventuras. biografia com sondagens; relativo, absoluto e uno, mesmo o maior canto é denominado – biografia, que foi publicado em 1952, pela editora Livros de Portugal (RJ). Nesse poema épico-lírico-dramático, composto de 10 cantos e quase 11 mil versos, com várias formas poéticas e em prosa, reinventando o mito grego de Orfeu como metáfora para a criação do poeta – um visionário – em busca da poesia – a utopia da “ilha” –, Jorge de Lima funde sonho, mito e literatura, dialogando com a tradição poética clássica e moderna, por meio de referências diretas ou indiretas a Homero, Virgílio, John Milton, Dante Alighieri, Camões, Lautréamont, Arthur Rimbaud, T.S. Eliot, Ezra Pound, entre outros. O poema foi elogiado e aclamado por críticos literários e escritores, como Murilo Mendes – amigo dileto do poeta, primeiro leitor de Invenção de Orfeu e a quem é dedicado o livro, além de outros poemas – Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Tristão de Ataíde, Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, e também foi criticado por alguns ou esquecido por outros. Mas Jorge de Lima continua desafiando leitores e estudiosos, como prenunciava o crítico português João Gaspar Simões, no ensaio introdutório da primeira edição do livro, ou o escritor Antonio Olinto, membro da ABL, quando escreveu, em 1998, sobre o “caso Jorge de Lima” e os motivos de ter sido recusado pela Academia, apesar ser “o que mais longe foi em nossa terra na feitura do verso e no uso da poesia como expressão de um povo e de uma nação.” Sua obra é também referência direta ou indireta, principalmente para estudantes, como “integrante da segunda geração do modernismo” ou pelas adaptações de seu poema “O grande circo místico” – do livro Túnica inconsútil (1938) –, no qual o poeta narra a saga da família austríaca do grande circo Knieps, no início do século XX. O poema foi roteirizado para o espetáculo O Grande Circo Místico, do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba/PR, em 1983, com música de Chico Buarque e Edu Lobo, e esteve em turnê durante dois anos, com audiência de mais de 200 mil pessoas, no Brasil e em Lisboa; em 2018, foi lançado o filme inspirado no poema e dirigido pelo brasileiro Cacá Diegues.  

Essas e tantas outras invenções míticas e místicas de Jorge de Lima também fazem parte de minha formação literária. Em 1976, comprei, na Livraria Brasiliense, na cidade de São Paulo, os quatro volumes – em brochura costurada, 12,5 x 20 cm, cada um por Cr$ 15,00 – de suas poesias completas, publicadas em 1974, pela J. Aguilar e Instituto Nacional do Livro/MEC, na coleção Biblioteca Manancial. O papel Buffon está amarelado e algumas páginas mostram as marcas de minhas leituras, mas continuam me convidando a releituras e reflexões, especialmente Invenção de Orfeu, essa túnica inconsútil a envolver o mistério e o enigma da obra do poeta nascido há 130 anos e falecido há 70 anos, que tinha “fome universal”, ansiava pela eternidade e, no livro Anunciação e encontro de Mira-Celi, assim anuncia a dimensão transfiguradora da poesia: 

Nós os poetas, dentro da morte e libertados pela morte,
somos os grandes alquimistas, os únicos achadores da pedra filosofal,
porque nos transformamos a nós próprios
em périplos verdadeiros e imperecíveis.

Maria Mortatti – 22.09.2023 

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O "CORREIO PAULISTANO" E OS "FUTURISTAS ENDIABRADOS" DE 22 / JOÃO SCORTECCI

O Correio Paulistano foi o primeiro jornal diário paulista e o terceiro do Brasil. Teve como fundador o proprietário da Typographia Imparcial – sucessora da Typographia Liberal (1854 até 1888) –, de Azevedo Marques (Joaquim Roberto de Azevedo Marques, 1824 – 1892), e, como primeiro redator, Pedro Taques de Almeida Alvim. O jornal nasceu liberal e teve posições avançadas, em sua época. Posteriormente, aderiu ao Partido Conservador e, após a criação do Partido Republicano Paulista (PRP), passou a ser seu órgão oficial, em junho de 1890. Durante o período imperial, foi um forte formador de opinião pública. Notabilizou-se pela defesa da abolição da escravatura e da causa republicana. Mais tarde, apesar de ser dirigido e sustentado por oligarcas tradicionalistas, foi o único, entre os grandes jornais de São Paulo, a apoiar a Semana de Arte Moderna de 1922, reconhecendo o vanguardismo do movimento modernista – enquanto os demais jornais da época se referiam aos modernistas como "subversores da arte", "espíritos cretinos e débeis" ou "futuristas endiabrados". A presença do poeta, jornalista, tabelião, advogado, romancista, pintor e ensaísta Menotti Del Picchia (1892 – 1988) na redação – ou “Helios” como costumava assinar a sua coluna "Crônica social" –, foi fundamental para o apoio do jornal à Semana de 22. O Correio Paulistano circulou de 1854 até 1963, encerrando suas atividades com 33.882 edições veiculadas na cidade. O prédio do jornal ficava na esquina da Rua Líbero Badaró com o Largo de São Bento, no centro histórico da capital paulista. Por muitos anos, o papel – então importado – utilizado na impressão de jornais era popularmente conhecido como "papel CP", sigla alusiva às letras iniciais do Correio Paulistano. Além do pioneirismo liberal e de posições avançadas para a época de sua fundação, foi o primeiro jornal a ser impresso em máquinas de aço, abandonando a mão de obra escrava; o primeiro com oficinas a vapor; o primeiro publicado às segundas-feiras; o primeiro a ser impresso em uma máquina rotativa; o primeiro no formato Standard, 600 x 750 mm; e o primeiro a contratar fotógrafos profissionais para ilustrar suas matérias. O jornal foi fechado até 1934, por ordem de Getúlio Vargas. As oficinas foram incorporadas ao patrimônio do estado de São Paulo. Daí em diante, o jornal teve vários proprietários, até ser definitivamente fechado em 1963. 

João Scortecci

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AKHMATOVA, "ANNA DE TODAS AS RÚSSIAS" / MARIA MORTATTI

Quando conheci Anna Akhmatova, pseudônimo de Anna Andreevna Gorenko (Odessa, 23.06.1889 – Leningrado, 05.03.1966), ela já era mundialmente reconhecida. Em 1964, foi laureada com o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina; em 1965, recebeu o título de Doctor Honoris Causa da Universidade de Oxford; 1989 foi proclamado pela Unesco o “Ano Anna Akhmatova”, em comemoração ao centenário de seu nascimento; e com seu nome foi batizada uma estrela então recém-descoberta por astrônomos russos. Na Rússia, o centenário de seu nascimento foi celebrado com muitos eventos literários e culturais, e no apartamento comunitário em que morou durante 40 anos foi instalado o Museu Anna Akhmatova.

“Anna de todas as Rússias” – epíteto que lhe atribuiu a poetisa Marina Tsvetáieva (1892 – 1941) – viveu e sobreviveu a duras tragédias pessoais e condições políticas e econômicas, na Rússia pré-revolucionária do início do século XX, na União Soviética, após 1917/22, na resistência durante o cerco nazista a Leningrado, na repressão durante a Guerra Fria, e começou a ser “reabilitada” após o período de “degelo”, que se seguiu à morte de Joseph Stalin, em 1953. Em condições difíceis, tornou-se um ícone da “Era de Prata” da literatura russa moderna e expoente do Acmeísmo – movimento de reação ao Simbolismo na literatura. Além de poesia, escreveu prosa, memórias, trabalhos autobiográficos, estudos literários sobre escritores russos e, para sobreviver durante seu “banimento”, traduziu poesia italiana, francesa, armênia e coreana. 

Seu primeiro poema, publicado aos 20 anos de idade, rendeu-lhe advertência do pai – engenheiro naval –, temeroso de que ela envergonhasse a família, o que a fez decidir pelo pseudônimo. Em 1910, casou-se com o poeta acmeísta Nikolái Gumilióv que depois foi preso e fuzilado, acusado de suposta conspiração, e com quem teve um filho, Liev, preso e enviado para campos de trabalho na Sibéria, sendo impedida de vê-lo por muitos anos. Em 1914, publicou seu segundo livro de poemas, Beads, que a tornou conhecida e popular; em 1917, White Flock; e, em 1922, depois do fuzilamento do marido, publicou Anno Domini MCMXXXI. A partir do ano seguinte, seus poemas foram duramente criticados pelo regime stalinista, por não se enquadrarem no "realismo socialista" e influenciarem negativamente leitoras e leitres, foi expulsa da União de Escritores e impedida de publicar até os anos 1940. Casou-se outras vezes, manteve relações afetivas e literárias com figuras importantes e com grandes poetas e artistas, como Maiakóvski, Mandelshtám, Pasternák, Prokófiev, Anna Pávlova, Nijínski, Tsvetaeva, Modigliani, alguns dos quais tiveram destinos trágicos, como Mandelstam, que morreu em campo prisioneiros na Sibéria, e Marina Tsvetáieva, que foi assassinada e declarada suicida.

Mas Akhmatova nunca deixou de escrever poesia. Para não ser denunciada, depois de escrever seus poemas, pedia aos amigos que lessem, memorizassem e lhes devolvessem para ela então queimar o papel, como relata sua amiga e confidente, a escritora Lydia Cukovskaia, que registrou muitos acontecimentos da vida da poetisa e transcreveu ou decorou seus versos. Assim Akhmatova escreveu  os mais famosos de seus poemas: Requiem, entre 1935 e 1940, e o épico Poema sem herói, composto entre 1940 e 1965, contendo análise profunda de sua época e que ela considerava o coroamento de sua obra, sendo também considerado um dos melhores poemas do século XX e publicado depois de sua morte, com 76 anos de idade, em decorrência de saúde frágil e tuberculose. 

Na Rússia, apenas no final dos anos 1980 ela conquistou pleno reconhecimento. Seus trabalhos até então impublicáveis/censurados se tornaram acessíveis ao público em geral. E, entre 1998 e 2005, foram publicados os seis volumes de sua obra completa, Ellis-Lak. Certamente em decorrência da publicação de sua obra na Rússia, do centenário de seu nascimento e de dois fatos marcantes na geopolítica mundial, a abertura política e econômica da Rússia iniciada em 1985 – que resultou na dissolução da URSS em 1991 – e a queda do Muro de Berlim, em 1989, traduções de alguns de seus poemas começaram a ser publicados no Brasil naquela época: em Antologia da poesia russa moderna, por Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman (Brasiliense, 1985) e no livro Anna Akhmatova – Poemas: 1912 – 1964 (L&PM, 1991), com seleção e tradução do jornalista, crítico musical e tradutor Lauro Machado Coelho (1944 – 2018), também autor de biografia da poetisa, publicada em 2008. 

Foi com esse livro que, em 1991, conheci e mergulhei, com Anna Akhmatova, “numa poesia que nunca deixou de ser um depoimento pessoal e autobiográfico, [e] traçou também o trajeto de sua nação naqueles anos de fogo”. Decorei muitos poemas, depois conheci outros e sua biografia. Anna de todas as Rússias e de todos os que conhecem sua poesia se tornou definitivamente um minha, também. E até hoje aquela primeiro livro me acompanha, sempre com novas revelações. Como estes versos de dois poemas seus, que ela me assoprou, enquanto eu a visitava para escrever este texto: 

Epigrama

Pode Beatriz criar como se fosse Dante
ou Laura celebrar a chama do amor?
Eu ensinei as mulheres a falar,
mas agora, meu Deus, como fazê-las calar?

 

Terceira (das “Elegias do Norte”)

Mas se eu pudesse observar de fora
a pessoa que hoje sou,
aí sim, aprenderia finalmente o que é a inveja.


Maria Mortatti – 19.09.2023


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FARDA, FARDÃO, BILAC E PATROCÍNIO, EM TEMPOS “VAPOROSOS” / JOÃO SCORTECCI

O inventor e industrial francês Léon Serpollet (1858 – 1907), foi o pioneiro dos automóveis e bondes movidos a vapor, da marca Gardner-Serpollet. Em 1896, inventou e aperfeiçoou a flash boiler, um tipo especial de caldeira, muito mais compacta e controlável, ideal para o uso em veículos. Em abril de 1902, na capital da França, dirigindo seu potente Serpollet, obteve o recorde de velocidade no solo: 120,8 km/h. O primeiro carro da cidade do Rio de Janeiro – um Serpollet a vapor – foi adquirido pelo farmacêutico, jornalista e abolicionista José do Patrocínio (José Carlos do Patrocínio, 1853 – 1905), que trouxe a novidade, no ano de 1897, quando retornou de Paris. Na história das “trombadas” literárias, foi o primeiro arauto de acidente automobilístico da cidade do Rio de Janeiro, na época, Capital Federal. No volante – na função de piloto – estava o poeta, inspetor de ensino e membro da Academia Brasileira de Letras, Olavo Bilac (Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac, 1865 – 1918); e, de copiloto e orientador, o próprio José do Patrocínio. A máquina abalroou à velocidade de 4 km/h, na estrada velha da Tijuca. A vítima teria sido uma árvore que, bravamente, resistiu ao impacto. A mesma sorte não teve o vaporoso Serpollet, que acabou no ferro-velho. É o que dizem. Dizem, ainda, que Olavo Bilac se gabava de ter sido o precursor dos acidentes de automóvel no Brasil. Em crônica publicada no jornal A Notícia, em 1905, Bilac assim descreve o primeiro automóvel da cidade do Rio de Janeiro: feio, pequenino, amarelo e que deixava um cheiro insuportável de petróleo no ar e, quando "havia pane, a garotada, formando círculos em torno do veículo, rompia em vaias." Sinopse dos fatos: poeta, inspetor de ensino, acadêmico, parnasiano, desabilitado, abalroou máquina alheia, no tronco de uma árvore, na Tijuca, “com o afeto que se encerra em nosso peito juvenil”. O resto é fofoca e – de passagem – não faz parte de Farda, Fardão, Camisola de Dormir (1979) – romance em que são narradas intrigas políticas em eleição para a Academia Brasileira de Letras, durante o Estado Novo –, nem das desavenças ideológicas de seu autor Amado, o Jorge.

João Scortecci

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"BIBLIOTECA DE BABEL” E A BIBLIODIVERSIDADE / JOÃO SCORTECCI

Aprendi desde muito cedo a espiar. A olhar – curioso que sou – pelos buracos desalinhados do corpo físico e espiritual. Aprendi a observar o diverso, o diferente e o variado das coisas do pensamento. Descobri, ainda, na diversidade pelo oposto, o caminho – impreciso – do conhecimento. Das ideias do mundo sem-fim. Lembro-me do meu primeiro dicionário escolar. Um tesouro guardado e perdido em algum lugar do tempo. De tanto espiá-lo – gastá-lo com os olhos de selva –, no verso e no inverso das palavras, encontrei-me em saber sobre isso, aquilo e tantas outras coisas impróprias. Em “bio” – elemento que tem o sentido de “vida” –, a biografia das coisas perenes. Na biodiversidade, o número incerto das espécies. Contá-las? Talvez. Nas espécies – diversas e mutantes –, as descobertas da sabedoria da natureza humana. Cruel e desumana. Em “biblio” – elemento relativo a livro –, a bibliografia das histórias versadas e escritas. Na bibliodiversidade – biblioteca das almas – a razão aplicada ao mundo do livro, onde as mutações – provavelmente infinitas – são títulos e subtítulos no mural da estante. Há quem diga que, para cada título da “Biblioteca de Babel” , existe uma história por segredar, um poema na garrafa navegando no inquieto mar, um bilhete açoitando o vazio, letras de um poeta riscando o céu com palavras, um verbo qualquer, impróprio, ainda por resfolegar conjugações, no denso e leve destino do universo. Tudo junto e necessariamente cru. Amordaçado! Preocupo-me – além da conta – com a concentração das linhas mal traçadas, das capas empilhadas no chão de fábrica, com as lombadas desiguais nas ruas da noite escura e suja – inocentemente, talvez – entregues ao desequilíbrio abrasador da poeira. Aprendi desde muito cedo a espiar. A olhar e a olhar, olhando. A observar o diverso, o diferente e o variado. Nas livrarias das espécies falta quase tudo da biblioteca das almas. Sombras agigantadas? Corpos transeuntes. Observo e não vejo o princípio e nem o fim das escadarias da flor. Falta – e me falta – o simetricamente oposto do inverso do verso. Quase poesia! Preciso escrever sobre bibliodiversidade, para falar – aos indivíduos e aos pares – sobre as ideias do mundo sem-fim. Ajoelho-me – com os meus pecados e os meus ossos de dor – que estou deveras tentando. Vergo-me. Desalinhado das fraquezas e dos sonhos. Das águas turvas do ninho e das raízes da terra alheia. Eu espio e me espio. Mortal, em Babel. Imortal em Borges (Jorge Luis Borges, 1899 – 1986) e suas almas. 

João Scortecci


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CAROLINA MARIA DE JESUS: “O LIVRO É A MELHOR INVENÇÃO DO HOMEM” / MARIA MORTATTI

Carolina Maria de Jesus (Sacramento/MG, 14.03.1914 – São Paulo/SP, 13.02.1977), mulher, negra, pobre, pouco escolarizada, que desde pequena gostava de ler e escrever e sonhava em ser escritora, que foi empregada doméstica, favelada e catadora de papel, é a autora do clássico Quarto de despejo: diário de uma favelada, seu livro de estreia lançado em 1960, que alcançou estrondoso e imediato sucesso comercial e literário, projetando internacionalmente o nome da autora. Embora tenha ficado conhecida sobretudo pelos diários, Carolina foi também compositora, cantora e escreveu extensa obra, em diferentes gêneros – poemas, contos, crônicas, romances e peças de teatro, a maioria inédita e em fase de publicação. Publicou outros livros com recursos próprios, como Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), o romance A felizarda/Pedaços da fome (1963), Provérbios (1962). Postumamente, foi publicado Um Brasil para brasileiros/Diário de Bitita, livro de memórias, anotadas em dois diários, editado em 1982, na França, e em 1986, no Brasil. Grande parte de sua obra – em cadernos com diários manuscritos, disco com interpretação de canções de sua autoria, além de dezenas de fotografias e outras anotações – vem sendo (re)descoberta, divulgada, lida, estudada e festejada.

Em Quarto de despejo: diário de uma favelada se encontra o diário da autora, escrito entre 15 de julho de 1955 e 1º. de janeiro de 1960, em que relata o cotidiano da vida na favela paulistana do Canindé, às margens do Rio Tietê, onde passou a morar, no final dos anos 1940, depois de passagens por outras cidades em busca de emprego, e de onde saía para catar papel que utilizava para escrever, além de vender para sustentar os três filhos que criou sozinha, pois não se casou para não se submeter à violência dos homens. De forma autêntica e comovente, mas também com certa dose de humor e poesia, Carolina relata a triste e angustiante vida na favela, com privações, miséria, fome, preconceito, violência e abandono social: “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados”. Mas registra também reflexões sobre a sociedade e a política da época, sobre os sonhos e as fantasias que criava para esquecer que estava na favela, sobre seu amor pelos livros e pela literatura, que impulsionaram a transição de sua vida, e pela escrita, que a salvava nos piores momentos de fome. Como se nenhum momento de sua vida pudesse ser desperdiçado, os registro pontuais vão iluminando o “projeto” da escritora: 

Quando cheguei em casa, era 22h30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem (21.07.1955). 

Levantei de manhã e fui buscar água. (...) Não tinha dinheiro em casa. Esquentei comida amanhecida e dei aos meninos (...) Seu Gino veio dizer-me para eu ir no quarto dele. Que eu estava lhe despresando. Disse-lhe: Não! É que estou escrevendo um livro para vende-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. (27.07.1955). 

Em um dos mais poéticos trechos do diário, depois de receber seis cruzeiros com a venda de material reciclável, Carolina conta que chegou a pensar em guardar para comprar feijão, mas, torturada pela fome, resolveu "tomar uma media e comprar um pão": 

Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. ...A comida no estomago é como o combustível nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.” (27.05.1958)

Depois de ela ter procurado editoras, sem obter êxito, o diário foi publicado com edição e organização pelo jornalista Audálio Dantas (1929 – 2018), que a descobriu ou foi por ela descoberto, quando preparava reportagem sobre a favela. Ao ler os cadernos, Audálio concluiu que Carolina já tinha escrito a visão “de dentro da favela”, dando voz àquela população abandonada e marginalizada pela sociedade. Em 1958, ele publicou trechos do diário, com o título "O drama da favela escrito por uma favelada”, na Folha da Noite, e, em 1959, outra matéria na revista O Cruzeiro, tendo ambas causado polêmicas e muita curiosidade para leitores da época, impactados e que chegaram a duvidar do fato de uma mulher, negra, pobre e pouco escolarizada ter escrito, ela mesma, sua história. O livro foi publicado pela Livraria Francisco Alves e lançado em 19.08.1960, com a presença de famosos escritores, editores, políticos. Na semana de lançamento, foram vendidas cerca de 10 mil cópias, chegando a 80 mil nos primeiros meses e, depois, foi traduzido para 15 idiomas, com efeitos também em medidas de autoridades para desmantelar a favela cuja miséria ficou estampada no livro. Carolina foi capa de revistas nacionais e estrangeiras, conquistou a admiração de críticos e leitores, mas também inveja dos vizinhos da favela, que viam suas vidas retratadas no diário, e foi alvo de novas polêmicas dos que a consideravam apenas “exótica” e "pitoresca" ou duvidavam da autenticidade de sua autoria. Mas foi defendida por escritores como Manuel Bandeira e Otto Lara Resende, além de Audálio Dantas. Em 1961, o livro foi adaptado para o teatro por Edy Lima, com direção de Amir Haddad e Ruth de Souza no papel principal, e, em 1971, Carolina foi protagonista do filme Favela: a vida na pobreza, da alemã Christa Gottmann, com base em Quarto de despejo. Para a autora, a publicação do livro representou a realização do sonho e lhe proporcionou glória, fama e algum dinheiro para se mudar da favela até chegar ao sítio no bairro de Parelheiros. Em seu diário, registra detalhadamente os acontecimentos do “dia alegre” do lançamento, e em seus depoimentos, destaca sua devoção aos livros e a realização de seu desejo de ser escritora: “meu amor pela literatura foi-me incutido pela minha professora, Lanita Salvina”; “A transição da minha vida foi impulsionada pelos livros. Tive uma infância atribulada. É por intermédio dos livros que adquirimos boas maneiras e formamos nosso caráter.” “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia (...) o meu diário” “Fiquei alegre olhando o livro e disse: ‘O que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor.’ E li meu nome na capa do livro: ‘Carolina Maria de Jesus. Diário de uma favelada. Quarto de despejo.’ Fiquei emocionada. É preciso gostar de livros para sentir o que eu senti.”

Com Quarto de despejo, registro da intimidade ficcionalmente compartilhada como denúncia e salvação, testemunho das condições de vida dos marginalizados e também como criação literária, Carolina se tornou uma das escritoras mais conhecidas no Brasil e a autora brasileira mais publicada no exterior, em particular nos Estados Unidos da América, segundo o historiador José Carlos Sebe B. Meihy, um dos principais responsáveis pela “redescoberta” da escritora, nos anos 1990. Carolina morreu com pouco antes de completar 63 anos de idade e pobre, mas deixou imensas contribuições, para sua época e para os dias atuais e em várias dimensões: como intérprete do Brasil, como protagonista da história de resistência e luta da população negra contra as desigualdades de classe social, raça e gênero; como pioneira na “literatura marginal”, pelo testemunho das condições de vida da população abandonada em favelas e outros “quartos de despejo”. Com leve declínio nas décadas seguintes ao lançamento, a partir dos anos 1990, além de sucessivas reedições do livro de estreia e gradativa publicação de inéditos, Carolina e sua obra se tornaram definitivamente objeto de estudos sociológicos, antropológicos e literários por pesquisadores brasileiros e estrangeiros e leitura obrigatória em exames pré-vestibulares no País. Além das biografias e homenagens em exposições comemorativas e prêmios literários, foi agraciada postumamente com o título de Doctor Honoris Causa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Embora não tenha sido a primeira escritora brasileira negra nem a primeira a publicar diários, em Quarto de despejo  publicado há 63 anos e sempre atual – Carolina Maria de Jesus deu voz, de forma pioneira, à experiência viva e vivida da fome como privação fisiológica e como metáfora da busca de realização do direito humano à fantasia e ao sonho, por meio da leitura e da escrita, combustível do espirito, como o alimento é para o corpo. Alimentou-se da escrita, quando não tinha o que comer. Por muitas noites de Scherazade, contou-se histórias para sobreviver. Do material descartado, fez a poesia-testemunho de si e dos marginalizados. Transformou o papel catado no lixo em páginas de seu diário-livro. Catando palavras para nomear sua realidade, a leitora se tornou a escritora reconhecida e festejada pelo pioneirismo e qualidade de sua obra. Com suas "escrevivências" – termo criado pela escritora contemporânea Conceição Evaristo, influenciada pela obra de Carolina –, a autora de Quarto de despejo alimentou também a literatura e a cultura brasileiras, conquistou lugar definitivo no cânone literário e deixou um valioso legado como inspiração e referência, não apenas para escritoras negras e movimentos culturais da “periferia”, mas para todos os que conhecem e vivem o poder transformador do livro, essa “melhor invenção do homem" e de Carolina Maria de Jesus, simbolizada por sua obra imortal e reafirmada num de seus últimos pedidos à filha, Vera Eunice: não flores, mas livros sobre seu túmulo.

Maria Mortatti – 16.09.2023

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A LITERATURA INFANTIL NA "REVISTA DE ENSINO" (1902 – 1918) / MARIA MORTATTI

Após a criação da Impressão Régia, em 1808, começaram a ser publicados, no Rio de Janeiro e em outras províncias brasileiras, jornais, boletins e revistas especializados em educação, destinados principalmente a professores, com orientações didáticas relacionadas a programas oficiais de ensino, entre outros assuntos. Após a proclamação da República, a mais longeva e influente publicação periódica desse tipo criada no estado de São Paulo foi a Revista de Ensino, órgão da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, fundada em 1901. A revista teve ampla circulação entre educadores, com 64 números referentes aos volumes de abril de 1902 a dezembro de 1918. O objetivo da revista era elevar, uniformizar e sistematizar o ensino público, facilitando o trabalho pedagógico dos professores por meio da indicação de modernos métodos de ensino, defendendo direitos profissionais da categoria e, ainda, orientando legisladores na elaboração de leis sobre a instrução pública. Todos os sócios da entidade eram considerados assinantes da revista, podendo obter um abatimento de 50% nos preços das assinaturas, e, em 1916, começou a ser distribuída gratuitamente a todos os professores dos grupos escolares do estado, alunos das escolas normais e professores de escolas isoladas que requisitassem.

A Revista de Ensino era organizada em seções que se mantiveram, com algumas variações, em todos os números, abordando, entre outros assuntos, questões gerais, pedagogia prática, literatura infantil, hinos escolares, arquitetura escolar, movimento e balancetes da Associação, atos oficiais, notícias, anúncios publicitários. Ao longo dos 16 anos de seu ciclo de vida, com periodicidade bimestral ou trimestral, a revista passou por três diferentes fases, com e sem patrocínios oficiais. A primeira fase – abril de 1902 a dezembro de 1904 –, com periodicidade bimestral e 17 números publicados, caracterizou-se pela independência de posicionamentos, ainda que fosse impressa pela Typographia do “Diario Official” e “sob os auspícios da Directoria Geral da Instrucção Publica do Estado de São Paulo” – em fascículos de 16 x 22 cm, com cerca de 140 páginas. A segunda fase – fevereiro de 1905 a março de 1910 – caracterizou-se pela ausência de subvenção oficial, suspensa em 1904, em retaliação às posições do presidente da Associação, que criticou medidas do governo estadual, como o desconto dos vencimentos dos funcionários públicos e a reforma do ensino de 1904. A revista passou, então, a ser impressa, às expensas da Associação, por diferentes tipografias, presumivelmente paulistanas: Typographia Guimarães, Typographia Tolosa, Typographia D’À Noticia, Typographia Nacional de Carlos Borba, Typographia Nacional de E. Braggio & C., Typographia Helvetia de A. Otto Uhle. Foram publicados 22 números com periodicidade bimestral, mas começou a diminuir de tamanho e espaçar a periodicidade, até se esgotarem os recursos da Associação e a revista ser extinta, em março de 1910. Em junho de 1911, a publicação foi retomada, com periodicidade trimestral, subvenção oficial e impressão pela Typographia do “Diario Official”, por iniciativa de Oscar Thompson, que assumira a Diretoria Geral da Instrução Pública. Em 1918, foram compostos os últimos quatro números, referentes a junho/dezembro daquele ano e publicados no ano seguinte.

Entre os editores e colaboradores da revista – aproximadamente 153 autores de textos originais ou traduzidos, a maioria homens –, em seus diferentes números e seções, constavam professores, como Arnaldo de Oliveira Barreto, João Chrysostomo dos Reis Júnior, João Lourenço Rodrigues, Alfredo Bresser da Silveira, Emilio Mario Arantes, diplomados pela Escola Normal de São Paulo e pelas escolas normais criadas no interior e no litoral do estado, desde o final do século XIX, integrando a reforma da instrução pública paulista, iniciada na década de 1890 pelo educador e médico Antonio Caetano de Campos (1844 – 1891). Constituindo-se como uma elite intelectual, esses professores, além de tematizarem problemas educacionais relevantes para a época, foram os tradutores/adaptadores/parafraseadores ou autores dos textos publicados na seção “Literatura infantil”. Muitos deles se profissionalizaram como escritores didáticos, tendo publicado livros para o ensino de diferentes matérias, incluindo cartilhas de alfabetização, livros de leitura e livros de literatura infantil, como Arnaldo Barreto que, além de autor de séries de livros de leitura, passou a dirigir a Biblioteca Infantil, da Melhoramentos, iniciada, em 1915, com sua tradução do conto "O patinho feio", de Andersen. 

Na seção “Literatura infantil”, com denominações oscilando também entre “Literatura escolar” e “Literatura didática”, eram publicados contos infantis, poemas, diálogos e pequenas comédias para recitação, a maioria não escritos originalmente para crianças. Com essa seção, “a melhor revista de cultura da época” – segundo o historiador Antonio Barreto do Amaral – e um marco na imprensa pedagógica paulista e brasileira das décadas iniciais do século XX, contribuiu para disseminar e consolidar uma concepção de literatura infantil como gênero didático (nele subsumida sua condição de gênero literário), e ramo da Pedagogia (nele subsumido seu pertencimento ao ramo das Letras). Por meio de seleção, tradução/adaptação, elaboração original ou paráfrase de textos publicados na seção, os editores e colaboradores da Revista de Ensino foram definindo empiricamente um modo de conceber a literatura infantil, do ponto de vista da educação e de suas finalidades pedagógicas, articuladamente ao desenvolvimento da indústria editorial e gráfica brasileira, impulsionada pela publicação de livros escolares e visando à educação dos cidadãos, função atribuída à escola primária no projeto republicano de modernização social e cultural da Nação brasileira. Essa concepção de literatura para crianças – ainda presente – foi “confrontada” na década seguinte, pelo escritor, editor e tradutor Monteiro Lobato, considerado o “pai da literatura infantil brasileira” propriamente dita.

Maria Mortatti – 12.09.2023

[Síntese de artigo publicado em inglês na revista History of education & children’s literature X / 2 2015] e em tradução para o português na revista História da Educação, v. 22, n. 56, sete./dez. 2018.]

 

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ENSINO DA LEITURA E ESCRITORES DIDÁTICOS NA "BELLE ÉPOQUE" EDUCACIONAL PAULISTA / MARIA MORTATTI

Após a proclamação da República brasileira, iniciou-se a reforma da instrução pública paulista liderada pelo médico e educador Antonio Caetano de Campos (1844 – 1891). Com objetivos de inovar e modernizar a instrução pública, a reforma oficializou, institucionalizou e sistematizou um conjunto de aspirações políticas para a educação em consonância com o projeto republicano de modernização do País e divulgadas desde o final do Império. Enfeixadas pela filosofia positivista, essas aspirações convergiam para a busca de cientificidade – e não mais o empirismo – na educação das crianças e delineavam a hegemonia dos métodos intuitivos e analíticos para o ensino de todas as matérias escolares. A partir de então, essa “nova bússola” sintonizada com os progressos da "pedagogia moderna" deveria orientar a escola primária e a preparação não apenas teórica, mas, sobretudo, prática, de um novo professor que deveria deduzir da psicologia da infância e suas bases biopsicofisiológicas os modos de ensinar à criança. 

No âmbito dessa reforma, a Escola Normal de São Paulo – fundada em 1846, “reinaugurada" em 1894, no novo e suntuoso prédio localizado na Praça da República, no centro da capital paulista, então batizada com o nome de Caetano de Campos e que atualmente abriga a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo –, foi se configurando como condensação do modelo de formação da elite intelectual e de sistema de ensino proposto para o estado de São Paulo e disseminado para outros estados brasileiros, por meio das “missões de professores paulistas”. Além do magistério de ensino primário, professores formados por essa escola normal assumiram, direta ou indiretamente, posições de liderança na instrução pública paulista e em outros estados, ocupando cargos na administração educacional, liderando movimentos associativos do magistério, assessorando autoridades educacionais e produzindo material didático e de divulgação das novas ideias, caracterizando-se como escritores didáticos. Por meio de sua atuação, contribuíram decisivamente para configurar o clima da Belle Époque educacional paulista, por analogia – ainda que em escala e impacto menos visíveis – com o clima intelectual e artístico da Europa entre final do século XIX e início do século XX que influenciou, no campo das artes e da literatura, a realização da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, ano também em que se comemorou o centenário da Independência do Brasil. 

Nesse contexto, destacaram-se, ainda, disputas em torno dos métodos de ensino inicial da leitura e escrita – também denominado “alfabetização”, a partir dos anos 1910 –, centradas nas características de dois tipos básicos de método: o sintético, que consiste em se iniciar o ensino da leitura pelas menores unidades linguísticas e era utilizado rotineiramente até então; e o método analítico, que consiste em iniciar esse ensino por meio de historietas ou grupos de sentenças e que fora divulgado na província de São Paulo e, em especial na Escola Normal da Praça, por educadores norte-americanos, como Miss Marcia Browne, diretora da escola primária modelo masculina, anexa à Escola Normal.  Extrapolando aspectos didático-pedagógicos, a discussão em torno do assunto esteve diretamente vinculada à discussão e à proposição de ações visando consolidar o novo regime político, em sintonia, portanto, com urgências políticas e sociais da época. A atuação daqueles professores configurou, também, o engendramento de uma atitude definidora do que considerei o segundo momento crucial na história da alfabetização no Brasil: a disputa entre mais modernos e modernos – sobrepondo-se àquela entre modernos e antigos, observável na década de 1880 – pela hegemonia de tematizações, normatizações e concretizações relativamente ao ensino da leitura. Dessas disputas, resultou a fundação de uma (nova) tradição, segundo a qual o método analítico proposto pelos reformadores educacionais paulistas era revolucionário, porque sintetizava todos os anseios do "ensino moderno e científico", e sua excelência se comparava à excelência do regime republicano. Em decorrência da hegemonia dessa convicção, nesse momento histórico o método analítico para o ensino da leitura se tornou obrigatório nas escolas paulistas (principalmente nos grupos escolares, criados em 1984, na capital, e no interior e litoral do estado, nas décadas seguintes), por meio: das normatizações por parte dos administradores educacionais, de tematizações das  bases teóricas do método e de concretizações elaboradas por professores escritores didáticos, majoritariamente homens, em cartilhas de alfabetização e livros de leitura que se tornaram populares no meio educacional, tiveram sucessivas edições e circularam em diferentes estados brasileiros, impulsionados por fatores, como processo de seleção, aprovação e compra, pelo Estado, de livros didáticos adotados oficialmente, expansão e consolidação do mercado editorial de livros didáticos produzidos por brasileiros e por editoras brasileiras, que foram se especializando nesse segmento para a escola brasileira e adequado à nova ordem educacional, e processo de profissionalização do escritor didático com o correspondente engendramento de uma especialidade editorial, a publicação de livros didáticos.

As disputas em torno do ensino inicial da leitura e escrita tenderam a se amenizar com a “Reforma Sampaio Dória”, implantada, no estado de São Paulo, pela Lei n. 1750, de 1920, que, entre outros importantes aspectos, garantia autonomia didática aos professores. Além disso, a partir dos anos 1920, problemas e urgências políticas e sociais de outra ordem passaram a ser priorizados, e outros sujeitos começaram a se destacar no cenário educacional, propondo outras formas de intervenção do Estado nas coisas da instrução assim como outros projetos, centrados em outras bases teóricas, para a educação e o ensino inicial da leitura e da escrita, ou alfabetização. O produto das férteis iniciativas daqueles educadores formados pela Escola Normal “Caetano de Campos” e as então novas formas de pensar e praticar a educação e o ensino inicial da leitura e escrita, como parte de um projeto republicano para a nação brasileira, consolidaram-se nas décadas posteriores, caracterizando o legado dessa Belle Époque educacional paulista para a história educacional, cultural e editorial do País. E a esse legado se pode aplicar com muita justeza o sábio conselho do modernista Mário de Andrade, em Paulicea desvairada: "O passado é lição para se meditar, não para reproduzir."

Maria Mortatti – 10.09.2023


 

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TODO MUNDO NO MARANHÃO É RIBAMAR / JOÃO SCORTECCI

O poeta e memorialista Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira, 1930 – 2016) nasceu no dia 10 de setembro e, se vivo fosse, estaria completando 93 anos de idade, em 2023. Sobre o seu pseudônimo, declarou o seguinte: "Gullar é um dos sobrenomes de minha mãe, o nome dela é Alzira Ribeiro Goulart, e Ferreira é o sobrenome da família, eu então me chamo José Ribamar Ferreira; mas como todo mundo no Maranhão é Ribamar, eu decidi mudar meu nome e fiz isso, usei o Ferreira que é do meu pai e o Gullar que é de minha mãe, só que eu mudei a grafia porque o Gullar de minha mãe é o Goulart francês; é um nome inventado, como a vida é inventada eu inventei o meu nome". Conheci-o no lançamento do seu livro "Poema sujo" (1976), na cidade do Rio de Janeiro, e o reencontrei – dois ou três anos depois – num bate-papo, durante a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Simples e reservado. Educadíssimo! Na época do nosso segundo e último encontro, tive vontade de lhe perguntar sobre a poesia do outro José Ribamar (José Ribamar Ferreira de Araújo Costa), também maranhense, codinome José Sarney, autor de "Marimbondos de fogo". Não tive coragem. Algum motivo específico? Não. Num sábado, nos anos 1980, na casa do escritor e crítico literário Fábio Lucas, a escritora Lygia Fagundes Telles nos confidenciou: “Marimbondos de fogo é um belíssimo livro.” Silêncio. A obra já recebeu críticas negativas, entre elas a do poeta, desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e jornalista Millôr Fernandes (1923 – 2012), que o descreveu como "um livro que quando você larga não consegue mais pegar". Outro dia dei de cara com um exemplar da obra. Eu o retirei da picada do ferrão. Guardei-o na estante dos maribondos de fogo. Aqui com os meus ossos: devo cutucar ou não? “Mel, em se plantando, tudo dá!” 

João Scortecci


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OS TRÊS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS INGLESES: BYRON, SHELLEY, KEATS / MARIA MORTATTI

Três poetas, George Gordon Byron (22.01.1788 – 19.04.1824), Percy Bysshe Shelley (04.08.1792 – 08.07.1822) e John Keats (31.10.1795 – 23.02.1821), marcaram a "segunda geração” do Romantismo inglês no início do século XIX. Precedidos pelos primeiros românticos ingleses, William Wordsworth e Samuel Coleridge, esses jovens poetas, com afinidades e diferenças entre suas obras e algumas rivalidades entre Byron e Keats, produziram literatura inglesa da mais alta qualidade, intensa e moderna. Em reação ao neoclassicismo – movimento artístico e cultural europeu de meados do século XVIII, com base no Iluminismo e na Antiguidade Clássica – e às regras da sociedade burguesa da época derivada das mudanças sociais e políticas da Revolução Industrial e Revolução Francesa, essa segunda geração de poetas românticos ingleses buscava a liberdade de viver e criar por meio da vida boêmia e de nova linguagem literária baseada no sentimento e no irracional, explorando temas como a melancolia, a individualidade/subjetividade, a intensidade, a natureza, o terror, a morte, o amor ideal, a beleza, o sublime, caracterizando o “mal do século”, tendência romântica ao pessimismo, melancolia, tédio, desencanto, nostalgia, resultando em tendência à morte por doença contagiosa, em especial a tuberculose, na época, ou ao suicídio.  

George Gordon Byron, Lord Byron, – considerado o nome mais influente e popular do Romantismo e cujo satanismo foi precursor do de Charles Baudelaire – escreveu os primeiros poemas quando estudante na Universidade de Cambridge. Em 1809 fez uma longa viagem por países da Europa e Oriente e, após regressar à Inglaterra, viveu de modo radicalmente livre, boêmio e apaixonado, escandalizando a sociedade inglesa com suas aventuras amorosas, e escreveu suas obras mais famosas e populares: os poemas narrativos Don Juan  (1819 – 1824) e A Childe Harold's Pilgrimage (Peregrinação de Childe Harold), os 30 poemas de  Hebrew Melodies e o poema lírico “She walks in beauty” (“Ela caminha em beleza"). Em 1824, foi lutar contra os turcos na Guerra de Independência da Grécia e, durante uma cavalgada, encharcado por uma forte chuva, teve febre e dores reumáticas, adoeceu gravemente, entrou em estado de coma e morreu no dia 19 de abril de 1824, com 36 anos de idade, durante uma violenta tempestade elétrica. Foi proclamado herói nacional da Grécia e sepultado na Inglaterra. Sua obra principal, Don Juan, foi publicada no final de sua vida, por John e HL Hunt, seus editores. Depois de sua morte, foram encontrados alguns de seus escritos comprometedores, mas, temendo que pudessem "manchar" a sua reputação, amigos do poeta atearam fogo e alguns deles foram destruídos.  

Percy Bysshe Shelley – considerado um dos mais importantes poetas românticos ingleses, cuja obra exemplifica  os extremos desse movimento literário, o êxtase alegre e o desespero taciturno, e “um poeta lírico sem rival”, para o crítico literário Harold Bloom –, como seu amigo Byron, viveu de modo livre, anticonformista e radical em sua poesia e nas posições políticas e sociais. Foi expulso da Universidade de Oxford por ter escrito o breve tratado The necessity of ateism (A necessidade do ateísmo). Devido a suas ideias céticas, idealistas e materialistas, não alcançou fama durante sua vida, mas o reconhecimento de sua obra cresceu continuamente após sua morte, e ele se tornou uma influência importante nas gerações seguintes de poetas. Além dos poemas líricos, entre os mais populares, como "Ozymandias", "Ode to the West Wind", escreveu poemas extensos, considerados seus melhores, como Prometheus Unbound (Prometeu desacorrentado)Alastor, or The Spirit of Solitude (Alastor ou O espírito da solidão), "Adonaïs", e o inacabado The triumph of life (O triunfo da vida). Também escreveu o ensaio “A defense of poetry” ("Uma defesa da poesia") e romances góticos. Após o sucídio da primeira esposa, casou-se com a romancista Mary Shelley e era amigo de John Keats e Lord Byron. Para este, durante um passeio de barco, Shelley escreveu o poema “Hymn to intellectual beauty" ("Hino à beleza intelectual”), publicado em 1816. Morreu no dia 8 de julho de 1822, aos 29 anos de idade, vítima de um naufrágio, ao lado do amigo Edward Williams. Em cerimônia presidida por Lord Byron, Shelley foi cremado na praia de Viarregio, na Itália, onde seu cadáver foi encontrado. Seu coração foi doado a Mary Shelley, pelo romancista Trelawney. Quando ela morreu, o coração de Shelley foi sepultado junto à escritora.

John Keats – também considerado um dos mais importante poetas românticos ingleses´– foi  o último e o mais jovem a morrer. Estudou medicina, mas abandonou o curso para se dedicar à poesia. Embora não tivesse educação literária formal, conhecendo o momento histórico e literário em que viveu, Keats escreveu com extrema rapidez em diferentes formas poéticas e em rico estilo, comparável para muitos críticos com os sonetos de Shakespeare. Publicou apenas 54 poemas, em três pequenos volumes e algumas revistas, que não foram bem recebidos pela crítica, durante sua vida, mas exerceram influência em diversos poetas posteriores, como  Alfred Tennyson e Wilfred Owen. Seu primeiro livro, Poems, foi publicado em 1816 – quatro anos antes de morrer – e, em 1818, o longo poema “Endimyon”, seguido de “Hyperion” e “The eve of St. Agnes” (1919), em 1920, os poemas “Isabella” e “Lamia” e continuou escrevendo famosos sonetos, odes e cartas. Em 1818, conheceu Fanny Brawne, a grande paixão de sua vida com quem teve um relacionamento amoroso que não culminou em casamento, como ele desejava. Em 1820, para se curar de tuberculose que contraíra quando cuidava de seu irmão com essa doença, foi para a Itália, por recomendação médica, mas lá morreu pouco tempo depois, sem reencontrar a amada. Foi sepultado em Roma, e sobre seu túmulo foi esculpida a inscrição que ele mesmo redigira: “Here lies one whose name was writ in water” (“Aqui descansa um homem cujo nome foi escrito sobre a água”). Em sua memória, Shelley escreveu o poema "Adonaïs".

Os três últimos e mais prolíficos poetas do Romantismo inglês se tornaram “canônicos”, suscitando interpretações quase míticas. Apesar das rivalidades, ao final reconheceram as qualidades um do outro, e, em suas breves vidas, compuseram obras extensas e duradouras, lidas, imitadas, traduzidas e estudadas, com notável influência em gerações seguintes de escritores europeus e também de poetas brasileiros da "segunda geração" do Romantismo no Brasil, como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Fagundes Varela, cujas vidas e obras são marcadas pela triste tradição herdada daqueles: o “mal do século”. Byron morreu com 36 anos, Shelley, com 29 anos e Keats com 25 anos de idade. Apesar de suas breves vidas, às obras que legaram cabe exemplarmente um de meus versos preferidos do "Endymion", de Keats: "A thing of beauty is a joy for ever:/Its loveliness increases; it will never/Pass into nothingness; (...) ("Tudo o que é belo é uma alegria para sempre:/O seu encanto cresce; não cairá no nada;(...) " (Tradução de Péricles E. S. Ramos)

Maria Mortatti  – 09.09.2023 

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ALMANAK DA "GAZETA DE NOTÍCIAS" / JOÃO SCORTECCI

Na folha de rosto do Almanak, ano 1903, publicação da Typographia da Gazeta de Notícias, consta esta apresentação: “Contendo, além de todas as informações dos anteriores, o horário e o percurso exacto de todas as estradas de ferro, quer particulares, quer públicas dos Estados do Rio de Janeiro, Minas e S. Paulo, sahidas dos paquetes e vapores, as taxas do correio, audiencias dos diversos tribunaes, tabellas dos preços de carros e tylburys [veículo com duas rodas e dois lugares, puxado por um animal] e de enterro, muitas outras informações uteis para o commercio, taes como as tarifas das estradas de ferro e o indicador geral das ruas. Na parte litteraria figuram os principaes prosadores e poetas.” Pesquisando sobre anuário – publicação anual que registra informações sobre um ou vários ramos de atividade, tais como ciências, artes, literatura, profissões, economia etc. – e almanaque – livro que, além do calendário do ano, traz diversas indicações úteis, poesias, trechos literários, anedotas e curiosidades, etc. –, pude observar, até certo ponto surpreso, o espaço destinado nessas publicações para textos literários de poetas e prosadores desconhecidos e famosos. Espiando também nas páginas da Revista PAN (1935 – 1945), semanário editado e impresso pelo meu avô materno, José Scortecci, observei o mesmo "prestígio", por assim dizer. No ano de 1999, no Almanaque Santo Antônio, publicação da Editora Vozes, foi publicada, com o título “O Fabricante de Sonhos” (p. 202-204), a entrevista que concedi à escritora, poetisa, advogada, jornalista e tradutora Maria Thereza Cavalheiro (1929 – 2018), com vários títulos publicados pela Scortecci Editora, sobrinha-neta da poetisa parnasiana Colombina (Yde Schloenbach Blumenschein, 1882 – 1963) e fundadora da Casa do Poeta “Lampião de Gás”, na cidade de São Paulo. Nos anos 1980, na sede da UBE – União Brasileira de Escritores, conversando com uma famosa poetisa parnasiana, perguntei-lhe: “Poeta ou poetisa?”. Ela me respondeu, com cara feia: "Eu sou uma poetisa. Não gosto de modismos." Um detalhe typographico e litterario: nunca andei de tylburys! Fazer o quê? Acontece.

João Scortecci

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